Salmo 46 - A Segurança no Meio do Caos
Sou um motorista bastante cauteloso. Não costumo correr, nem me arriscar nas estradas. Isso não quer dizer que eu não goste de velocidade. Na verdade, tenho certa predileção por competições em que a velocidade é o astro principal. Gosto de ver corridas de carros, motos, caminhões e até aquelas competições malucas de aviões traçando um percurso perigoso no menor tempo possível. Infelizmente, sempre que há velocidade, há junto acidentes, muitos dos quais têm desfechos fatais.
A fim de diminuir as mortes em tais acidentes, os engenheiros têm desenvolvido sistemas de segurança cada vez mais sofisticados e resistentes. Um deles é a “célula de sobrevivência”. Trata-se de um invólucro que envolve o assento do piloto e seu próprio ocupante, cuja função é, em caso de acidente, manter intacto seu conteúdo, ainda que todo o exterior do veículo seja completamente destruído. Certa vez, assistindo a uma corrida de lanchas, vi uma delas se despedaçar no mar a cerca de 400 km por hora. Os restos da lancha viravam e reviravam batendo com força impressionante na superfície da água a ponto de me fazer perder as esperanças de ver o piloto vivo. Contudo, na imagem em câmara lenta, deu para notar que, apesar de toda a “turbulência” do impacto, a célula de sobrevivência fora destacada do veículo e, mesmo indo ao fundo d’água, manteve a vida do piloto. Uma equipe de resgate içou a cápsula do fundo do mar e o piloto saiu dela andando e acenando. Que susto!
Uma situação de “turbulência” intensa parece ser o pano de fundo do Salmo 46. Ao que tudo indica, a cidade em que o salmista estava permanecia sitiada e sob violentos ataques de um exército invasor. A iminência do rompimento da muralha principal era o que aterrorizava os defensores da cidade e os moradores indefesos. Sua maior necessidade era a manutenção dos reforços da muralha e um refúgio dentro da cidade, caso o pior ocorresse.
Apesar da situação caótica, o salmo é tremendamente encorajador. Na verdade, ele é um grito de confiança e esperança no poder de Deus que, para o salmista, é indubitavelmente superior aos mais poderosos exércitos dos homens. Enquanto o salmista parece viver uma situação que nos faria esperar um salmo de lamento e de desespero, o que encontramos é uma ode à fé no Deus que abriga os que lhe pertencem durante os piores males. Mesmo com a subjetividade da fé, ela se torna bastante palpável e mensurável quando olhamos as circunstâncias nas quais ela floresce.
O v.1 traz a primeira declaração da fé do salmista: “Deus, para nós, é refúgio e fortaleza” (’elohîm lanû mahaseh wa‘oz). A escolha de palavras não é casual. A necessidade do escritor era uma cidade que lhe servisse de refúgio por meio de um muro forte. Entretanto, a ineficácia da cidade, para promover sua segurança a longo prazo, faz com que ele compare Deus a uma cidade que nunca sofreria o que seu refúgio atual vinha sofrendo. A razão de tal necessidade é, possivelmente, um violento ataque que recebem de um forte inimigo, a julgar pelas circunstâncias vislumbradas pelo escritor nas quais Deus ainda lhe seria o protetor.
Os vv.2,3 trazem quatro situações nas quais o salmista afirma que não teria medo por causa da presença e do cuidado de Deus: “Na alteração de terra” (behamîr ’arets); “no agito dos montes no coração dos mares” (bemôt harîm belev yammîm); “ao se agitarem e espumarem as águas” (yehemû yehmerû mêmayw); e “tremerem furiosamente os montes” (yir‘ashô-harîm bega’awatô). Trata-se de calamidades naturais como terremotos, tsunamis e enchentes, todos com potencial destrutivo ilimitado. A “ênfase” faz parte dessa descrição caótica. Ataques militares muito violentos devem ter motivado tais figuras. Por isso, a confiança do salmista é expressa em termos de fortificações da cidade e da capacidade de ela proteger seus moradores. É desse modo que o confiante escritor vê o Senhor.
O v.4 parece oferecer outra nuance do sofrimento do salmista e do seu povo: falta de água. Era comum, como tática de cerco, cortar o suprimento de água da cidade sitiada, às vezes até mesmo mudando o curso do rio. Com isso, ou a cidade se rendia ou morria de sede. Em ambos os casos, o exército invasor vencia. A menção de um rio, pelo salmista, é bastante sugestiva nesse sentido (v.4): “Há um rio cujo canal alegra a cidade de Deus” (nahar pelagayw yesammehû ‘îr-’elohîm). Ao comparar a presença e a proteção de Deus com uma cidade atravessada por um rio, o salmo pode revelar a privação e a necessidade de água por parte dos sitiados, além do seu enorme sofrimento e tristeza pela sede que os consome. Nesse caso, a confiança do salmista está na atuação de Deus sobre as nações, fazendo-as tremer diante do seu poder (v.6): “Os povos se agitam, os reinos tremem, ele levanta a sua voz, a terra estremece” (hamû gôyim matû mamlakôt natan beqôlô tamûg ’arets).
A partir daí (v.7), o salmista produz uma declaração que é repetida no final do salmo: “O Senhor dos exércitos está conosco; refúgio para nós é o Deus de Jacó” (yehwâ tseva’ôt ‘immanû misgav-lanû ’elohê ya‘aqov). Parece ser um tipo de eco do primeiro versículo. Mas, enquanto a palavra traduzida por “refúgio” no v.1 (mahaseh) é sinônimo de “fortaleza” e pode, também, significar “defesa”, “guarida” e “amparo”, a palavra traduzida por “refúgio” presente nos vv.7,11 (misgav) significa “abrigo alto”, ou seja, uma cidadela. Esta nada mais é que uma fortaleza dentro da fortaleza. Assim, caso a cidade fosse invadida, havia outra muralha em uma posição mais alta para proteger os moradores que perderam a primeira muralha. Para o escritor do Salmo 46, Deus é como uma dessas cidadelas que, mesmo diante da queda dos muros da cidade, continua protegendo o seu povo.
Ataques violentos, sede, medo, tristeza e caos não conseguem tirar a confiança do salmista. Em lugar disso, ele passa a encorajar seus pares por meio da lembrança de quem Deus é e das coisas que fez no passado. Ele faz um convite aos aflitos (v.8): “Venham e vejam” (lekû-hazû). Outras vezes, convites como esse são feitos na Bíblia. Apesar de usarem palavras diferentes – e até idiomas diferentes –, o convite normalmente tem como pano de fundo a manifestação de Deus, como, por exemplo: “Vinde e vede as obras de Deus: tremendos feitos para com os filhos dos homens!” (Sl 66.5; ver também Jo 1.39; 4.29). O Salmo 46 não é diferente. Nesse caso, o que deve ser observado pelos homens é “a obra do Senhor, pela qual trouxe desolações à Terra” (mif‘alôt yehwâ ’asher-sam shammôt ba’arets).
Tendo isso em mente, o salmista usa seu melhor argumento para trazer paz ao coração dos israelitas em tempos de uma guerra atroz. Ele diz que nenhuma guerra há quando Deus ordena que ela cesse (v.9): “Ele é aquele que faz pararem as guerras até a extremidade da Terra, que quebra o arco e destrói as lanças e que queima no fogo os carros” (mashbît milhamôt ‘ad-qetseh há’arets qeshet yeshavver weqitsets hanît ‘agalôt yisrof ba’esh). Isso é tudo que o povo sob ataque desejava e que somente Deus podia conceder. Sabendo disso, o v.10 é escrito na forma de um alento vindo diretamente de Deus, aquele que pode e quer proteger os seus: “Descansem e saibam que eu sou Deus” (harpû ûde‘û kî-’anokî ’elohîm).
Diante da situação tão aterradora em que o salmista vivia e da confiança inabalável que declarava, somente duas situações são compatíveis: a existência de homem inconsequente ou iludido, que não liga para o que está prestes a ocorrer, ou a presença de um Deus Todo-poderoso que ama tanto seus filhos que se importa com seus destinos e com o sofrimento que atravessam. Na verdade, é esse o Deus que a Escritura toda apresenta: o redentor e protetor daqueles a quem ama e recebe como filhos. Por isso, a confiança nele não é ilusória; nunca é inútil; jamais é infundada. Na pior situação de caos que possamos atravessar, ele é o refúgio, ele é a cidadela, ele é nossa célula de sobrevivência.
Pr. Thomas Tronco