Salmo 59 - A Condenação e Perseguição do Inocente
Um japonês chamado Ishimatsu Yoshida foi acusado de roubar e matar um turista em uma rua deserta. Duas testemunhas, reconhecendo-o no tribunal como autor do latrocínio, selaram seu destino. Apesar de enfaticamente se declarar inocente, ele enfrentou uma pena de 23 anos de prisão. Ao ser libertado, iniciou uma caçada às testemunhas que o acusaram. Em pouco tempo encontrou uma delas. Esta confessou o falso testemunho e revelou que o autor do crime era a outra testemunha. Ishimatsu passou mais um ano procurando o verdadeiro assassino até capturá-lo e fazê-lo confessar. A reportagem dizia que Ishimatsu entrou com um processo para reconhecer sua inocência, mas que, apesar disso, o que ele nunca conseguiu recuperar foram os 23 anos perdidos da sua vida.
Quem dera esse caso ser o único erro judicial e a única condenação indevida da história! Na verdade, muita gente inocente já pagou por crimes que não cometeu. Davi se queixa justamente disso no Salmo 59. Sua queixa é (v.4): “Sem que eu tenha culpa, eles se apressam e se dispõem [contra mim]” (belî-‘aôn yerûtsûn weyikônanû). O motivo da queixa não é difícil de entender, já que Davi fornece o contexto preciso por meio do título do salmo: “Quando Saul enviou [pessoas] para vigiar a casa [de Davi] a fim de matá-lo” (bishloah sha’ûl wayyishmerû ’et-habbayit lahamîtô).
Tais acontecimentos estão narrados em 1Samuel 19.11-18. O texto conta que Saul enviou homens à noite para vigiar a casa de Davi para que ele não fugisse e para que pudessem matá-no pela manhã. Mical, filha de Saul e esposa de Davi, ao saber do plano, ajudou Davi a fugir pela janela e colocou na cama uma estátua para simular a presença do marido. Ao amanhecer, os homens, por ordem de Saul, vieram buscar Davi. Mical ganhou algum tempo dizendo que Davi estava acamado por uma doença. Quando se descobriu a farsa, Davi já estava longe, e em segurança, na casa do profeta Samuel.
Tendo como pano de fundo essa história de traição e de desejo assassino, Davi compôs o cântico em uma estrutura que parece ter duas estrofes (vv.1-5 e 10-13) e dois refrões (vv.6-9 e 14-17). As mudanças temáticas marcam tais divisões e os refrões são fáceis de reconhecer devido à repetição de uma frase importante do contexto – o cerco noturno dos assassinos (vv.6,14). Entretanto, a música não é de muitas repetições. Ao contrário, ela apresenta um desenvolvimento tanto da história como dos sentimentos e convicções do salmista. Por isso, um modo interessante de analisar esse salmo é seguir seu raciocínio nas suas divisões.
Assim, a primeira estrofe contém um pedido de livramento divino por parte do inocente perseguido. A oração inicial do salmo é (v.1): “Livra-me dos meus inimigos, ó meu Deus, e ponha-me a salvo daqueles que se levantam contra mim” (hatsîlenî me’oyevay ’elohay mimitqômemay tesaggevenî). Além do pedido de livramento, Davi forma uma imagem interessante de tal proteção. O que é traduzido como “ponha-me a salvo” também pode ser entendido como um pedido para que Deus o levantasse e o colocasse em um lugar alto que não pudesse ser alcançado pelos agressores. É mais ou menos a figura de um pai levantando seu filho para que um cão raivoso não o possa ferir – deve-se levar em conta que a figura do ataque de cães raivosos é destacada no texto para se referir à ação dos assassinos. É claro que, com isso, está implícita a ideia da impotência e dependência do salmista como se ele fosse uma criança. Mas é assim mesmo que o servo de Deus deve se sentir ante o poder de Deus.
Além disso, há um perigo adicional para Davi. Os homens que o perseguiam (v.2) eram “assassinos” (’anshê damîm). Uma tradução literal para a qualificação dada por Davi a esses homens é “homens de sangues”, ou seja, homens que já derramaram o sangue de outras pessoas. E a tática usada por eles era a perseguição velada e traiçoeira (v.3): “Eis que eles ficaram de tocaia contra mim” (hinneh ’arvô lenafshî). Esse era o perigo que Davi corria. E tudo isso sem ter feito nada que merecesse tal tratamento, visto que Davi diz: “Homens fortes fazem cerco contra mim sem que eu tenha transgredido ou que eu tenha pecado, ó Senhor” (yagûrû ‘alay ‘azîm lo’-pish‘î welo’-hatta’tî yehwâ).
O primeiro refrão contém a confiança no poder de Deus apesar da fúria dos inimigos. Os dois refrãos iniciam dizendo (vv.6,14): “Eles se volvem durante a noite uivando como cães e rodeiam a cidade” (yashûvû la‘erev yehemû kakkalev wîsôvevû ‘îr). Apesar do símile com a figura dos cães, essa é uma descrição exata da tocaia armada pelos inimigos. Segundo Davi, tais homens estavam totalmente confiantes do sigilo a respeito dos seus planos, dizendo (v.7) entre eles mesmos “quem ouviu?” (mî shomea‘). Essa pergunta é um modo retórico de dizer que os planos continuavam secretos e efetivos. Contudo, a periculosidade dos adversários não consegue tirar a confiança de Davi no Senhor, principalmente depois de, em seu poder, ter Deus feito chegar aos ouvidos de Mical o plano que deveria ser secreto. Por isso, diz o salmista (v.8): “Mas tu rirá deles, ó Senhor” (we’attâ yehwâ tishhaq-lamô). A confiança de Davi é clara: o Senhor é mais poderoso que os poderosos e será vitorioso sobre eles. Diante disso, nenhuma outra declaração seria melhor para encerrar o refrão (v.9) que a afirmação “Deus é o meu alto refúgio” (’elohîm misgavvî).
A segunda estrofe contém o vislumbre da libertação do inocente e do castigo do ímpio. A confiança de Davi é tão firme que rapidamente evolui para a “esperança”. Isso significa que ele tem tanta convicção de que Deus é fiel e que irá socorrê-lo que ele já antevê a libertação e a derrota dos que o perseguem. Ele afirma (v.10): “O Deus a quem amo virá ao meu encontro; Deus me fará ver [a derrota] nos meus inimigos” (’elohê hasdiw yeqaddemenî ’elohîm yar’enî beshoreray). Confiado nessa certeza, Davi ora (v.13): “Destrua-os com ira, destrua-os para que eles sejam como nada e saibam que Deus é soberano em Jacó e até os confins da Terra” (kalleh behemâ kalleh we’ênemô weyede‘û kî-’elohîm moshel beya‘aqov le’afsê ha’arets).
O segundo refrão contém o louvor e o testemunho do inocente pela libertação de Deus. A confiança em Deus, munida da esperança firme e vida da libertação, não poderia levar Davi a outra atitude que não a gratidão a Deus e sua demonstração na forma de adoração. Assim, ele, mais uma vez, inicia o refrão falando do cerco da sua casa pelos inimigos e o contrapõe com sua atitude em resposta à situação (v.16): “Entretanto, eu cantarei sobre a tua força” (wa’anî ’ashîr ‘uzzeka).
Tendo dito isso, Davi faz um contraste muito bonito, poético e sugestivo no trecho em questão. Ele, que iniciou o refrão falando do cerco noturno, no meio das sombras, em uma atitude condizente com as trevas, faz o refrão dar uma virada como poucas. Ele diz: “Pela manhã eu exultarei pela tua bondade” (wa’aranen labboqer hasdeka). Se durante a noite havia perigo, de manhã já ocorreu a libertação. Se de noite reinava a maldade, pela manhã reina a graça e a benignidade do Senhor. Se as trevas dominam o coração dos perseguidores, um raio de luz de pura alegria e louvor brilha no coração do salmista tão logo amanheça o dia. Que melhor maneira encerrar o cântico, depois desse belo ápice, que Davi declarar a Deus o seu amor? Ele encerra (v.17) chamando novamente o Senhor de “Deus a quem eu amo” (’elohê hasdî).
Essa não é uma lição de poesia, apesar da beleza e de nos inspirar tremendamente. Também não é uma lição de gramática, apesar de nos fazer trabalhar com tantas figuras sugestivas e comunicativas. É, na verdade, uma lição a respeito de Deus e da sua soberania sobre tudo e sobre todos. Ninguém pode detê-lo ou intimidá-lo. Nenhum poder ou autoridade pode fazer frente àquele que reina sobre toda a criação. Por outro lado, é também uma lição sobre como os servos de Deus devem se portar nesse mundo.
A receita é sempre a mesma: quando o mundo mau se levanta para destruir o povo de Deus, este ora ao Senhor, confia na sua bondade e louva o seu nome, testemunhando sua bondade por toda parte. As circunstâncias podem variar, mas aquele “em quem não pode existir variação ou sombra de mudança” (Tg 1.17) está sempre a postos para, mais uma vez, demonstrar seu amor por aqueles a quem chamou para compor o seu povo. Não importa se o mundo nos considera culpados de não viver sob seu regime dirigido pela carnalidade. Ainda que nos ameacem e persigam injustamente, como se fôssemos culpados, aquele que tem voz e poder em última instância, e que nos justificou por meio de Jesus Cristo, nunca há de nos abandonar ou nos perder dos seus braços.
Pr. Thomas Tronco