Sábado, 12 de Outubro de 2024
   
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Salmo 134 - A Bendição do Servo e a Bênção de Deus

 

Encontrei, certa vez, uma moça que estava afastada da igreja por haver deliberadamente escolhido viver em situação de pecado. Apesar da possibilidade que havia de aquela triste condição ser revertida, a moça se mostrava bastante decidida em mantê-la. Então, como modo de, ao mesmo tempo, apontar sua situação irregular e a disposição da igreja de perdoar e receber de volta o arrependido, eu disse a ela: “Estou orando por você!”. A resposta dela me deixou aturdido! Ela disse: “Ore mesmo por mim, pois vou prestar um concurso em tal dia e preciso da ajuda de Deus”. Eu não sabia se ria ou lamentava. Pensei comigo: “Será que ela entendeu que eu estava orando para que ela fosse feliz e abençoada em suas ações e não para que se arrependesse do pecado?”. E como eu poderia pedir ao Senhor que abençoasse alguém que, deliberadamente, se afastou dele e que cuspia na comunhão obtida pelo sacrifício de Jesus na cruz? Apesar de Deus ser capaz de fazer qualquer coisa, a comunhão com ele filtra que tipo de ações ele rende aos seus, pelo que diz Isaías: “Eis que a mão do Senhor não está encolhida, para que não possa salvar; nem surdo o seu ouvido, para não poder ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.1,2). Por isso, realmente não orei a Deus para que a abençoasse no tal concurso, mas continuei a clamar por arrependimento e retorno à comunhão dos santos, mesmo que, para isso, o Senhor tivesse de discipliná-la.

 

O ato de demonstrar gratidão pelas grandezas divinas ou de clamar por alguém pelas bênçãos do Senhor se chama “bendizer”. A palavra hebraica para tal ação é barak, a mesma usada para descrever a ação de Deus de conceder bênçãos. Então, quando Deus efetua tal ação, o sentido da palavra é “abençoar”. Porém, como o homem não tem a mesma capacidade de efetivar bênçãos, ao ser o autor da ação do verbo barak, o significado passa a ser “bendizer” — a visão supersticiosa dessa atividade, a qual acredita que o homem tem poder em si, é retratada pela palavra “benzer”. Assim, é no sentido de “bendizer” que as pessoas descritas no Salmo 134 atuam. Esse é o último dos salmos nomeados como “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt). Ele era cantado pelos peregrinos quando sua viagem havia chegado ao fim, seu propósito fora completamente atingido e eles estavam em pleno curso da adoração comunitária a Deus no Templo. No decurso do culto, o salmo expressa um chamado aos adoradores (vv.1,2), chamado esse feito por um homem, o próprio salmista ou, possivelmente, o sumo sacerdote, e a resposta que é a ele dirigida (v.3) — essas pessoas são identificadas pelos pronomes masculinos plurais dos vv.1,2 e pelo pronome masculino singular do v.3. Assim, o chamado do salmista ou do sacerdote é que o povo pratique a bendição a Deus, ou seja, a oração de uns em favor dos outros. Por isso, o salmo serve para assentar três pontos cardeais na prática da bendição pelos servos do Senhor.

O primeiro ponto cardeal do salmo é que as bendições pressupõem ligação do abençoado com Deus (v.1). O homem que se dirige ao povo diz em alta voz (v.1a): “Atenção! Bendizei vós ao Senhor, todos os servos do Senhor” (hinneh barakû ’et-yhwh kol-‘avdê yhwh). Apesar da segunda parte do versículo dizer que esses serviam a Deus “de noite” — o que faz com que alguns comentaristas associem tais servos com os levitas que trabalhavam no Templo —, o tom do salmo e sua ocasião de execução parecem descrever como servos do Senhor todos os adoradores ali presentes. A ordem de bendizer a Deus tem aqui o sentido de orar por bênçãos — esse sentido é compreendido pelo modo como o povo reage ao chamado, não louvando a Deus, mas clamando por sua ação abençoadora em favor do dirigente do culto (v.3).

Uma dificuldade na compreensão de tal chamado é que não se oferece o alvo das orações do povo. Entretanto, a falta de especificidade do pedido sugere que bendição deveria ser em favor de todos, como se dissesse: “Clamem a Deus por todos nós, ó servos do Senhor”. Contudo, mesmo que o chamado visasse à oração pelo povo em geral, ele é feito às pessoas ali presentes, àqueles (v.1b) “que permaneceis na casa do Senhor durante as noites” (ha‘omedîm bevêt-yhwh ballêlôt). Trata-se dos adoradores que, comprometidamente, deixaram seus lares e seus interesses econômicos para estar diante de Deus e lhe prestar todas as homenagens e louvores, de manhã até a noite, por vários dias. Essa ligação com Deus era pressuposta para que buscassem a Deus em oração uns pelos outros. Afinal, que vantagem haveria na oração dependente de quem orgulhosamente se mantinha longe do Senhor e da obediência a ele?

O segundo ponto cardeal é que as bendições requerem a busca por santidade de vida (v.2). Se o orgulho, a rebeldia e a independência de Deus não eram os solos para serem plantadas as bendições em favor dos irmãos, a impureza e o pecado também não. Por isso, o dirigente do culto diz em alta voz (v.2): “Levantai vossa mão santa e bendizei ao Senhor” (se’û-yedekem qodesh ûbarakû ’et-yhwh). A segunda parte do versículo repete o que foi dito no texto anterior, mas o início do v.2 introduz a maneira como a bendição deveria ser realizada. Apesar de a maioria das traduções trazer algo do tipo “levantai vossas mãos ao santuário”, o texto hebraico não traz nenhuma preposição locativa ou artigo ligados à palavra qodesh (santo/santuário) — como ocorre em Sl 28.2 —, demonstrando se tratar de um adjetivo e não de um substantivo, o qual combina em número com a expressão “vossa mão” (yedekem). Assim, parece que os dizeres de Paulo a Timóteo refletem exatamente a ideia em questão: “Quero, portanto, que os varões orem em todo lugar, levantando mãos santas, sem ira e sem animosidade” (1Tm 2.8).

Levantar as mãos é um gesto que expressa oração e adoração. Era exatamente isso que Israel fazia diante de Deus no Templo. Entretanto, a atenção não recai tanto sobre a ação quanto sobre o modo de realizá-la: em santidade. Para os israelitas, a expressão “mão santa” podia ter relação com a observância dos mandamentos relativos à impureza cultual, de modo que ninguém que não havia sido purificado ritualmente poderia prestar tal adoração no Templo. Entretanto, o sentido primário certamente era a própria santidade e pureza de vida, já que Deus se importava menos com o rito em si que com o coração e a devoção dos adoradores (1Sm 15.22; Os 6.6). Por isso, tanto na epístola paulina como nesse salmo, a orientação é manter a pureza por meio da obediência, do arrependimento e do perdão para que, sem qualquer impedimento, se possa elevar a voz a Deus suplicando por si e por outros.

O último ponto cardeal é que as bendições necessitam da ação abençoadora do Senhor (v.3). O final do salmo condena ao esquecimento a ideia supersticiosa do benzimento. Longe de realizar um ritual como que mágico a fim de promover o benefício do homem que dirigiu as palavras dos vv.1,2, o povo responde as orientações dos versículos precedentes, dizendo (v.3): “Que o Senhor, o criador dos céus e da Terra, te abençoe de Sião” (yevarekka yhwh mitsîyôn ‘oseh shamayim wa’arets). Dois fatores notáveis merecem atenção nesse texto. O primeiro é o autor da bênção. Se é o povo quem promove a bendição, o responsável pela bênção é o Senhor em pessoa. Ao agir, seu poder soberano é o lastro para que as bênçãos aos seus servos sejam efetivadas, motivo pelo qual o seu poder criador é mencionado aqui. O mesmo Deus que criou tudo que existe, sejam os céus, seja a Terra, seria o responsável por abençoar seus servos. Por isso mesmo, a ele se dirigiam as orações. Ao homem cabe a função de ser o receptor dependente de tais benesses.

O segundo fator notável é a menção de Sião como local de onde partem as bênçãos aqui preditas. A ideia do escritor não parece ser simplesmente o local em que os clamores eram apresentados. Sião não é apenas o local da manifestação das benevolências de Deus, mas a fonte delas. Trata-se de uma referência ao local em que Deus, representativamente, habitava entre o povo e de onde atuava em seu favor. É também referência às esperanças que Israel tinha de redenção e restauração escatológica pelo que viria a acontecer em Jerusalém com a vinda do rei Messias para reinar sobre eles e sobre as nações. Esses homens pareciam saber que, sem a ação abençoadora de Deus, não existiria uma bênção sequer — nem para Israel, nem para os povos, tanto no presente como no futuro.

Quantas lições preciosas e práticas aprendemos com esse salmo! Em primeiro lugar, também somos chamados a orar por nós mesmos, por nossas famílias, por nossa igreja e por todos os crentes ao redor do mundo. Também aprendemos que é necessária a manutenção da comunhão com o Senhor, por meio da santificação de vida, a fim de termos as condições ideais para buscá-lo em oração sem que nosso pecado nos torne antes dignos de disciplina que de bênçãos. Finalmente, somos lembrados de algo que a cristandade tem se esquecido — ou que tem trabalhado duro para esquecer — a respeito de quem Deus é: o Senhor soberano sobre a Terra e o determinador dos rumos da história, quer mundial, quer pessoal. Olhar com respeito e valor para tais princípios evidencia nossa própria identidade como “servos do Senhor”.

Pr. Thomas Tronco

 

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