Salmo 102 - O Microcosmos das Alianças de Deus
Na coleção de documentos da Casa Branca, nos Estados Unidos, há uma carta de uma criança, escrita em setembro de 1895, endereçada ao presidente Cleveland. Seu conteúdo é mais ou menos assim: “Para sua majestade (sic), o presidente Cleveland: Caro presidente, eu estou em um terrível estado de espírito e pensei em lhe escrever e contar tudo. Há cerca de dois anos eu usei dois selos postais que já tinham sido usados antes em correspondências, talvez mais de duas vezes. Eu não percebi o que eu fiz até recentemente. Tenho pensado nisso dia e noite. Assim, caro presidente, o senhor poderia me perdoar? Eu prometo nunca mais fazer isso. Segue incluso o dinheiro referente a três selos. Perdoe-me, pois estou sinceramente arrependido do que fiz. De um dos seus súditos (sic)”.
Essa é uma correspondência muito interessante. Nas várias vezes que a li, surgiram sentimentos diversos como o bom humor – ri algumas vezes da inocência e dos termos bem intencionados, mas equivocados, do jovenzinho. Outro sentimento despertado durante as leituras foi certa emoção ligada à percepção do conceito de honra mesmo em um pequeno rapaz. Entretanto, algo que me marcou foi o encorajamento de ver um jovem confessar um erro que jamais seria descoberto de outro modo e reparar o dano causado enviando o dinheiro devido. Essa é a verdadeira demosntração de arrependimento e mudança de coração que deve marcar a vida de todos os cristãos, incluindo os do nosso tempo. Nesse sentido, o Salmo 102 guarda certas semelhanças. Por um lado, o salmista também está atribulado e enfrentando um estado de espírito terrível. Por outro, ele reconhece o erro das suas ações – ou do povo de Judá – e percebe que há consequências em se agir contra o bem. Não podemos deixar de notar que o salmista, assim como aquele pequeno rapaz que escreveu ao presidente americano, também tinha a esperança de ser alvo do perdão supremo.
O salmista não parece estar no final de uma vida longa, como dizem os que sugerem ser Daniel, em avançada velhice, seu compositor (vv.23,24) – apesar de certos trechos darem a impressão de que Jerusalém estava abandonada há tempos (vv.13,14). Entretanto, a aflição do escritor não parece ser fruto de uma reflexão sobre a triste condição que há tempos se abate sobre uma cidade que não vê, mas, sim, da observação presente da calamidade da cidade que ama e do povo a que pertence – suas ações são de profundo luto (vv.4-7,9), há inimigos que o perseguem por causa da calamidade (v.8) e a ira de Deus não parece estar prestes a acabar, mas em pleno decurso (v.10). Na verdade, as características ligadas ao contexto e a forte semelhança com o livro de Lamentações colocam Jeremias – ou alguém que compatilhou da sua realidade e que conhecia sua teologia – como um possível compositor do salmo. De qualquer modo, assim como no livro de Jeremias, é possível ver que o salmo engloba boa parte da teologia e da esperança dos servos de Deus do ponto de vista dos israelitas da antiga aliança. Duas verdades teológicas marcantes no Antigo Testamento ficam em destaque.
A primeira verdade teológica presente no salmo e em todo o Antigo Testamento é a repreensão do mal prevista na aliança condicional – aliança mosaica. Diferente do que alguns comentaristas bíblicos possam dizer, o salmista sabe sim a razão do seu sofrimento – não é como no caso de Jó, cujas razões da angústia lhe escapavam à compreensão. Plenamente cônscio das cláusulas de castigo pela desobediência inseridas na aliança mosaica (Lv 26; Dt 28), ele atribui os acontecimentos que se abateram sobre ele e sobre a cidade de Jerusalém à ira divina contra os pecados israelitas e à sua consequente condenação (v.10): “Por causa da tua indignação e da tua ira, visto que me elevaste e me lançaste [abaixo]” (miffenê-za‘amka weqitspeka kî nesa’tanî wattashlîkenî) – o texto diz apenas “me lançaste”, mas sua ideia é a de reverter a ação anterior de elevar. Desse modo, a bênção oferecida no passado (Lv 26.3-13; Dt 28.1-14) seria, agora, revertida e transformada em castigo, conforme estipulado na aliança mosaica (Lv 26.14-39; Dt 28.15-68).
O resultado desse tratamento punitivo é a exposição, por parte do salmista, de uma tristeza tão profunda que não pode deixar de ser percebida e até sentida pelos leitores. Desde o título do salmo é possível ver o ânimo do escritor, pois se descreve como alguém “angustiado” (‘anî) e “que está a desfalecer” (kî-ya‘atof). Ele expõe a Deus seu clamor angustiado (vv.1,2) com termos sugestivos como “minha súplica” (tefillatî), “meu grito por socorro” (shawatî), e “dia da minha aflição” (yôm tsar lî). A partir de então, o salmista passa a descrever seu estado de abatimento por meio de comparações marcantes e tristes. Ele se descreve como alguém a quem o tempo está consumindo (v.3,11) e que está para morrer antes da hora (vv.23,24). Sua alegria se dissipou de modo que nem sequer tem o desejo de se alimentar (v.4). O sentimento de aflição é tão grande que ele passa a sentir efeitos psicossomáticos que lhe causam dores corporais (v.5). Entre suas reações estão insônia frequente (v.6,7) e choro amargurado (v.9). Não é para menos, pois, além de ver o sofrimento do seu povo, ele também se tornou alvo da amargura alheia (v.8) pelo que está acontecendo com Judá e, mais especificamente, com a cidade de Jerusalém, nomeada como “Sião” (v.14).
A segunda verdade teológica marcante é a esperança da restauração futura prevista nas alianças incondicionais – aliança abraâmica, aliança davídica e nova aliança. Não obstante o sofrimento presente e a devastação que está para acontecer, o salmista olha para o futuro e traz de lá esperanças muito vivas a respeito do perdão de Deus e da restauração da capital israelita (v.13): “Tu te levantarás e terás compaixão de Sião” (’attâ taqûm terahem tsîyôm) – a nova aliança enfatiza a ideia da restauração, enquanto a aliança abraâmica aponta para a posse e habitação da terra da promessa e a aliança davídiva aponta para o reinado perpétuo da dinastia de Davi na pessoa de Jesus. Olhando para a ocasião dessa ação restauradora de Deus, ele a descreve não como um evento produzido por circunstâncias aleatórias, mas como um tempo determinado para uma ação anunciada: “Pois é tempo de se mostrar o favor, pois chegou a ocasião determinada” (kî-‘et lehennah kî-ba’ mô‘ed). Os eventos descritos pelo salmista, os quais envolvem a restauração de Israel e o temor das nações a Deus (vv.15-17), identificam essa resposta às orações do salmista por restauração com o “Dia do Senhor” (Ob 15,17; Jl 3.14;17) e com reinado do rei eterno nascido em Belém (Mq 5.2-4; Ob 21), redundando na punição dos rebeldes (Is 2.12; Ez 30.3) e na associação dos tementes (Jl 2.31,32; Mq 4.1-3 cf. Sl 102.21,22). Esses eventos de perdão e restauração espiritual e política de Israel são previstos no que Jeremias descreveu como uma “nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá” (Jr 31.31 cf. vv.32-40). É surpreendente ver o salmista pensando em uma esperança tão definida e gloriosa em tempos em que a realidade que enfrentava era diametralmente oposta a isso – além do mais, podia surgir a impressão de que Deus havia desistido do seu povo e de cumprir o que lhe prometeu.
Como base para a segurança e a esperança apresentadas pelo escritor do salmo, são propostos alguns atributos de Deus que garantiam o futuro de Israel e de Jerusalém. Em primeiro lugar, o poder de Deus é exaltado a fim de criar esperança nos leitores de que, independente da força das nações, o Senhor é poderoso para reverter a situação. Esse poder é visto na sujeição dos reis e dos reinos a ele (vv.15,22), na sua demonstração de glória (vv.15,16) e na supremacia e elevação do seu trono (v.19). Em segundo lugar, o salmista alista a eternidade de Deus como motivo de confiança, já que ele – e seu correspondente domínio – sempre existiu e sempre existirá (vv.12,25,27). Mesmo os reinos poderosos pereceriam, enquanto o Senhor permaneceria (v.26), de modo que a geração que seria restaurada testemunharia tal pernamência (v.18). Em último lugar está a imutabilidade de Deus (v.27): “Pois tu és ele mesmo” (we’attâ-hû’) – ao dizer isso, o escritor aponta para o fato de que Deus é quem as Escrituras descrevem e que não haverá tempo em que ele não corresponderá à descrição bíblica ou às espectativas baseadas em suas promessas. Surge daí a noção da “fidelidade” de Deus, razão pela qual o profeta confia nas promessas de restauração futura do seu povo (nova aliança – cf. Jr 31; Ez 36; Jl 2), na habitação de Israel na terra prometida a Abraão (aliança abraâmica – cf. Gn 15.17-21) e no reinado perpétuo do descendente de Davi (aliança davídica – cf. 2Sm 7.11-17). Nesse dia se cumprirá o que o salmista, ainda que abatido ao escrever, previu esperançosamente (v.28): “Os filhos dos teus servos habitarão [aqui] e seus descendentes serão firmados diante de ti” (benê-‘avadeyka yishkônû wezar‘am yikkôn).
Que verdades gloriosas que revelam tanto a justiça e a santidade de Deus como sua fidelidade, amor, graça e poder! A mesma esperança é compartilhada pela igreja visto ser beneficiária de promessas de estabelecimento eterno na presença de Deus. A certeza de que Deus cumprirá todas as suas promessas nos enche de esperança de ver o que foi anunciado. E a convicção de que, não importa quanto o mundo se afaste do bem e quanto o diabo demonstre ser o “deus desse século” (cf. 2Co 4.4), a vitória final pertence a Deus e ao Senhor Jesus Cristo (Ap 11.15)! Essa é uma esperança que devemos nutrir todos os dias e, guiados e fortalecidos por ela, manter uma vida santa no presente como quem viverá em glória no futuro.
Pr. Thomas Tronco