Salmo 88 - O Último Desejo Antes da Morte
Um dos episódios mais tristes da história da igreja protestante foi o massacre do Dia de São Bartolomeu, em 23 e 24 de agosto de 1572, em Paris, espalhando posteriormente seu terror por várias cidades francesas como Toulouse, Bordéus, Lyon, Bourges e Orléans. No massacre morreram quase 100 mil protestantes franceses, chamados huguenotes. As últimas palavras do rei Carlos IX, que ordenou o massacre, foram: “Quanto sangue! Quantos assassinatos! Eu não sei onde estou. Como vai terminar tudo isso? O que devo fazer? Estou perdido para sempre. Eu sei disso”. Tais dizeres certamente refletem o arrependimento do rei e, possivelmente, seu desejo de nunca ter sucumbido à pressão de dar tal ordem. Entretanto, esse foi um desejo tardio demais para que se cumprisse. Ele morreu com esse fardo.
O Salmo 88, assim como a história de Carlos IX, parece conter o último desejo de um moribundo. Por tratar-se de uma oração a Deus, a ideia de um “último desejo” pode soar meio deslocada, já que quem clama ao Todo-poderoso espera ser atendido – exemplos assim não faltam no saltério. Contudo, o Salmo 88 é peculiar no que tange à resposta de Deus, já que ela parece ausente. Não quer dizer necessariamente que Deus não fosse atender o pedido de Hemã, mas, diferente de outros salmos, o texto não indica nenhuma resposta de Deus até o momento, nem revela uma disposição esperançosa do seu escritor, sendo certamente um dos salmos mais tristes que existem.
A condição precária do escritor é revelada ainda no início do texto (vv.3-5). A iminência da morte, percebida pela insistência no tema, é uma realidade vívida para o salmista e não deve ser considerada mera figura de linguagem de natureza hiperbólica (v.3): “Pois minha alma está cheia de males e minha vida está à beira da sepultura” (kî-sov‘â bera‘ôt nafshî wehayyay lish’ôl higgî‘û). Não satisfeito com essa descrição da sua condição, o salmista frisa seu estado como moribundo e sua inaptidão para mudar a situação que enfrenta dando a entender que se trata de um caminho sem volta que qualquer um podia notar (vv.4,5): “Sou contado com aqueles que descem à cova. Sou como um homem inválido largado entre os mortos, como os cadáveres que jazem no sepulcro, dos quais não mais te lembras, aqueles que foram afastados da tua mão” (nehshavtî ‘im-yôredê bôr hayîtî kegever ’ên-’eyal bammetîm hofshî kemô halalîm shokevê qever ’asher lo’ zekartam ‘ôd wehemmâ mîyadka nigzarû).
Apesar do tom de pessimismo do salmo e da aparente falta de esperança do salmista, há alguns fatores a serem levados em consideração a fim de notarmos que não se trata de um texto seco e infértil para quem quer servir a Deus em meio às lutas – tais fatores são o fato de o salmista efetivamente orar a Deus e escrever um salmo para ser cantado que contém em si alguma intenção compatível com o louvor típico da obra dos filhos de Corá. Assim, é da tristeza do salmista sofredor que surge o encorajamento em meio a uma situação que parece perdida. Ele também apresenta um procedimento compatível com a realidade do homem incapaz que vive sob os efeitos da queda, mas que tem no Senhor sua força além das circunstâncias e de todo entendimento. Dentro desse quadro, o salmo apresenta quatro visões obtidas pelo salmista diante do sofrimento.
Em primeiro lugar, ele descobre o valor da oração persistente (vv.1,2,9). As primeiras palavras do salmo indicam que ele não é apenas um lamento inócuo ou uma oração meramente ritual, mas uma oração de clamor a Deus no seu sentido mais profundo, tendo em vista a declaração do caráter do Senhor a quem o salmista se dirige (v.1): “Ó Senhor, Deus da minha salvação” (yehwâ ’elohê yeshû‘atî). Outro fator que indica uma oração verdadeira é a constância com que o salmista busca a Deus: “De dia eu clamo e de noite [eu me coloco] diante de ti” (yôm-tsa‘aqtî ballaylâ negdeka). Tal ideia é expandida adiante na afirmação de que ele diariamente agia como uma criança que, carente e chorosa, estica seus braços na direção dos pais, ou como alguém que, de dentro de um buraco, estica sua mão para ser tomada pelo resgatador (v.9): “Durante todo o dia eu estendo a ti as minhas mãos” (bekol-yôm shittahtî ’eleika kaffay). A perseverança na oração parece ser um traço adquirido pelo escritor por causa do sofrimento que enfrenta. Ainda que o tom geral seja pessimista, está presente nesse ato a esperança da atuação benéfica de Deus, motivo pelo qual não parece que o salmista esteja desperdiçando palavras. Seu ânimo é diametralmente oposto a uma ausência de expectativas de ver a resposta divina (v.2): “Que a minha oração chegue à tua presença! Inclina os teus ouvidos ao meu clamor!” (tavô’ lefaneyka tefillatî hatteh-’ozneka lerinnatî). Em resumo, o suplicante nada pode fazer em benefício próprio, mas recorre com persistência ao único que pode salvar sua vida.
Em segundo lugar, ele reconhece o controle divino da situação (vv.6-8). Diferente de vários salmos cujo clamor é motivado pela perseguição voraz de inimigos, aqui o sofrimento não é infligido por terceiros – pelo menos o salmista não acusa a ninguém, nem clama por proteção para si por causa de outrem. Em lugar disso, ele responsabiliza o próprio Deus, não por maldade ou por injustiça, de colocar o fardo sobre o autor do salmo e de ser o agente direto da situação (v.6): “Tu me colocaste nos lugares mais fundos de uma cova, nas trevas, nas profundezas” (shattanî bevôr tahtîyôt bemahashakkîm bimtsolôt). A causa de tal ação é descrita na sequência (v.7): “A tua ira repousa sobre mim” (‘alay somkâ hamateka). Não sabemos o que o salmista fez para suscitar a ira de Deus, mas o resultado era muito claro e amplo a ponto de ninguém poder ou querer socorrê-lo (v.8): “Tu afastaste os meus companheiros de mim. Tornaste-me repugnante para eles. Estou preso, sem poder sair” (hirhaqta meyudda‘ay mimmennî shattanî tô‘evôt lamô kalu’ welo’ ’etse’). Há nisso uma declaração implícita de que Hemã crê firmemente na soberania de Deus sobre tudo que ocorre e no poder divino que não se pode conter e que atua em consonância com sua santidade e justiça.
Em terceiro, ele compreende a função dos servos do Senhor (vv.10-12). Esses versículos são frequentemente malcompreendidos como se pretendessem tratar realidades da vida após a morte. Na verdade, não é disso que o salmista fala aqui. O que ele faz é argumentar com Deus – logicamente, a seu favor –, afirmando que um morto não pode cumprir as tarefas religiosas dos homens vivos. Assim, como funções dos viventes que conhecem a Deus, ele alista: ser veículo da demonstração do poder de Deus, promover seu louvor (v.10) e ser uma prova viva da bondade, da fidelidade (v.11), dos feitos maravilhosos e da justiça do Senhor (v.12). Segundo o escritor, ao morrer ele seria tolhido de exercer cada uma dessas atividades entre os homens. A razão dessa argumentação não é informar tais fatos a Deus, mas clamar que o Senhor o deixe viver de modo que ele possa manifestar todas essas atitudes, funções naturais dos servos do Senhor, perante Deus e os homens. Se durante algum tempo ele se esqueceu ou deliberadamente ignorou tais responsabilidades, elas certamente estão agora em sua mente e em seus propósitos.
Em último lugar, ele distingue as consequências do pecado (vv.13-18). Se antes foi dito que o salmista não culpou terceiros pelo seu estado de sofrimento, agora ele vê a si mesmo como responsável por suscitar a ira de Deus. Após clamar por socorro e não ver a mão de Deus atuando em seu favor (v.13), ele reconhece a punição devida ao seu pecado revelada no afastamento do Senhor (v.14): “Ó Senhor, por que me rejeitas e escondes de mim o teu rosto?” (lamâ yhwh tiznah nafshî tastîr paneyka mimmennî). Essa pergunta, de efeito retórico, não busca razões desconhecidas para a reação de Deus aos atos do salmista, mas clama por um abrandamento dessa postura. A verdadeira razão disso tudo é conhecida do escritor (v.16): “O furor da tua ira passou por sobre mim” (‘alay ‘ovrû harôneyka). As consequências do pecado, no caso desse pecador, foram aflição e confusão (v.15) de caráter contínuo (v.17), trazendo-lhe solidão e a sensação real de estar desamparado na luta contra circunstâncias muito além das suas forças (v.18).
Independente do modo como Deus tratou esse servo, o ensino contido no salmo é para nós extremamente atual e relevante. As lições sobre a oração perseverante, sobre a soberania do Senhor, sobre nossa função na igreja de Cristo e sobre as consequências dos pecados impenitentes têm lugar cativo na nossa edificação como servos de Deus. Entretanto, a maior lição de uma mensagem como essa é não demorar a aprender tais verdades, nem deixar que o afastamento e a desobediência coloquem sobre nós o mesmo fardo do salmista. Que essas lições façam parte do nosso desejo diário e nunca venham a ser apenas o último desejo de um moribundo.
Pr. Thomas Tronco