Lições de Tiro
Em primeiro lugar, esse texto prova que Deus não salva as pessoas com base no poder que ele tem de prever a resposta positiva delas à sua mensagem. É bom entender isso porque existe um grupo de teólogos e de pastores que, quando leem na Bíblia alguma coisa sobre a doutrina da predestinação, ficam muito incomodados, perguntando: “Como Deus pode predestinar uns e não outros para serem salvos?”. Então, para se livrarem das dificuldades dessa questão, dizem que Deus predestina somente as pessoas que ele vê de antemão que se arrependerão.
Esses teólogos e pastores geralmente são chamados “arminianos”, porque seguem de alguma forma os desdobramentos dos ensinos de um teólogo holandês medieval chamado Jacó Armínio (1560-1609). Para grande parte deles, quando Deus escolheu na “eternidade passada” quem seria salvo (Ef 1.4), ele o fez com base na sua presciência. Assim, conforme o entendimento de muitos arminianos, a predestinação foi, de certa forma, meritória: Deus viu de antemão quem creria e, então, decidiu escolher essas pessoas.
O texto que estamos considerando, porém, mostra o quanto esse pensamento é falso. Com efeito, nesse texto, Jesus afirma que os habitantes de Tiro e Sidom e até de Sodoma creriam caso testemunhassem suas maravilhas. Porém, mesmo sabendo que as coisas seriam assim, Deus não salvou os habitantes daquelas cidades. Aliás, no tocante a Tiro e Sidom, mesmo vivendo relativamente perto delas, Jesus jamais sequer as visitou. Desse modo, ele nunca lhes ofereceu a oportunidade de crer; nunca as escolheu para serem alvos de sua graça, mesmo sabendo de antemão que creriam nele.
Isso aconteceu, entre outras coisas, para nos mostrar que a eleição de Deus não depende da fé prevista. Se fosse assim, a causa primordial da salvação estaria no homem e não em Deus. Por isso, para provar que a predestinação não depende da disposição das pessoas, mas sim unicamente do modo soberano como o Senhor administra sua misericórdia (Rm 9.16), Tiro, Sidom e Sodoma nunca receberam sequer um convite ao arrependimento, apesar de Deus saber que elas, quebrantadas, atenderiam de pronto a esse convite, caso tivesse sido feito.
Outra coisa que me faz gostar do texto de Mateus 11.21-24 é que nele há indícios de que o castigo de Deus é aplicado em doses diferentes, dependendo do grau de dureza e rebeldia da pessoa que é castigada. Quando eu era acadêmico de direito, aprendi que a justiça consiste em tratar os desiguais de maneira desigual, na medida de suas desigualdades. Acho que é possível vislumbrar esse conceito no texto bíblico sobre o qual estamos refletindo aqui. De fato, Jesus diz nessa passagem que aquelas três cidades perversas a que se referia não escapariam do juízo vindouro, mas Corazim, Betsaida e Cafarnaum seriam tratadas com rigor maior naquele dia. Parece, assim, que alguns incrédulos sofrerão castigos mais pesados (Mt 23.14), com base em critérios que Deus adotará em seu sábio e soberano julgamento.
Eu sei que essas afirmações podem trazer intrigantes desdobramentos para a doutrina da perdição eterna. Porém, creio ser ousado e imprudente tentar construir esses desdobramentos aqui, até porque a Bíblia quase não trata desse assunto. E se ela diz quase nada sobre isso, acho que eu devo dizer quase nada também. Sobre as coisas de que Deus fala pouco, quem fala muito é louco! (Acabei de inventar esse ditado. Se for usá-lo não esqueça de me dar o crédito).
Finalmente, gosto de Mateus 11.21-24 porque esse texto mostra que Deus não sabe somente o que aconteceu, o que acontece e o que acontecerá. Ele sabe também o que aconteceria! Jesus sabia o que teria ocorrido em Tiro e Sidom caso ele tivesse ido até lá. Sabia que a história horrível de Sodoma teria sido muito diferente, caso os milagres que ele operava tivessem sido feitos ali. Conhecendo, assim, tudo o que aconteceria, ele seguiu um plano específico de ação que, podemos acreditar, era o mais sábio, justo e bom, mesmo envolvendo a exclusão dessas cidades da sua obra de graça.
Saber que Deus conhece o que aconteceria deve trazer conforto ao nosso coração quando a sombra da dúvida pairar sobre ele. Sim, quando perguntas do tipo “o que teria acontecido se...?” incomodam a nossa alma, podemos descansar certos de que o Senhor conhece todas as hipóteses e todos os desdobramentos dessas mesmas hipóteses. Ele sabe o que virá e sabe o que viria. E no meio de tantas possibilidades, ele escreveu nossa história como ela é, não como seria (Sl 139.16). Nisso também é possível ver sua bondade e graça. Pois foi nesta história, às vezes triste e frustrante, que ele nos salvou. Em outra, não nos salvaria.
Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria