Quinta, 05 de Dezembro de 2024
   
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Salmo 82 - A Indignação do Justo Contra o Mal


um bom tempo eu não me sento diante da televisão para assistir a noticiários. Além da falta de tempo, uma das razões do meu desinteresse vem do fato de que eu ficava muito chateado com certas notícias. Algumas delas me chocavam ao exibir o lado perverso e violento das pessoas. Outras deixavam-me perplexo diante da desventura de muita gente. Mas ainda havia aquelas notícias que me deixavam nervoso ao ver que a injustiça e a impunidade têm um lugar cativo no nosso país. Uma das notícias que me marcaram nesse sentido contava que um juiz da mais alta instância vendia sentenças a favor das máfias do “bingo” e do “jogo do bicho”. Ficou milionário liberando artefatos criminosos que a polícia capturou em uma operação extremamente difícil e demorada – isso, por si só, já é de tirar qualquer cidadão brasileiro do sério. Entretanto, a notícia não parava por aí. Informava também que, ao ser investigado e reconhecido como corrupto, a “punição” do juiz foi ser aposentado com o mesmo salário que recebia quando estava ativo em suas funções – na época, mais de 25 mil reais mensais. O juiz corrupto, na verdade, foi premiado e não punido. Vi essa notícia em agosto de 2010. De lá para cá, quase não assisti mais aos noticiários.

Se não é possível encontrar consolo nos jornais, a Bíblia fornece consolo e orientação para quando estamos diante da injustiça. O Salmo 82 foi escrito em um tempo em que os responsáveis pela justiça não agiam muito diferente desse juiz brasileiro. A falta de temor a Deus e o desenvolvimento de um egoísmo terrível, desprovido de qualquer consciência e amor pelas pessoas, haviam produzido certa corrupção em Israel que nos pareceria familiar se pudéssemos voltar no tempo. De fato, houve várias fases nas quais existiu corrupção, mas, mediante repreensão da parte do Senhor e compromisso de homens tementes a Deus, os abusos eram contidos – como no caso de Josafá, que trabalhou pela purificação do sistema judiciário da época (2Cr 19.4-7) e que criou uma espécie de “corte de apelação” (2Cr 19.8-11). Contudo, nos dias do salmista, a justiça estava corrompida e a única coisa garantida por ela eram os interesses dos ímpios. A injustiça era tal que indignou o escritor do salmo. Entretanto, ele não recorreu à violência para sanar sua perplexidade e revolta. Em lugar disso, o salmo apresenta três atitudes para o homem justo que se depara com a injustiça – atitudes muito parecidas com as do profeta Habacuque, possivelmente contemporâneo do autor do salmo.

A primeira atitude do servo de Deus diante da injustiça é reconhecer a supremacia de Deus como juiz (v.1): “Deus se levanta na assembleia divina e julga no meio dos deuses” (’elohîm nitsav ba‘adat-’el beqerev ’elohîm yishpot). O salmo começa com uma afirmação enigmática. As Escrituras afirmam a existência de um Deus único e singular (Dt 4.35; 6.4; Is 44.6,8; 45.5,6). Contudo, o salmista pinta uma figura de uma assembleia de deuses, de modo a ser necessário entender seu propósito para que não se pense tratar-se de um ensino politeísta. O fato é que os falsos deuses são, certas vezes, tratados como se existissem com a finalidade, por parte de Deus e dos seus profetas, de repreenderem a idolatria dos israelitas por meio da comparação entre o soberano Deus vivo e a nulidade dos deuses das nações ao redor (Ex 15.11; Nm 33.4; Sl 86.8). Esse recurso servia para ressaltar a supremacia de Deus, evidenciar a insensatez do povo ao se apegar a divindades falsas e exigir deles fidelidade ao Senhor (Js 24.15,23,24; 1Sm 7.3; 1Rs 18.21). É nesse sentido que o salmista propõe a figura de uma reunião de deuses.

Sendo assim, ele se dirige aos idólatras perversos dos seus dias e oferece a ideia da supremacia Senhor por meio da imagem de Deus se levantando nessa assembleia como quem se levantava nas reuniões populares realizadas às portas da cidade. Essa ação de se levantar na assembleia tem uma conotação jurídica. Assim, como juiz, Deus se levanta para decidir e pronunciar uma sentença. O que o salmista quer enfatizar, na verdade, não é o poder de Deus para julgar entre os deuses que não existem, mas o poder para julgar o juízes maus e injustos de Israel. Essa intenção é percebida quando o salmista, na sequência, se dirige aos juízes israelitas que, sob a jurisdição de Deus, promoviam injustiças (v.2): “Até quando vós julgareis injustamente e favorecereis os ímpios?” (‘ad-matay tishpetû-‘awel ûpenê resha‘îm tis’û). Esse é um modo muito efetivo de transmitir uma repreensão que podia também ser dita assim: “Cuidado, juízes injustos! Se o Senhor julga até os outros deuses, quanto mais vós! Façam o bem ou sofram as consequências!”. Nesse sentido, o profeta Habacuque se une ao salmista para afirmar que a iminente destruição de Judá e da sua capital, Jerusalém, pela Babilônia (Hc 1.5-11) era nada menos que o veredito de Deus contra a impiedade: “Ó Senhor, para executar juízo, puseste aquele povo; tu, ó Rocha, o fundaste para servir de disciplina” (Hc 1.12b).

A segunda atitude é agir de modo a promover a justiça. O salmista não olha para o quadro de corrupção judiciária em Israel e sua consequente injustiça social como quem está do lado de fora do problema. Ele se comove com o sofrimento dos aflitos (Hc 1.2-4 mostra que o profeta compartilha desse sentimento) e interfere na situação dirigindo-se aos juízes corruptos nos seguintes termos (v.3): “Decidi vós com justiça a causa dos pobres e desamparados, fazei justiça aos aflitos e necessitados. Livrai os pobres e desvalidos das mãos dos ímpios” (shiftû-dal weyatôm ‘anî warash hatsdîqû palletû-dal we’evyôn mîyad resha‘îm hatsîlû).

É nítida a tentativa do salmista de reverter o quadro dramático dos seus dias, ainda que sejam limitados os seus recursos para isso. Contudo, se a capacidade do salmista diante dos príncipes e juízes de Israel era pequena – razão pela qual ele lhes lança um clamor em vez de exercer contra eles alguma atitude de ordem prática –, a capacidade dos injustiçados era ainda menor. O salmista mostra, de modo hiperbólico, que as limitações que eles tinham em termos de força, de influência e até de cultura os tornava presas fáceis para os ímpios e para os corruptos (v.5): “Eles não conhecem, nem entendem. Perambulam na escuridão” (lo’ yad‘û welo’ yavînû bahashekâ yithallakû yimmôtû). O escritor do salmo não consegue olhar para isso sem se sentir obrigado a agir. Ele não ultrapassa os limites das suas possibilidades ou dos modos reverentes e santos de um servo de Deus, mas também não se isenta da responsabilidade de abrir sua boca contra a maldade.

A terceira atitude do servo de Deus diante da injustiça é clamar a Deus por promoção da justiça. A justiça é algo a ser buscado da parte daqueles que têm poder para executar não apenas a decisão justa, mas a efetivação prática da justiça. Nesse sentido, os juízes de Israel deveriam ser tais promotores. Por isso, o salmista se dirige a eles e os chama metaforicamente de “deuses” (v.6): “Eu disse: vós sois deuses e todos vós sois filhos do Altíssimo” (’anî-’amartî ’elohîm ’attem ûbenê ‘elyôn kullekem). A ideia não é descrever uma natureza divina em tais homens, mas falar da sua função de agir como representantes de Deus na decisão justa das causas e na proteção dos desamparados. Como eles agiram exatamente do modo contrário ao que era seu dever, o escritor recorre a um tribunal superior, ou seja, ao próprio Deus eterno, a fim de que faça o que os juízes se negaram a fazer por pura cobiça e interesse pessoal (v.8): “Ó Deus, levanta-te e julga a Terra, pois tu possuis todas as nações” (qûmâ ’elohîm shaftâ ha’arets kî-’attâ tinhal bekol-haggôyim).

O resultado da atuação divina em resposta a esse clamor não seria agradável aos juízes relapsos e corruptos. Na verdade, essa seria a sua derrocada (v.7): “Certamente morrereis como os [demais] homens e caireis do mesmo modo que os príncipes” (’aken ke’adam temûtûn ûke’ahad hassarîm tiffolû). Habacuque, ao orar ao Senhor sobre a condição de impiedade dos seus dias, clama a Deus que intervenha: “Até quando, Senhor, clamarei eu, e tu não me escutarás? Gritar-te-ei: Violência! E não salvarás? Por que me mostras a iniquidade e me fazes ver a opressão?” (Hc 1.2,3a). Apesar de ele dizer tais coisas na forma interrogativa – com questões que exalam sua indignação –, o significado dessas palavras recai sobre um pedido urgente para que Deus acabe com a injustiça e com o sofrimento dos fracos.

Estamos longe dos dias em que Judá ainda aguardava a punição divina por seus pecados, mas conhecemos a versão contemporânea da corrupção e dos desmandos no nosso país e ao redor do mundo. Vemos a maldade crescendo e tomando o espaço do respeito, do amor e da generosidade, fazendo jus à previsão de Jesus: “E, por se multiplicar a iniquidade, o amor se esfriará de quase todos” (Mt 24.12). Revolta contra isso tudo é o que não falta. Mas é nesse contexto que os cristãos são chamados a tomar posição pelo que é justo e bom, fazendo o que está a seu alcance para a efetivação da justiça. É nessa situação difícil que eles são responsáveis por depender de Deus incondicionalmente, confiando em sua bondade presente e em seu julgamento futuro. O reconhecimento da supremacia do Senhor como santo juiz, além de acalmar nossos corações indignados contra o mal, impede de desejarmos tomar a justiça em nossas mãos, como um tipo de justiceiros, e acabar dando maltestemunho em lugar de reparar erros. Afinal, a dependência do Senhor que produz um procedimento justo e amoroso é uma das marcas distintivas daqueles que foram salvos das trevas pelo bom Deus: “A religião pura e sem mácula, para com o nosso Deus e Pai, é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e a si mesmo guardar-se incontaminado do mundo” (Tg 1.27).

Pr. Thomas Tronco

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