Terça, 16 de Abril de 2024
   
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Eclesiastes 10.1-20 – Reflexões sobre a Loucura e o Poder


Assim como a sabedoria foi ensinada e até ordenada aos servos de Deus nas mais diferentes esferas da vida e da sociedade, o escritor dedica esse capítulo todo a analisar a loucura e a tolice nas rodas em que o poder e o dinheiro estão presentes, alertando sobre seus perigos e informando, de antemão, seus trágicos resultados. Apesar de o capítulo 10 ser formado por vinte versículos, eles são, de modo geral, mais curtos do que os do livro costumam ser, fazendo com que o capítulo não seja muito grande. Mesmo assim, é uma seção longa, mas que não pode ser partida ao meio sem que se rompa, com isso, o terrível quadro a respeito da tolice que é pintado pelo autor.

Em uma primeira leitura — dependendo da versão lida —, pode parecer que o capítulo é um amontoado, sem muita ordem, de pensamentos sobre a tolice, mas isso não é verdade. É possível caminhar na linha de raciocínio do escritor e notar cinco áreas nas quais ele analisa os efeitos da tolice. Essas divisões são: a diferença entre o sábio e o tolo (v.1-3), o poder usado de modo insensato (v.4-7), relações de causa e efeito da tolice (v.8-11), as palavras do tolo (v.12-15) e a licenciosidade e o perigo de líderes insensatos (v.16-20). Apesar de algumas dessas divisões conterem ensinos que abrangem todas as esferas da sociedade e todo tipo de gente (v.1-3,8-15), percebe-se ao longo do capítulo que o escritor está pensando nas relações entre as autoridades e as pessoas que têm de lidar com elas em sua esfera administrativa. A diferença desse trecho é que ele se concentra na tolice que marca tais relações, deixando alertas intrínsecos quanto aos seus perigos. Aos sábios, o Pregador dirige apenas duas instruções (v.4,20), ainda que com a finalidade de pôr em relevo a tolice dos líderes que não temem a Deus.

O texto começa expondo “a diferença entre o sábio e o tolo” (v.1-3). O primeiro versículo segue a ideia da conclusão do capítulo anterior, tanto que boa parte dos estudiosos costuma colocar esse texto junto ao precedente, que diz que “um único pecador pode destruir muitas coisas boas” (9.18b). Ainda assim, esse foi um ótimo modo de o escritor iniciar um tema que é introduzido no capítulo anterior, que envolve tanto um “grande rei” (9.14) como aquele “que governa sobre os tolos” (9.17).

Desse modo, o autor apresenta as diferenças entre o sábio e o tolo se valendo de uma abordagem figurada e genérica, meio apropriado para introduzir um assunto delicado dirigido a figuras públicas e dotadas de poder (v.1): “Uma mosca morta faz apodrecer um perfume finamente preparado, assim como um pouco de insensatez põe a perder uma sabedoria magnífica”. É claro que a preocupação do Pregador não é com moscas e perfumes, mas com a ação do tolo onde deve reinar a sabedoria. Ainda assim, a figura é muito sugestiva. O trecho “faz apodrecer” tem o sentido de tornar algo odioso, cujo cheiro rançoso causa repulsa nas pessoas. É o efeito que uma “mosca morta” pode causar em “um perfume finamente preparado”. O mesmo faz a “insensatez” a algo que é fruto de uma “sabedoria magnífica”. A expressão “sabedoria magnífica” é formada pela hendíadis das palavras “sabedoria” e “glória”, exposta na forma de um paralelismo com a hendíadis da primeira parte do versículo utilizada para descrever o “perfume finamente preparado”. Com isso, o capítulo começa com o mesmo alerta que terminou o anterior: cuidado com a tolice, ainda que seja pouca e não pareça tão grave.

A explicação para esse disparate é que a inclinação de sábios e tolos, assim como o resultado de suas ações, é diametralmente oposta (v.2): “O coração do sábio segue para o lado direito, enquanto o coração do tolo segue para o lado esquerdo”. As expressões “lado direito” e “lado esquerdo” trazem alguma perplexidade, pois não é possível definir exatamente o que passa na mente do escritor. Mas é provável que seja exatamente essa a sua intenção nesses versículos introdutórios. Sobre o significado dos lados, é possível que o autor esteja simplesmente fazendo uma introdução para apontar problemas práticos por meio da figura do “caminho errado” tomado pelo tolo, algo que o escritor termina de fazer apenas no versículo seguinte. Isso explicaria sua ideia de o sábio e o tolo seguirem em direções opostas, em caminhos diferentes. Porém, é mais provável que o “lado direito”, aqui, seja uma referência literal à “mão direita”, como se a sabedoria fosse uma arma em sua mão destra, hábil e forte, dando a capacidade ao sábio de se proteger com ela (cf. 7.12). Quanto à menção do “coração do tolo” que pende para o “lado esquerdo”, lembra ao leitor que os benefícios do sábio não são aproveitados pelo insensato, que, ao contrário, é guiado por um coração voluntarioso, já descrito no livro como causador de muitos problemas e pecados (cp. 7.7,26; 8.11; 9.3).[1] Desse modo, os lados opostos seriam descrições figuradas da “capacidade do sábio” e da “incompetência do tolo”.

Dito isso, a introdução chega ao fim com mais uma figura (v.3): “Mesmo quando o tolo anda pelo caminho, falta-lhe direção e ele demonstra a todos o insensato que é”. A figura agora se dá em uma estrada ou um “caminho”. O “caminho” pode ser compreendido, a julgar pela segunda parte do versículo, como os lugares em que todos podem ver o tolo e o que ele faz. “Caminho” também pode ser uma metáfora para o estilo de vida de uma pessoa, como em Provérbios 5.6,8 e 11.5.[2] De qualquer modo, o texto diz que, andando por esse caminho, falta “direção” ao tolo, significando que ele age de modo diferente do que as circunstâncias exigem. Alguns intérpretes veem nessa falta de “direção” a falta de “entendimento”, o que realmente deve representar uma boa parte do problema. Entretanto, tolice não é apenas questão de conhecimento, mas também da decisão de fazer e agir da maneira correta, o que pode faltar até a alguém bem-informado. Desse modo, o tolo revela seu verdadeiro caráter, mesmo quando deveria ser mais reservado, pois “demonstra a todos o insensato que é”.

Feita a reflexão introdutória, o autor passa a abordar “o poder usado de modo insensato” (v.4-7), começando de trás para frente, com o conselho que devia dar ao final do trecho (v.4): “Se o governador se irar contra você, não deixe o seu lugar, pois a calma pode apaziguar grandes ofensas”. Essa é uma das duas orientações que Salomão dá aos seus leitores que desejam agir sabiamente. O que é curioso é que ele ainda não informou que razões o rei teria para se zangar com seu servo. A esse servo, o texto fala da possibilidade de “o governador se irar contra você”, ou, literalmente, “o espírito do governador se levantar contra você”. A figura do espírito ou ânimo de alguém se levantando ferozmente produz a ideia de uma reação tola, apontando o rei dessa frase como alguém insensato e seu servo, como quem tem de sabiamente se livrar da ira real, para seu próprio bem. O conselho dado ao servo é “não deixe o seu lugar” — o mesmo conselho dado em 8.3, que diz: “Não seja apressado para sair da presença do rei, nem se levante para defender uma causa ruim, pois o rei faz tudo que deseja”. A menção sobre o rei fazer “tudo que deseja” explica bem a razão que o servo tem para, caso queira ser sábio e alcançar os benefícios da sabedoria, permanecer no seu lugar ou no seu posto, sem se ausentar de maneira insolente e insubordinada. Ao contrário, ele é orientado a agir calmamente, “pois a calma pode apaziguar grandes ofensas”, possivelmente pela capacidade que a tranquilidade tem de reverter ânimos: “A resposta branda desvia o furor, mas a palavra dura suscita a ira” (Pv 15.1). Entretanto, ainda é preciso entender que tipo de problema faria o rei se irar desse modo.

A resposta a essa questão se encontra nos versículos seguintes, que apresentam o contexto que o escritor tem em mente e apresentam o motivo de ele aconselhar seus leitores de antemão. Diferente do texto de 8.3, em que a culpa pelo atrito podia ser tanto do rei como do súdito, aqui o problema está diretamente ligado ao rei (v.5): “Percebi que há outro mal debaixo do Sol. Trata-se de um erro cometido por quem governa”. Ao anunciar a observação de “outro mal” na esfera que ele repetidamente chama de “debaixo do Sol”, o escritor anuncia que versará sobre outras realidades vistas da perspectiva humana no decorrer da vida e das suas dificuldades, injustiças e contradições. A diferença é que a frase parceira — “isso também é futilidade” — e suas frases correlatas não aparecem nenhuma vez nesse capítulo. Talvez isso ocorra porque o escritor esteja tratando diretamente da tolice, que causa mais males do que se pode imaginar ou desejar, e não das tentativas humanas infrutíferas de tentar contornar as dificuldades e encontrar um sentido na vida, coisas que o Pregador alerta repetidas vezes sobre a futilidade de tais esforços.

O “erro cometido por quem governa” é apresentado nos próximos dois versículos (v.6): “Insensatos postos em muitos cargos de autoridade, enquanto ricos ocupam lugares inferiores”. Fica claro que “quem governa” é o responsável pelas nomeações a cargos públicos, aqui descritos como “cargos de autoridade” — literalmente, “muitos lugares elevados” — e como “lugares inferiores”. O mal aqui descrito, pintado como um erro crasso de planejamento e julgamento por parte do rei, é a inversão de papéis na estrutura administrativa e social, motivada provavelmente por caprichos pessoais, deixando em segundo plano homens que, em tese, deviam ser mais bem-preparados para cargos oficiais (cp. Pv 14.24; 19.10).[3] Pode-se estranhar o aparente preconceito do Pregador de que o rico é quem seria a melhor opção para cargos elevados. Entretanto, o texto não antepõe os ricos aos pobres, mas os “ricos” aos “insensatos”, transmitindo a ideia de que o benefício da riqueza, nesse caso, não é o poder que ela provê, mas a educação e o preparo que ela possibilita. Nesse caso, o rei deveria escolher seus funcionários mais bem-preparados para os cargos de maior visibilidade e responsabilidade, em vez de seguir critérios que, ao nomear insensatos, certamente não têm a ver com valor e capacidade pessoal, mas com interesses corrompidos do monarca, como bajulação e preferências questionáveis.

O quadro prossegue no versículo imediatamente a seguir (v.7): “Eu vi servos montados sobre cavalos e príncipes andando a pé como servos”. Esse texto pode parecer que contém a mesma imagem do anterior, mas não tem. Se, antes, os “insensatos” são definidos por sua estultícia e não por sua posição social, nesse caso, a figura do “servo” é socialmente gritante em contraposição aos “príncipes”. Os “príncipes” dos dias da monarquia se dividiam entre funcionários militares e civis do rei. Podiam ser, em cargos militares, comandantes de unidades ou o chefe de todo o exército (1Sm 8.12; 17.18,55; 2Sm 24.2,4; 1Rs 9.22; 2Rs 1.14; 11.4). Em cargos civis, podiam ser ministros (1Rs 4.2), governadores (1Rs 20.14; 22.26; 2Rs 23.8) ou funcionários importantes em geral (Jr 24.8; 20.10s; 34.19,21).[4] Desse modo, haver simples “servos montados sobre cavalos” enquanto há “príncipes andando a pé” constitui uma situação de grande desgaste. Príncipes que são obrigados a agir “como servos” enquanto veem servos em posição honrosa diante de todos, sobre cavalos — apresentação típica de reis —, certamente estavam a um passo da murmuração e de atitudes contrárias aos interesses do reino. O trecho “andando a pé” significa, literalmente, “andando no chão” ou “andando na terra”, ação característica de “servos” e certamente humilhante para “príncipes”. Talvez seja essa a razão do conselho do versículo 4, em que o rei tem motivos de ira contra pessoas da sua corte, talvez, por assumirem uma postura negativa ao serem negligenciados e desonrados.

A terceira área de observação e argumentação do escritor é ligada às “relações de causa e efeito da tolice” (v.8-11), ou, como poderíamos também chamar, as relações de ação e reação, também relacionadas às autoridades (v.8): “Quem abre uma cova pode cair dentro dela e quem derruba um muro pode ser picado por uma cobra”. Essa seção é formada por ditos proverbiais que carregam consigo lições que não precisam de muitas explicações para ser aplicadas a circunstâncias reais da vida. Utilizando-se do mesmo tipo de abordagem, podemos dizer que quem lê esses provérbios tem perfeitas condições de entender aonde o escritor quer chegar com elas, visto que, “para o bom entendedor, um pingo é uma letra”. Algo interessante de se observar é a estrutura quiástica que molda essa seção, com a citação da “cobra” nos textos externos (v.8,11) e a figura do “machado” e de quem “racha lenha” — certamente com um “machado” — nos versículos internos (v.9,10). Essa é uma evidência de que o escritor não jogou pensamentos soltos no capítulo, mas estruturou pontos em sua mente e os construiu cuidadosamente a fim de transmitir uma mensagem.

Seguindo o contexto de intrigas e cobiças nas altas esferas do poder, o Pregador fala de atividades como abrir “uma cova” e derrubar “um muro”. É claro que um coveiro e um pedreiro sempre fazem isso, mas quando o contexto nos coloca diante de uma corte em que o rei tolo dá espaço para inversões de papeis e ascensões questionáveis, tais atividades nos lembram do problema da vingança ou de tramar o mal contra outros. Por isso, o alerta é que abrir traiçoeiramente uma cova para um concorrente pode fazer com que o esforço recaia sobre quem se empenha nele. Da mesma maneira, quem derruba um muro para tomar um espaço que não é seu pode se ferir no processo, do mesmo modo que um invasor de terras pode ser picado por uma cobra e morrer enquanto trabalha para se apossar do terreno que não lhe pertence. Por isso, apesar de parecer esperteza política, tais pessoas são aqui descritas como tolos que arriscam suas vidas. Exemplos bíblicos marcantes que revelam a veracidade dessas observações sábias são Hamã, morto na forca que ele mesmo mandou fazer para Mordecai (Et 7.8-10), e os presidentes e sátrapas na Babilônia, mortos pelos leões que pretendiam que devorassem Daniel (Dn 6.23-24).

Infelizmente, nem sempre a justiça recai sobre os traiçoeiros e, muitas vezes, eles atingem seus objetivos derrubando pessoas honestas e capacitadas de seus cargos (v.9): “Quem arranca pedra pode se ferir com elas e quem racha lenha pode se lesionar com ela”. Aqui estão expostas ações menos maliciosas, vingativas e emocionais que as do versículo anterior. Mesmo assim, qualquer ato, incluindo os do trabalho diário, pode trazer grandes perigos e consequências quando são feitos de modo tolo por pessoas guiadas pela insensatez. O versículo 8 sugere que aqueles que traçam mal contra os outros muitas vezes veem seus planos virados contra eles mesmos, o que dá algum consolo ao homem justo que está competindo pelo favor real contra um causador de intrigas. Mas o versículo 9 lembra que mesmo aqueles que estão envolvidos em atividades legítimas — como extração de pedras ou corte de madeira — podem ser feridos no processo.[5]

É claro que esses dois versículos, apesar de não serem difíceis de compreender, têm relação com experiências rurais mais próximas da vida dos ouvintes originais do que atuais. Se fosse hoje, talvez o escritor dissesse que “quem brinca com fogo pode se queimar e quem provoca um touro pode ser chifrado”. Mesmo assim, não há grandes dificuldades de se compreender a relação de causa e efeito que o autor transmite. Os dois versículos seguintes apresentam essa mesma relação, mas o ponto que fica em relevo como resultado da tolice é o despreparo.

A primeira forma de despreparo é a falta de planejamento e de providências prévias (v.10): “Se o machado perde o corte e não é afiado, é preciso fazer mais força, mas a sabedoria obtém dele o melhor proveito”. Hoje em dia, mesmo em áreas urbanas, esse provérbio pode ser bem-compreendido. Entretanto, a compreensão moderna não alcança o tamanho real do problema descrito. A razão para isso é dupla: em primeiro lugar, pouca gente conhece o esforço de trabalhar com um machado o dia todo, em vez de usar ferramentas mais modernas que facilitam a tarefa. Em segundo lugar, quem já usou um machado nos nossos dias, mesmo que não durante todo um dia de trabalho, utilizou uma ferramenta de aço, e não de “ferro”, como na Antiguidade — “ferro” é o sentido da palavra hebraica usada aqui para descrever o “machado”. O machado de ferro perde o corte mais rápido e de modo mais acentuado, tornando o trabalho quase impossível sem que seja novamente afiado. Quando seu corte está cego, é preciso muito mais força e desgaste físico para executar a tarefa de cortar a madeira, de modo que é tolice iniciar trabalhos que não passaram por uma análise prévia sobre suas necessidades a fim de se tomar as devidas providências preparatórias.

A segunda forma de despreparo é a falta de pontualidade e prontidão, que impede a pessoa de estar preparado para as situações do dia a dia (v.11): “Se a cobra picar quando não está encantada, não há proveito para o dono da cobra”. A expressão “dono da cobra” significa, em hebraico, “dono da língua”. Porém, a palavra da mesma raiz, em língua ugarítica, representa a língua bipartida de uma cobra.[6] Além disso, de igual modo, a palavra hebraica aparece na expressão “língua da víbora” (Jó 20.16), dando a entender que o Pregador, provavelmente por questão de estilo, procurou usar um sinônimo para a “cobra” que ele mencionou no início da frase. Desse modo, o “dono da cobra” também pode ser nomeado como o “encantador”. Trata-se de uma atividade complexa que exige capacitação do encantador, o qual ganhava dinheiro fazendo exibições do seu controle sobre as víboras. Porém, se ele se descuidasse e deixasse uma cobra atacar alguém antes de estar no controle dela, não teria “proveito”, ou seja, não alcançaria o pagamento que almejava. Ao contrário, estaria em sérios problemas. Essas atividades — cortar madeira e fazer exibições com cobras — eram realizadas, normalmente, por pessoas simples, mas a lição é endereçada a todos e, aqui, especialmente para os servidores da corte, cuja tolice lhes traria danos caso estivessem despreparados para realizar suas atividade e enfrentar problemas inesperados, como a ação de promotores de intrigas e percalços próprios da atividade de liderança.

A quarta área de observação e argumentação do escritor tem relação com “as palavras do tolo” (v.12-15) e os males que elas lhe causam (v.12): “A palavras do sábio lhe são favoráveis, mas os lábios do tolo devoram ele mesmo”. O escritor se vale da comparação com o sábio a fim de demonstrar o tamanho da loucura de quem não sabe controlar suas palavras. A expressão “lhe são favoráveis” quer dizer “obtêm favor”, ou seja, produzem vantagens para aquele que as diz, o qual passa a ser respeitado e benquisto por quem o ouve. Por outro lado, o tolo, com o uso de suas palavras, acaba produzindo um efeito autodestrutivo que lhe custa caro. Dizer que “os lábios do tolo devoram ele mesmo” é formar uma imagem na qual os lábios se movem como se estivessem a mastigar a própria carne do insensato. Quem dera mastigassem sua língua, mas ele continua a falar para seu próprio dano.

A explicação para tantos danos pessoais é a qualidade daquilo que o insensato diz (v.13): “As primeiras palavras da boca do tolo são insensatez e as últimas, loucura perversa”. As palavras “loucura” e “insensatez” aparecem juntas, em 1.17 e em 2.12, como parte do campo de pesquisa do escritor e apontam para “ideias tolas e cegueira mental” somadas a “procedimentos tolos”. Outra coisa a se notar na construção da frase é que, ao citar as qualidades das “primeiras” e das “últimas” palavras do tolo, o escritor não está abrindo espaço para a ideia de que, entre elas, ele se torne sábio e fale coisas adequadas. Trata-se, em vez disso, de uma construção na qual o autor quer dizer que, “do começo ao fim, as palavras da boca do tolo são insensatez e loucura perversa”. Com isso, o escritor descreveu os “efeitos danosos” (v.12) e a “qualidade” (v.13) das palavras do insensato. Mas ele ainda não explicou em que contexto elas se manifestam e causam tantos problemas.

A resposta a essa questão vem no versículo seguinte (v.14): “O tolo fala demais. Não há homem que saiba o que virá pela frente. Quem pode dizer o que ocorrerá no seu futuro?”. A primeira frase do versículo — “o tolo fala demais”, que significa, literalmente, “o tolo multiplica palavras” — costuma ser ligada, por alguns tradutores e comentaristas, ao versículo anterior. Porém, ela parece estar no lugar correto, pois o restante do texto a explica e dá ao versículo uma ideia que se soma à do anterior. A afirmação de que “o tolo fala demais” está ligada ao trecho que diz que não há quem saiba “o que virá pela frente”, que aponta para “o que acontecerá” depois, ou seja, ocorrências futuras da vida. Esse versículo contém pensamentos semelhantes ao de 6.12, que diz: “Quem sabe o que é melhor para o homem nos poucos dias da sua vida de futilidades? Pois eles se passam como a sombra. Quem pode dizer ao homem o que ocorrerá no seu futuro, debaixo do Sol?”. Parece que é justamente por causa da impossibilidade de se anunciar o futuro e de se garantir coisas que ainda não aconteceram que o tolo multiplica palavras insensatas e loucas.

Com isso, o escritor parece apontar para conselhos tolos, bravatas ou garantias insensatas que não se cumprem e que são cobradas depois de quem as proferiu, para seu próprio dano. A Bíblia contém alguns exemplos da tolice de anunciar e garantir algo que não é certo. Um deles se vê em Hananias, que contradisse a profecia de Jeremias, anunciando que não haveria exílio e que, em dois anos, os utensílios levados por Nabucodonosor seriam trazidos de volta. Hananias morreu dois meses depois disso e a profecia de Jeremias se mostrou verdadeira (Jr 28). Os espias enviados a Canaã, que tola e incredulamente fizeram previsões erradas de que a terra não poderia ser tomada pelos israelitas, também morreram como juízo por suas palavras insensatas (Nm 14.36-38). Um capitão da guarda real que contradisse a previsão de Elias também acabou morto por causa da insensatez de suas desnecessárias palavras (2Rs 7.1-2,16-20). Exemplos opostos, de servos que não quiseram arriscar palpites, provavelmente por saber não serem capazes de anunciar o que não conheciam, nem de prever o que não estava garantido, podem ser vistos nos servos do faraó (Gn 41.8) e de Nabucodonosor (Dn 2.10-11), quando chamados a explicar o que não podiam.

A tolice de arriscar palpites em questões de liderança, dando como certo o que não pode ser garantido, é ilustrada na frase seguinte (v.15): “O trabalho do tolo lhe traz cansaço porque ele não sabe nem como ir à cidade”. O problema descrito aqui parece ser de o tolo desprezar o aprendizado de coisas que todos, de modo geral, devem saber para viver de modo mais simples e sábio. Mas ele não apenas não quer aprender — essa é a marca clássica da tolice —, mas, muitas vezes, até se vangloria de não saber e de não ter perdido tempo com tais aprendizados, como se isso fosse sinal de esperteza. É claro que alguém assim não é declarado realmente um tolo até demonstrar que, além de ignorância, é marcado também pela teimosia, a qual o impede de aprender quando precisa e de ouvir conselhos de quem sabe mais que ele. O insensato se arvora na desculpa de que sempre fez desse modo e continua a fazê-lo, sem avanço ou desenvolvimento algum em sua vida. Assim, diante da imprevisibilidade dos acontecimentos (9.11-12) e de infortúnios que ocorrerem em situações de trabalho (v.7-11), o homem deve se armar de conhecimento e diversificar seus interesses para estar mais bem-preparado para enfrentar as desventuras da vida.[7]

Quanto ao texto falar que o tolo “não sabe como ir à cidade”, há muitas propostas, feitas por comentaristas, sobre como seu trabalho seria mais fácil se ele fosse a uma cidade e adquirisse ferramentas adequadas e vendesse seus produtos diretamente ao consumidor final, recebendo mais por eles. Porém, o dito do Pregador não se parece com a descrição de um problema específico, mas com um tipo de figura de linguagem hiperbólica que aponta para a condição de ignorância que traz cansaço ao tolo em seu trabalho. Seria lançar mão de um exagero a fim de enfatizar o problema real, mais ou menos como dizer: “Ele não sabe nem comer com garfo e quer explicar coisas que não sabe” ou “não sabe nem pentear o cabelo sozinho, mas se mete a fazer coisas complicadas e difíceis”. Desse modo, o versículo 15 serve para reprovar o defeito tolo exposto no versículo 14, que é falar “demais” sobre “o que virá pela frente” e “o que ocorrerá no seu futuro”, sem ter capacidade para tanto e arriscando, com isso, seu nome, sua posição e sua segurança.

A quinta e última área de observação do escritor aponta para “a licenciosidade e o perigo de líderes insensatos” (v.16-20), junto com seus efeitos não apenas sobre a corte, mas sobre toda a sociedade (v.16): “Ai de você, ó terra cujo rei é imaturo e cujos príncipes estão comendo logo de manhã”. A frase começa com a interjeição “ai de você”, que representa, na sintaxe hebraica, um clamor de aflição,[8] o que oferece um pano de fundo adequado à compreensão dos grandes males produzidos por esse tipo de insensatez a toda a “terra”, ou à nação que vive debaixo de líderes tolos. A palavra que qualifica esse tipo de “rei”, traduzida aqui como “imaturo”, tem o significado de “jovem”, não sendo possível definir se o escritor pensava em uma criança, em um adolescente ou em um jovem rapaz. O que fica patente em qualquer uma dessas possibilidades é a imaturidade que ele tem para as grandes responsabilidades de governar um país. Trata-se de um quadro em que o jovem rei é tanto inexperiente como incapaz. A julgar por seus pares, na segunda parte do versículo, tolice é uma marca adicional na condição desse monarca. Essa é a condição em que Salomão, ao assumir o trono, viu-se e temeu pelo povo, buscando sabedoria em Deus para poder governar: “Agora, pois, ó Senhor, meu Deus, tu fizeste reinar teu servo em lugar de Davi, meu pai; não passo de uma criança, não sei como conduzir-me” (1Rs 3.7).

Quanto aos “príncipes”, já foi dito quem eram no comentário a respeito do versículo 7. Todos eles tinham acesso à mesa do rei. Ao apontar de modo reprovador para sua ação de estar “comendo logo de manhã”, o escritor não está pensando em uma mesa de café da manhã desfrutada por quem vai trabalhar, mas em um banquete, em um horário completamente impróprio, regado a bebidas, já que essa é a comparação que ele usa no versículo seguinte. A descrição é de um grupo de pessoas sem autocontrole que busca seus prazeres a todo instante, sem se importar com o que é preciso fazer e com o que é adequado. Quem banqueteia e se enche de bebidas fortes logo pela manhã, certamente não desenvolverá suas tão necessárias atividades mais tarde — ou, pelo menos, não da maneira devida. Isso também revela que o que interessa a tais pessoas é apenas o desfrute pessoal do prazer e da satisfação e não o cumprimento de suas responsabilidades. É óbvio que gente assim não liga para o povo e o faz sofrer, tanto por suas ações como por sua negligência.

O problema descrito pelo escritor é tão sério que ele não se contenta apenas em expô-lo, mas o põe em relevo ao compará-lo com um país cuja liderança é sábia e valorosa (v.17): “Afortunada é a terra cujo rei é filho de nobres e cujos príncipes comem no momento apropriado, com atitude valorosa e não com bebedeira”. Diferente do primeiro caso, em que clamou “ai de você”, o pregador chama essa “terra” bem-liderada de “afortunada” ou “abençoada”. Ao dizer que há uma grande vantagem em o “rei” ser “filho de nobres”, o escritor não está pensando exatamente em genealogias e linhagens de sangue real, mas na atitude com que tal pessoa foi, desde o berço, educada a fim de assumir, futuramente, seu encargo no trono. Assim, mais do que uma linhagem real, o texto aponta um “espírito nobre” ou uma “atitude de nobres” nesse monarca, que é motivo do desenvolvimento nacional e da alegria do povo. Quanto ao modo de se portar dos príncipes dessa pátria feliz, outra possibilidade de tradução para “com atitude valorosa e não com bebedeira” seria “para fortalecimento do corpo e não para bebedeira”, compondo, basicamente, o mesmo quadro de responsabilidade e autocontrole que se espera de líderes dignos e capacitados a cumprir bem suas funções.

Como a negligência é o problema primordial criado por quem começa a banquetear e beber “logo de manhã” (v.16), o Pregador não deixa de apontar para esse mal (v.18): “O telhado desaba por causa de muita preguiça e a casa goteja por causa de mãos desocupadas”. O “telhado” é a tradução de uma palavra que pode apontar para as “vigas do telhado”, as quais, “por causa de muita preguiça”, começam a se corroer, iniciando um processo de contínua decadência, frequentemente causado pelo tolo.[9] A expressão “mãos desocupadas” também significa, de modo mais direto, “ociosidade”. Nesse ponto, a reflexão recai sobre a ociosidade dos governadores e líderes que buscam diversão antes de suas responsabilidades. A comparação é muito didática, descrevendo um telhado que, por descuido e desleixo de seus cuidadores preguiçosos, começa aos poucos a ver seu madeiramento ruir e suas telhas deslocadas permitirem a entrada de água, em goteiras. O fim desse telhado é o desabamento, causando danos a quem está debaixo dele e prejuízos desnecessários que podiam ser evitados apenas com disciplina e trabalho.

Mas não é assim que pensam os líderes insensatos que buscam apenas seu prazer imediato e o cumprimento de suas vontades. Ao contrário, eles veem no poder e no dinheiro que têm à disposição uma ferramenta a ser utilizada para a satisfação plena dos seus desejos (v.19): “O pão é feito para a diversão, o vinho alegra a vida e o dinheiro responde por tudo”. Essa é a frase mais difícil de compreender em todo o capítulo, pois tanto pode ter uma conotação positiva como negativa, o que não fica claro nela mesma. Contudo, o contexto não parece abrir muito espaço para um sentido positivo dessa frase, mas sim para uma explicação a respeito dos problemas da falta de autocontrole (v.16) e de ociosidade (v.18) por parte dos líderes tolos que vivem para se deleitar com “pão” e “vinho”, alcançando “diversão” e “alegria”.

A afirmação de que “o dinheiro responde por todos” pode significar que ele paga por todos esses banquetes ou que ele paga para resolver problemas causados em função dos festins insensatos, isentando os maus de suas responsabilidades. Talvez seja por isso mesmo que tais líderes ajam assim, pensando que o dinheiro lhes dá o direito de, pagando, fazer o que quiserem e se divertir o quanto puderem, sem se importar com o que isso representará para as pessoas que são lideradas por eles e que dependem da sua justa e dedicada atuação no meio da sociedade. É muito difícil para um cidadão comum se levantar contra alguém poderoso e rico que tem influências políticas e cargos oficiais. O dinheiro e as conexões de tais líderes são capazes de calar todos os litigantes.

Pensando justamente nisso, o Pregador dá o segundo de dois conselhos presentes no capítulo aos homens que querem ser sábios em um mundo mau (v.20): “Não insulte o rei nem no seu pensamento, nem o homem rico no seu quarto, pois as aves do céu poderiam levar a notícia e os seres dotados de asas poderiam delatar suas palavras”. Esse texto traz uma aplicação prática para as lições anteriores sobre a tolice de se falar o que não deve (v.12-14) e sobre a insensatez instalada nas esferas governamentais (v.16-20). A ordem “não insulte” também pode significar “não amaldiçoe” ou “não maldiga”. Ela aponta para o perigo de se falar mal daqueles que têm o poder nas mãos. O alerta sobre “as aves do céu” e “os seres dotados de asas” relatarem as palavras ditas em segredo é similar ao alerta moderno que diz que “as paredes têm ouvidos”, de modo que deve se tomar cuidado com o que se diz. Assim, a primeira aplicação é que o sábio não deve confiar sua segurança à discrição das pessoas com quem fala e de quem pede segredo. Ele pode ser traído e sofrer consequências.

A segunda aplicação é que o sábio, mesmo em épocas de injustiças, deve evitar o enfrentamento com autoridades contra quem ele não tem poder para se defender. Isso não quer dizer que o sábio deve dar razão ou apoiar os erros dos líderes, mas que ele deve primar por sua segurança e bem-estar, escolhendo bem as batalhas que deve lutar. O sábio não pode entrar em uma batalha dessas sabendo que vai perder, pois isso não é fruto da sabedoria, nem de uma atitude sensata. Diferente de hoje, em que há mais controles e filtros sobre o poder dos líderes, no passado, a figura do rei rivalizava até mesmo com a dos intérpretes oficiais da vontade de Deus e, como tinha poder em suas mãos, acabava reduzindo-os ao silêncio ou limitando bastante sua liberdade de movimentos.[10] Esse poder era ainda maior sobre cidadãos comuns, razão pala qual pouca gente clamava por justiça, pois sabiam que os reis tolos se valem tolamente de seu poder para fazer o mal. Assim, mesmo que a sabedoria contenha o homem de se manifestar publicamente contra alguém, ela deve lhe dar também o cuidado para não sofrer por causa de críticas feitas em particular,[11] aceitando o fato de que os sábios têm de viver de modo sensato em um mundo cheio de tolos.

Como as pessoas são e sempre foram muito impressionáveis com o poder e o dinheiro, é comum que os ricos e poderosos sejam vistos como pessoas cujas palavras devem ser ouvidas e seguidas. Muitas vezes, elas mesmas se veem desse modo, achando que suas riquezas fazem delas pessoas superiores e seus pensamentos, melhores. Por isso, tanta gente quer imitar pessoas famosas que agem como loucos. Mas quando o Pregador expõe toda a tolice que os líderes podem exibir, fica patente que qualquer um pode ser alvo da tolice e que os recursos financeiros e poderes políticos e administrativos apenas facilitam a insensatez de quem quer se entregar à loucura. Isso deve tirar nossos olhos das pessoas, quando procuramos por referências, e elevá-los, acima do céu, em direção ao Deus sábio a quem devemos temer e imitar. Ele é o rei justo em quem devemos confiar e a quem precisamos seguir com sabedoria, temor e valor.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 324.

[2] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 359.

[3] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1001.

[4] de Vaux, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 93.

[5] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 335.

[6] Koehler, Ludwig; Baumgartner, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Leiden: Brill, 2000, p. 536.

[7] House, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005, p. 611.

[8] Waltke, Bruce K.; O’Connor, M. Introdução à Sintaxe do Hebraico Bíblico. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 681-682.

[9] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 145.

[10] Eichrodt, Walter. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2004, p. 394.

[11] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 575.

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