Segunda, 09 de Dezembro de 2024
   
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Salmo 80 - Quando Deus Faz o que Disse que Faria

Assim que me formei, mudei-me para uma cidade no sertão mineiro com a intenção de lá pregar o evangelho. Nos dez anos em que lá morei, passei a conhecer as agruras da seca, já que se trata de uma terra onde as chuvas costumam surgir somente no verão – houve um ano em que não choveu durante onze meses. Eu brincava dizendo que lá o Sol queimava até na sombra. Depois de deixar a região e voltar à minha terra de origem, até hoje me pego admirando a chuva como se fosse demorar muito tempo para ver outra.

Contudo, houve um ano – antes de eu me mudar para lá – em que choveu quarenta dias seguidos, fazendo com que as estradas, que eram todas de terra, se tornassem uma poça conjunta de lama. As estradas ficaram simplesmente intransitáveis e a cidade começou a ficar ilhada. Caminhões com mantimentos não conseguiam chegar até lá, de modo que houve certo pânico entre os habitantes diante da possibilidade de os mercados ficarem vazios e não haver o que comer. Ainda que fosse uma região que normalmente era seca e que a chuva fosse ansiosamente aguardada, tudo que moradores da região queriam nesse ano era ver a chuva passar e o Sol voltar a brilhar.

Esse mesmo desejo está no contexto do Salmo 80. Ele foi escrito em um momento histórico que não é fácil de definir. Há quem considere a queda de Samaria, capital do reino do Norte, Israel (722 a.C.), como esse momento. Entretanto, a aflição causada por aquele reino a Judá torna improvável que o salmista sentisse a tristeza contida nesse salmo diante da queda do inimigo. Na verdade, a queda de Israel seria vista como libertação de Deus para Judá – assim como foi profetizado em Isaías 7.1-9. Além disso, parece que todo o território herdado pelos descendentes de Jacó fora abatido, haja vista (v.2) as menções a Efraim (uma das tribos de Israel, onde estava a capital do reino, Samaria), a Benjamim (uma das tribos de Judá, onde ficava a capital, Jerusalém) e a Manassés (metade da tribo de Manassés representava a maior unidade israelita na Transjordânia) – apesar de a referência a José (v.1) ser uma clara inferência ao reino do Norte, cujas maiores tribos eram Efraim e Manassés, os dois filhos de José. Assim, é bem possível que o contexto desse salmo seja o mesmo do salmo precedente: a queda de Judá perante a Babilônia, quando o único dos dois reinos até então intocado fora atingido pelas consequências da sua maldade.

A semelhança entre esse salmo e a história que contei no início é que, em ambos, as pessoas queriam ver o Sol brilhar. Isso, que na ilustração inicial era um desejo literal, no salmo é uma figuração para a presença abençoadora e libertadora do Senhor. O salmista trata essa ação de Deus como se fosse o “brilho do Sol”, dizendo repetidas vezes (vv.3,7,19): “Faz brilhar o teu rosto para que sejamos salvos” (weha’er paneyka weniwwashe‘â). Aliás, o salmo começa com um clamor nesse sentido, de modo a conter dois pedidos (v.1): “Dá ouvidos [ao clamor]” (ha’azînâ) e “faz brilhar” ou “resplandeça” (hôfî‘â). O significado desse pedido é claro dentro do contexto (v.2): “Desperta a tua força e vem para [trazer]-nos salvação” (‘ôrerâ ’et-gevûrateka ûlekâ lîshu‘atâ lanû).

O desejo do salmista por ver tal brilho cumpre um papel dentro de uma figura agrária: Israel é uma videira (v.8) que necessita do brilho do Sol e está morrendo por falta dele. Na verdade, essa figura proposta pelo salmista não é original e é muito provável que ele tivesse em mente o cumprimento do que Deus avisou que faria no “cântico da vinha”, do profeta Isaías (Is 5.1-7) – profecia de juízo contra Israel e contra Judá pelos seus pecados (cf. Is 5.7 – Ezequiel e Oseias fizeram o mesmo [Ez 17.6-10; Os 10.1]). Assim, Isaías comparou Israel a uma vinha pertencente a Deus (Is 5.1), pelo que o salmista, tendo em mente tais predições, diz: “Tu tiraste do Egito uma videira” (gefen mimmitsrayim tassîa‘) – clara menção ao êxodo. Essa videira foi tirada do Egito e levada para uma terra que Deus, como agricultor, limpou e deixou pronta para o cultivo (v.9): “Limpaste [a terra] diante dela [a videira]” (pinnîta lepaneyha), ao que Isaías se refere nos seguintes termos: “O meu amado teve uma vinha num outeiro fertilíssimo. Sachou-a, limpou-a das pedras e a plantou de vides escolhidas” (Is 5.1b,2a).

O resultado desse cuidado, escolhendo a vide, tirando-a do Egito, limpando a terra do que não era bom (v.8b) e tornando o solo propício para o plantio, é que a vinha se estabeleceu muito bem e se espalhou por todo o terreno, a saber, toda a terra de Canaã (vv.9-11). Contudo, algo surpreendente acontece, sobre o que o salmista indaga do Senhor (v.12): “Por que derrubaste a cerca dela?” (lammâ paratsta gedereyha). Derrubar a cerca que rodeava a vinha, nesse caso, significa que Deus retirou e proteção dos israelitas e permitiu que outras nações o invadissem e destruíssem (v.13), algo que Isaías previu muito tempo antes de acontecer: “Agora, pois, vos farei saber o que pretendo fazer à minha vinha: tirarei a sua sebe, para que a vinha sirva de pasto; derribarei o seu muro, para que seja pisada” (Is 5.5).

Por essa causa, a condição da nação israelita quando o Salmo 80 foi escrito era a seguinte (v.16): “Queimada a fogo e arrancada” (serufâ ba’esh kesûhâ). Essa descrição combina com o anúncio do estado caótico advindo do juízo divino presente nos dizeres de Isaías: “Torná-la-ei em deserto. Não será podada, nem sachada, mas crescerão nela espinheiros e abrolhos; às nuvens darei ordem que não derramem chuva sobre ela” (Is 5.6). É um quadro de destruição e de infertilidade.

A questão que permanece diante desse quadro de uma mudança abrupta no tratamento da vinha pelo seu agricultor divino é: “Por que Deus faria uma coisa dessas – abandonar Israel e entregá-lo ao inimigo – com seu povo que tirou do Egito e que estabeleceu em Canaã com todo cuidado?”. A resposta é conhecida do salmista. Na verdade, ele nem sequer pergunta a Deus “por quê”, mas “até quando”, mostrando saber que Israel estava sendo punido pelos pecados que cometeu e pela rebeldia que manteve diante do Senhor (v.4): “Ó Senhor, Deus dos Exércitos, até quando estarás irado contra a oração do teu povo?” (yehwâ ’elohîm tseva’ôt ‘ad-matay ‘ashanta bitfillat ‘ammeka). Estar irado, ou “fumegar” (tradução literal) é a reação de Deus à rebeldia e à desobediência do povo, pelo que não mais lhe atende as orações.

A razão para tanto é exposta por Isaías pelo uso de trocadilhos (Is 5.7). Ele afirma que o Senhor se irou contra Israel porque lhe pediu um “julgamento justo” (mishpat), mas viu o povo produzir “crime” ou “assassinato” (mispâ), descrição do tratamento injusto que os poderosos rendiam aos mais fracos por pura ganância e cobiça, tomando-lhes os bens e as terras e vendendo sentenças a pessoas de muitas posses (um exemplo disso pode ser visto em 1Rs 21.1-16). Deus também lhes ordenou “justiça” (tsedaqâ), mas só se viu entre eles “choro” ou “clamor” (tse‘aqâ), reação dos que eram abatidos injustamente. Em resumo, o Salmo 80 vislumbra a anunciada punição do Senhor ao povo pecador, injusto e obstinado. O Senhor realmente fez aquilo que disse que faria. O salmista entende a lição e recorre a Deus, reconhecendo o pecado de Israel (v.4), e se propõe, ensinando o povo a fazer o mesmo, a retornar ao estado original de fidelidade para com Deus (v.18): “E não nos afastaremos de ti. Vivifica-nos e proclamaremos o teu nome” (welo’-nasôg mimmeka tehayyenû ûveshimka niqra’).

Assim, a conclusão que tiramos é que quando recai sobre alguém a disciplina de Deus prevista para os momentos em que seus servos agem obstinadamente (Hb 12.5-7), não adianta tentar racionalizar a situação encontrando justificativas para o pecado, nem mudar de igreja procurando algum lugar em que a iniquidade seja aceita, nem tampouco lançar mão de técnicas “mágicas” para tentar comandar a situação e obrigar Deus a agir beneficamente. Só há uma solução: o arrependimento de pecados, o retorno à santidade e a renovação da submissão ao Senhor. Afinal, como diz o próprio Isaías, “a mão do Senhor não está encolhida, para que não possa salvar; nem surdo o seu ouvido, para não poder ouvir. Mas as vossas iniquidades fazem separação entre vós e o vosso Deus; e os vossos pecados encobrem o seu rosto de vós, para que vos não ouça” (Is 59.1,2).

Pr. Thomas Tronco

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