Sexta, 19 de Abril de 2024
   
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Salmo 106 - Quanto o Povo de Deus já Fez

 

O grande pregador britânico John Wesley (1703-1791) e seu irmão Charles (1707-1788) tiveram uma mãe cuja paciência era notável. Certa vez, seu marido a elogiou: “Eu admiro sua paciência! Por vinte vezes você falou a mesma coisa para as crianças”. Ela respondeu: “Se eu tivesse falado apenas dezenove vezes, teria perdido todo o meu trabalho”. Essa pequena história demonstra que essa mãe, Susanna Wesley, tinha um objetivo a cumprir e isso valia ser paciente e lançar sobre si mesma o custo do desgosto de ter sua palavra desobedecida quase tantas vezes quanto pronunciada. Essa disposição se chama “misericórdia” e, longe de promover o castigo tão rápido ele mereça ser aplicado, visa a um objetivo final que justifica a paciência e que administra a justiça e o amor no tratamento do rebelde.

O Salmo 106 foi escrito sob a óptica do tratamento misericordioso de Deus a um povo que, “repetidas vezes” se rebelou contra ele, mesmo quando suas bênçãos estavam em pleno curso de ação. Assim como os salmos 96 e 105, este reproduz um trecho do cântico celebrado na introdução da arca em Jerusalém (vv.47,48 cf. 1Cr 16.35,36). Contudo, o pequeno tamanho do texto coincidente e a evidência interna do salmo de uma ocasião de exílio (vv.46,47) não excluem a possibilidade de ter sido composto alguns séculos depois – até mesmo durante ou depois do cativeiro babilônico (notar a semelhança entre o v.1 e Jr 33.11). Independente disso, o enfoque do salmista, em termos históricos, recai sobre as ações dos israelitas contra Deus durante o período entre o êxodo e a conquista de Canaã – período semelhante ao vislumbrado no Salmo 105. Porém, ao focalizar a ação rebelde dos israelitas, há a evidenciação e exaltação da misericórdia com que Deus os tratou em toda essa jornada. Assim, o salmista fornece quatro visões sobre a misericórdia de Deus no tratamento dos seus servos.

A primeira visão é que a misericórdia de Deus gera louvores ao seu nome (vv.1-5). O salmo é uma exaltação a Deus (v.1): “Que o Senhor seja exaltado! Celebrai ao Senhor, pois ele é bom, pois a sua misericórdia dura para sempre” (hallû-yah hôdû layhwh kî-tov kî le‘ôlam hasdô) – no contexto das alianças, a palavra hebraica hesed deve ser entendida como “amor leal” ou “lealdade”, mas como o contexto desse salmo enfatiza o tratamento paciente e bondoso de Deus com pessoas que mereciam punição, o sentido de “misericórdia” suplanta o de lealdade à aliança. A visão dessa misericórdia, portanto, é o que leva o salmista a conclamar seus pares ao louvor. Apesar de encarecer a atitude submissa e obediente dos servos do Senhor (v.3), o enfoque reside em situações adversas nas quais o povo necessita de um tratamento bondoso que reverta as consequências das suas decisões erradas (v.4): “Lembra-te de mim, ó Senhor, ao ser amável com teu povo. Visita-me com a tua salvação” (zokrenî yhwh birtsôn ‘ammeka poqdenî bîshû‘ateka). Vale notar que o salmista louva o Senhor por sua misericórdia não apenas por ser ela um atributo louvável, mas pelos benefícios que os adoradores têm da sua aplicação sobre eles (v.5): “Para que eu veja a prosperidade dos teus escolhidos, para que eu me alegre com a alegria do teu povo e para que eu me glorie com a tua herança” (lir’ôt betôvat behîreyka lismoah besimhat gôyeka lehithallel ‘im-nahalateka).

A segunda visão é que a misericórdia de Deus evita a imediata destruição dos pecadores (vv.6-12;19-23;28-31). Os vv.6-42 contêm uma mescla de dois tipos de resposta de Deus – perdão e disciplina – a um único tipo de ação dos homens – rebeldia. Dispostas de modo intercalado, elas evidenciam como o Senhor administra misericordiosamente seu amor e sua justiça. O primeiro grupo de respostas divinas mostra o perdão de Deus e seus benefícios imerecidos. O salmista inicia esse trecho com uma confissão de ordem nacional (v.6): “Nós pecamos como nossos pais. Nós nos pervertemos. Nós agimos mal” (hata’nû ‘im-’avôteynû he‘ewînû hirsho‘nû). Tal declaração não surge desprovida de fatos que a comprovem. O primeiro fato é a ingratidão de Israel, diante da maravilhosa libertação do Egito, ao murmurar duramente às margens do mar Vermelho (v.7 cf. Ex 14.11,12). Nesse caso, a misericórdia de Deus, em lugar de consumi-los, salvou-os mais uma vez por meio de feitos ainda maiores como a abertura do mar para que o atravessassem em segurança (vv.8,9 cf. Ex 14.21,22) e a destruição do poderoso exército inimigo (vv.10-12 cf. Ex 14.23-28). O segundo fato é o rápido abandono de Deus ao fazerem para si um bezerro de ouro para, aos pés do monte Sinai – aqui chamado Horebe –, renderem-lhe adoração (vv.19-22 cf. Ex 32.1-6). Deus os poupou da destruição, atendendo ao pedido de Moisés para que os perdoasse (v.23 cf. Ex 32.11-14). O terceiro fato foi a participação do culto de Baal-Peor, comendo dos seus sacrifícios e se deitando com as mulheres midianitas (vv.28,29 cf. Nm 25.1-3). Mesmo que um grande número de israelitas tivesse se desviado, o Senhor aceitou a fidelidade de um único israelita como propiciação e apaziguamento da sua ira (vv.30,31 cf. Nm 25.6-11).

A terceira visão é que a misericórdia de Deus não anula a justiça divina contra o mal (vv.13-18;24-27;32-42). O segundo grupo de respostas à rebeldia do seu povo mostra que Deus, mesmo sendo misericordioso e amoroso, não se deixa zombar e encarece sua santidade por meio da disciplina do erro. O primeiro fato apresentado para corroborar tal visão não é especificado com uma ocasião em especial, mas com uma atitude ingrata a respeito do que tinham e cobiçosa do que não tinham (v.13). A punição de Deus veio de modo peculiar ao conceder exatamente o que cobiçavam (v.14) – a citação do resultado negativo da concessão parece identificar o evento como a murmuração e o clamor dos israelitas pelas comidas que tinham no Egito, quando eram escravos (Nm 11.4,33,34). O segundo fato é a revolta de Corá, Datã e Abirão contra a liderança de Moisés e, obviamente, do próprio Deus (v.16 cf. Nm 16.1-3). O castigo se abateu sobre eles quando o Senhor fez a terra se abrir e tragá-los, juntamente com suas famílias, e quando enviou um fogo que consumiu os rebeldes (vv.17,18 cf. Nm 16.31-38). O terceiro fato foi a negação de seguirem avante para a terra da promessa devido ao relatório ruim de dez dos doze espias que percorreram Canaã (vv.24,25 cf. Nm 14.1-4). O Senhor impediu aquela geração de possuir a terra da promessa e os fez morrer no deserto (v.26 cf. Nm 14.20-23) – além disso, o salmista se lembrou dos estatutos da lei que previam desterro diante desse tipo de pecado (v.27 cf. Lv 26.33; Dt 28.37,64,65).

O próximo fato ocorreu em Meribá, quando a murmuração chegou a um nível extremo, produzindo também em Moisés uma atitude negativa (v.32 cf. Nm 20.2-11). O juízo veio pela vindicação do nome do Senhor e pela proibição de Moisés entrar na terra (v.33 cf. Nm 20.12,13). Finalmente, o salmista cita a desobediência do povo em exterminar as nações cananitas e em se misturar a elas e à adoração pagã (vv.34-39 cf. Jz 1.19,21,27-35). A punição veio na forma de opressões pela mão de seis povos ao redor (vv.40-42) – os opressores foram os arameus (Jz 3.7-11), os moabitas (Jz 3.12-30), os filisteus (Jz 3.31;13 – 16), os cananeus (Jz 4 – 5), os midianitas (Jz 6 – 8) e os amonitas (Jz 10.6 – 12.7). Mesmo disciplinando o povo pelos seus pecados, a misericórdia de Deus fica patente porque o resultado final não foi a destruição total do povo, mas o desencorajamento de manterem a obstinação e a extinção de diversos rebeldes, como uma amputação da parte doente a fim de salvar o corpo.

A última visão é que a misericórdia de Deus promoverá a restauração do seu povo (vv.43-48). O último parágrafo do salmo começa com um vislumbre triste no que tange ao modo ingrato e resistente de Israel tratar a Deus (v.43): “Muitas vezes ele os salvou, mas eles se rebelaram em seus desígnios e se arruinaram com sua iniquidade” (pe‘amîm ravvôt yatsîlem wehemmâ yamrû ba‘atsatam wayyamokû ba‘aônam). Não obstante, a misericórdia divina fez com que o Senhor lhes ouvisse as orações e permanecesse fiel às promessas que fez (vv.44,45). Mesmo ao enviar parte deles para o exílio, sua boa mão os acompanhou a fim de preservá-los (v.46). É olhando para esse tratamento gracioso que o salmista clama por um retorno completo dos israelitas à terra da promessa (v.47): “Salva-nos, ó Senhor, nosso Deus, e reúna-nos de entre os povos a fim de celebrarmos o teu santo nome e nos gloriarmos no teu louvor ” (hôshî‘enû yhwh ’elohênû weqavvetsenû min-haggôyim lehodôt leshem qodsheka lehishtavveah bithillateka). O clamor do salmista não para no aspecto político da restauração do seu povo, mas mantém a esperança de uma restauração espiritual que faça com que a nação sirva e adore ao seu Deus (v.48): “Bendito é o Senhor, Deus de Israel, de eternidade a eternidade! E todo o povo diga: ‘Amém! Que o Senhor seja exaltado!’” (barûk-yhwh ’elohê yisra’el min-ha‘ôlam we‘ad ha‘ôlam we’amar kol-ha‘am ’amen hallû-yah).

Quanta coisa má Israel fez como resposta à bondade de Deus! Na verdade, olhando para a história como um todo, podemos também dizer: “Quanta coisa ruim a igreja de Cristo já fez, tornando muitas vezes o nome de Deus desprezível diante do mundo!”. Mesmo assim, a misericórdia do Senhor nos acompanha da mesma maneira como acompanhou o povo de Israel. Deus também nos perdoa e nos livra do mal – incluindo a extinção da igreja, já que tantas vezes ela foi perseguida com esse propósito. E apesar da sua misericórdia, o Senhor nunca deixou de disciplinar seu povo a fim de o afastar do pecado e o livrar da apostasia. Não é coincidência que também nutrimos a esperança de uma reunião futura, o ajuntamento de todos os crentes em um estado de glorificação. É por isso mesmo que, agora, enquanto ainda somos peregrinos no deserto do mundo, devemos compartilhar com o salmista a sua visão sobre como se deve servir a Deus (v.3): “Felizes são os que guardam a retidão e praticam a justiça em todo tempo” (’asrê shomerê mishpat ‘oseh tsedaqâ bekol-‘et).

Pr. Thomas Tronco

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