Obadias 19
“Os habitantes do Neguebe tomarão posse do monte de Esaú. Os habitantes da Sefelá tomarão posse da terra dos filisteus. E tomarão posse dos campos de Efraim e dos campos de Samaria. E os habitantes de Benjamim tomarão posse de Gileade” (Obadias 19).
Se os dois versículos precedentes citaram a virada militar histórica entre Israel e seus inimigos, tipificada aqui no povo de Edom, o v.19 dá detalhes territoriais que envolverão a batalha e resultarão da derrota dos inimigos pelo exército de Israel, cuja vitória será poderosa como o fogo queimando a palha (v.18) ao serem fortalecidos por Deus no dia do Senhor (v.15). Após vencer os exércitos inimigos, Israel, então, “tomará posse” de terras, em despojo, e habitará nelas.
O primeiro alvo do texto envolve justamente a terra em que habitaram os edomitas, inimigos descritos no livro de Obadias como objetos de uma dura punição divina que se levantaria um dia. E seus conquistadores serão os “habitantes do Neguebe”. O Neguebe, que pode ser traduzido simplesmente como “Sul”, representa o Extremo Sul da tribo de Judá. Trata-se da região mais seca e árida próxima do limite Sul do território israelense. Quando é dito que “os habitantes do Neguebe tomarão posse”, o texto hebraico traz a forma sucinta “o Neguebe tomará posse”. Entretanto, trata-se de uma metonímia de continente pelo conteúdo que visa a apontar não propriamente o local geográfico, mas as pessoas que vivem ali. Segundo o texto, ao chegar o dia do Senhor, em que os inimigos de Israel serão abatidos, os judeus que habitam nessa região “tomarão posse” ou, utilizando outro significado do mesmo verbo hebraico, “herdarão” a terra que pertencia aos edomitas, chamada aqui de “monte de Esaú”.
O fato de judeus receberem como herança as terras montanhosas de Esaú é tremendamente significativo, pois representa o fim de uma promessa e concessão dadas por meio de Isaque ao seu primogênito Esaú depois que Jacó, valendo-se de uma artimanha, herdar a bênção da promessa de Canaã que seria dada ao irmão. Não podendo retirar a bênção dada a Jacó, Isaque abençoou Esaú prometendo-lhe terras secas e montanhosas onde, de fato, ele passou a habitar e onde se formou o povo que foi posteriormente conhecido pelo seu nome. Por isso, o domínio desse território foi vetado aos judeus no passado (Dt 2.4-5), de modo que eles deveriam respeitar a propriedade de Edom. A habitação nesse território, mesmo em tempos em que Israel tornou os edomitas seus vassalos, permaneceu como um direito do povo de Esaú. Porém, o dia do Senhor mudará a concessão da herança de Esaú a ela será transferida aos israelitas, território que, na atualidade, boa parte pertence à Jordânia, em especial, os locais das cidades mais importantes dos edomitas no passado. Quando isso ocorrer, será esse o cumprimento de profecias detalhadas também em Números 24.18, Isaías 11.14 e Amós 9.11-12.[1]
A segunda mudança de limites territoriais se dará quando os “habitantes da Sefelá” — um território na parte sul de Israel entre o Monte Hebrom e as planícies litorâneas da Filístia —, passarem a habitar no antigo território dos filisteus, hoje chamado de Faixa de Gaza. O texto hebraico, na sequência natural da metonímia utilizada na primeira frase, diz apenas “a Sefelá, aos filisteus”, cujo sentido é que os judeus que habitam na Sefelá herdarão a terra que pertenceu aos filisteus. Ultimamente, essa região tem sido foco de muitas notícias devido a um grande ataque terrorista que partiu da Faixa de Gaza, em 8 de outubro de 2023, e que causou centenas de mortes e sequestros de judeus em inúmeras comunidades, boa parte delas nas terras da Sefelá. O que Obadias diz aqui é que, no dia do Senhor, ao fortalecer Israel e este abater seus inimigos, haverá mais uma expansão territorial na qual Deus cumprirá a promessa da terra a Abraão no que tange ao seu limite Sul, o chamado “rio do Egito” (Gn 15.18), identificado como um rio intermitente de nome Wadi el-Arish, que hoje quase delimita o término da Faixa de Gaza, distando cerca de apenas 30 quilômetros a sudoeste.
A terceira região que recebe atenção são “os campos de Efraim” (a tribo israelita ao norte dos territórios de Judá e Benjamin e ao sul das terras de Manassés). Junto com Efraim, são citados “os campos de Samaria”, cidade que, à época de Obadias, havia se tornado a capital do reino do norte, durante o reinado de Omri, cerca de vinte anos antes da profecia desse livro, o que explica sua menção. Desse modo, citar Efraim e sua importante capital é apontar o mesmo território de modo mais enfático e dramático.
A cidade de Samaria, que foi capital do reino de Israel (formado pelas dez tribos do Norte), ficava na região que hoje é conhecida como Cisjordânia. Não era distante da atual cidade de Jenin, terceira maior cidade da região e importante centro sob a administração formal da Autoridade Nacional Palestina, assim como boa parte do antigo território da tribo de Efraim. Apenas trinta quilômetros separam Samaria de Nablus, outro importante centro palestino, mais ao sul. Todas essas cidades fazem parte do território que foi ocupado pela tribo de Efraim e que, atualmente, tem grandes porções inseridas nos enclaves palestinos, nos quais a população israelense é uma pequena minoria. Mas isso mudará no dia do Senhor, pois, apesar de não ser dito no texto de onde virão os habitantes que tomarão posse dos campos de Efraim, como nas cláusulas anteriores, fica claro se tratar de judeus herdando o território que lhes pertenceu plenamente no passado, povo nomeado no versículo anterior como “casa de Jacó” e “casa de José” (v.18).[2]
A última tomada territorial tem como agentes os “habitantes de Benjamin”, ou apenas “Benjamim”, no texto original. Benjamim fazia parte do reino de Judá e sua cidade mais importante era Jerusalém. Segundo o profeta Obadias, o alvo da conquista desses israelitas será o território de “Gileade”, região montanhosa a leste do rio Jordão que foi ocupada por parte das duas tribos e meia de Israel (Rúben, Gade e meia tribo de Manassés) na Transjordânia, hoje pertencente em grande parte ao reino da Jordânia. Desse modo, o controle sobre os antigos territórios israelitas dalém do Jordão voltará ao povo de Israel quando o Senhor intervier na história, punindo os inimigos e restaurando o povo israelita.
Há quem diga que tais acontecimentos já tiveram lugar na história, mas é difícil encontrar um momento que coincida com todas as ocorrências descritas aqui. O território de Edom não foi habitado por Israel em seus dias de reinado e quando houve algo nesse sentido, Israel não possuía mais os territórios de Samaria. Dizer que isso ocorreu nos dias de Davi é ignorar que a profecia de Obadias é bem posterior ao seu reinado e que fala de eventos futuros e não passados. Afirmar que depois do exílio babilônico o território Israelita foi devolvido ao povo ignora que Samaria nunca mais voltou a lhes pertencer. Já os filisteus, mesmo depois de enfraquecidos pelas invasões de Nabucodonosor e de Alexandre, o Grande, ainda permaneceram como um povo de identidade dúbia na região, enquanto Israel perdia força e autonomia diante do Egito e da Síria.
Sob os macabeus, no segundo século antes de Cristo, o território dos filisteus e suas principais cidades foram adquiridos pelos judeus,[3] mas nesse tempo Samaria não lhes pertencia desde que foi tomada pelos assírios em 722 a.C. Quando Roma dominou a região, o domínio dos judeus entrou ainda mais em xeque até que, finalmente, foram expulsos da terra pelo imperador Adriano e proibidos de voltar, no segundo século depois de Cristo. Nenhum momento histórico depois de Obadias até hoje coincidiu com os judeus habitando plenamente suas terras, incluindo os territórios de Edom, da Filístia, de Samaria e da Transjordânia.
Desse modo, a promessa de Obadias, que envolve a restauração de Israel e a derrota plena dos inimigos, culminando na posse dos seus territórios pelos judeus, é um evento ainda a se cumprir. E considerá-lo algo simbólico que não representa eventos reais, descritos aqui com detalhes, não apenas nesse versículo, mas no contexto do livro, é faltar com a boa hermenêutica e desconsiderar a intenção do autor e o propósito da profecia, segundo o mesmo processo exegético que leva à correta interpretação de doutrinas como a “divindade de Cristo” e a “salvação pela fé somente”.
Sendo assim, temos aqui uma descrição que dá formas bem definidas às esperanças escatológicas que envolvem não apenas os judeus, mas os salvos de todas as nações, dos quais fazemos parte. O profeta Zacarias descreve o último risco de destruição que os judeus passarão no futuro, seguido de um desfecho surpreendente: “Fugireis pelo vale dos meus montes, porque o vale dos montes chegará até Azal; sim, fugireis como fugistes do terremoto nos dias de Uzias, rei de Judá; então, virá o Senhor, meu Deus, e todos os santos, com ele” (Zc 14.5). A vinda de Jesus, com “todos os santos” (os salvos), culminará no fato de Jesus assumir seu trono terreno sobre as nações: “O Senhor será Rei sobre toda a terra; naquele dia, um só será o Senhor, e um só será o seu nome” (Zc 14.8). Rei sobre toda a terra!
E a volta do Senhor Jesus não dará fim ainda à história, como muitos pensam, mas inaugurará um período em que os israelitas “habitarão nela [a terra da promessa], e já não haverá maldição, e Jerusalém habitará segura” (Zc 14.10). E não habitarão apenas em Jerusalém, mas em todo território da promessa, incluindo as montanhas de Edom, as terras dos filisteus, os campos de Efraim e Samaria e as terras de Gileade. Assim habitará o povo de Israel quando Jesus reinar “sobre toda a terra”, cumprindo, desse modo, todas as alianças feitas no passado. Esse será o resultado da virada promovida pelo “dia do Senhor”.
O profeta Amós descreve o resultado do retorno de Jesus como rei do trono de Davi e as consequências territoriais para Israel, dizendo: “Naquele dia, levantarei o tabernáculo caído de Davi, repararei as suas brechas; e, levantando-o das suas ruínas, restaurá-lo-ei como fora nos dias da antiguidade; para que possuam o restante de Edom e todas as nações que são chamadas pelo meu nome, diz o SENHOR, que faz estas coisas” (Am 9.11-12). Ele completa descrevendo a situação permanente do povo israelita: “Mudarei a sorte do meu povo de Israel; reedificarão as cidades assoladas e nelas habitarão, plantarão vinhas e beberão o seu vinho, farão pomares e lhes comerão o fruto. Plantá-los-ei na sua terra, e, dessa terra que lhes dei, já não serão arrancados, diz o SENHOR, teu Deus” (Am 9.14-15).
Mas e quanto a nós, os santos que virão com Jesus? Sobre esse feliz grupo do qual fazemos parte pela fé no salvador crucificado é dito: “Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade; pelo contrário, serão sacerdotes de Deus e de Cristo e reinarão com ele os mil anos” (Ap 20.6). E reinarão com ele os mil anos!
Pr. Thomas Tronco
[1] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Vol. 1. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1458.
[2] Smith, Billy K.; Page, Franklin S. Amos, Obadiah, Jonah, vol. 19B, The New American Commentary. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1995, p. 200.
[3] Baker, David W.; Alexander, T. Desmond; Sturz, Richard J. Obadias, Jonas, Miquéias, Naum, Habacuque e Sofonias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 50.