Salmo 32 - A Restauração que Vem do Perdão
Um dos grandes tesouros da literatura mundial é a obra Os miseráveis, de Victor Hugo, escrita no século 19. Nela, há um personagem, um ex-condenado chamado Jean Valjean, que é acolhido por um bispo que o recebe em casa e lhe trata com dignidade. Em pagamento a tão bondoso tratamento, Valjean rouba alguns talheres de prata e foge. Algum tempo depois, a polícia vem à casa do bispo, com o ladrão sob custódia, a fim de conferir a versão de que os utensílios valiosos em seu poder lhe tinham sido presenteados pelo clérigo. Este, para surpresa do leitor, confirma o que foi dito por Valjean e lhe diz, diante dos guardas: “Você se esqueceu de levar os candelabros”.
Ocorre, então, algo que muda a vida do ladrão. O bispo lhe entrega os candelabros e diz: “Use esse dinheiro para se tornar um homem honesto. Você já não pertence ao mal, mas sim ao bem. É a sua alma que acabo de comprar”. O perdão e a generosidade do bispo foram algo tão marcante na vida daquele homem que ele realmente mudou sua vida. Ele se torna um homem honrado e altruísta, a ponto de ajudar outras pessoas necessitadas e até de correr o risco de ser preso ou morto para fazer o bem a uma moça órfã de quem ele acaba cuidando como se fosse sua própria filha.
Davi, o grande salmista, também foi um homem marcado pelo perdão e benevolência que recebeu. Mas não o recebeu de outro homem e sim de Deus. O Salmo 32 é um testemunho de Davi do perdão que recebeu mediante sua confissão de pecados e dos efeitos que o perdão divino teve sobre ele. Junto com o Salmo 51, o Salmo 32 é um lembrete e um encorajamento para que os servos de Deus não se acostumem ou escondam seu pecado, mas confessem-no ao Senhor e o abandonem a fim de que a comunhão com Deus e tudo que decorre dela seja restaurado. Há, nesse salmo, pelo menos três restaurações feitas por Deus aos homens que, contritos, lhe confessam os pecados.
A primeira é a restauração do bem-estar. Os dois primeiros versículos mostram a condição do homem que é perdoado por Deus. Segundo Davi, trata-se de um homem feliz (v.1): “Felizes são aqueles cuja transgressão foi retirada, cujo pecado foi coberto” (’asrê nesûy-pesha‘ kesûy hat’â). O motivo de tal homem ser bendito é apresentado, na sequência, por meio da experiência do próprio escritor (vv.3-5). “Bem-estar” é a última expressão que pode ser aplicada para descrever a condição de Davi enquanto ele escondia seu pecado. O texto revela que ele vivia aflito. Até mesmo seu corpo – talvez, devido a sintomas psicossomáticos da culpa que carregava – sentia os efeitos do seu mau procedimento escondido (v.3): “Quando eu permaneci em silêncio, os meus ossos se consumiram pelo meu clamor diário” (kî-heherashtî balû ‘atsamay besha’agatî kal-hayyôm). Esse silêncio significa ausência de confissão do pecado. Entretanto, se Davi guardou silêncio sobre o pecado, o próprio pecado, por sua vez, gritava em seu interior e o fazia sofrer diariamente por evidenciar sua vida tomando um rumo tão distante do que deveria. Parece que ele chorava e se lamentava “todos os dias” (kal-hayyôm) a ponto de sentir seu corpo fraco e debilitado – o que ele descreve como se seus ossos sofressem um desgaste. É um preço muito alto para esconder a iniquidade.
Talvez alguém diga se tratar de uma consciência fraca que sucumbe ao menor sinal de culpa. Entretanto, Davi oferece um fator externo para o seu mal-estar e pesar (v.4): “Pois dia e noite a tua mão pesa sobre mim” (kî yômam walaylâ tikbad ’alay yadeka). A simples consciência da santidade do Senhor, além da sua disciplina, consumia Davi, não porque Deus seja cruel ou incompassivo, mas porque Davi relutava em lhe confessar o seu pecado. Aconteceu assim até que a situação ficou insustentável e Davi deu uma guinada em sua atitude. Ele conta (v.5): “Confessei a ti o meu pecado” (hatta’tî ’ôdî‘aka). Diante disso, Deus não respondeu tal confissão com algo do tipo “agora é tarde”. Na verdade, o salmista foi realmente perdoado, pelo que diz: “E tu retiraste a culpa do meu pecado” (we’attâ nasa’ta ‘aôn hatta’tî). Pelo jeito, não foi apenas a culpa que Deus levou, mas os próprios efeitos dela sobre a vida de Davi, fazendo com que, junto com o perdão, viessem também o alívio e o bem-estar. É terrível andar longe de Deus, mas voltar à plena comunhão com ele é uma restauração abençoada que se dá pelo perdão.
A segunda é a restauração da alegria. Se o perdão retira da vida do homem contrito o que havia de negativo como a tristeza, ele também produz efeitos positivos como a alegria. Por isso, no v.7, o salmista afirma: “Tu me cercas de aclamações de livramento” (rannê pallet tesôvevenî). Trata-se de uma atitude de produzir cantos alegres em louvor a Deus por uma obra de libertação – nesse caso, não de inimigos, mas do pecado. Davi passou da lamúria à exultação. Ele não se sente mais como um servo ingrato e rebelde, mas como um filho amado pelo Pai e grato por isso. Seus ossos não se consomem mais. Seu vigor retornou. O que é consumida, agora, é a tinta usada para escrever novos cânticos de alegria e de agradecimento a Deus por tê-lo perdoado e restaurado. É o extremo oposto do que Davi vinha enfrentando diante da relutância em confessar a Deus o mal que fez.
A terceira é a restauração do caminho. Os vv.8,9 que parecem vir de outra fonte, como se outro escritor tivesse participado da composição do salmo. Aqui é o Senhor quem dirige sua voz ao salmista e não o contrário – um recurso literário e poético para expressar a atuação de Deus na vida de Davi. Assim, o Senhor compassivo e perdoador diz ao servo (v.8): “Eu te ensinarei e te guiarei no caminho em que tu andarás” (’askîleka we’ôreka bederek-zû telek). Se a ausência de conhecimento da Palavra de Deus, sem falar na desobediência a ela, é a razão de o homem se afastar do Senhor e de fazer o que é mau, a instrução divina é quem promove o processo de santificação revertendo a condição anterior (Jo 17.17). Esse conceito é expresso várias vezes nas Escrituras, várias delas pelo próprio rei Davi: “De que maneira poderá o jovem guardar puro o seu caminho? Observando-o segundo a tua palavra [...] Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti” (Sl 119.9,11). E o mais surpreendente nesse processo é que a ação de instruir e guiar, fator fundamental para a santificação da vida do pecador, é uma iniciativa do próprio Deus. Ele é quem, tomando o servo pela mão, o conduz no caminho correto dando-lhe como mapa as Escrituras.
Davi, como poucas pessoas, conhecia os “dois lados da moeda”. Sabia o que é sofrer na rebeldia e na atitude impenitente. Conhecia também os efeitos restauradores do perdão de Deus na vida do homem arrependido e contrito de coração. Ele não cala tal experiência a fim de instruir os leitores a fugirem do erro e a buscarem o perdão. Em uma postura que revela uma grande sabedoria adquirida ao longo da vida, ele diz (v.10): “Muito pesar há para o ímpio, mas a misericórdia cerca aquele que confia no Senhor” (ravvîm mak’ôbim larasha‘ wehavvôteah bayhwâ hesed yesovevenû). Ele mostra aos pecadores impenitentes dois caminhos e o faz de modo que fique fácil – e óbvio – decidir pelo segundo: o da misericórdia. Não há motivos para que aquele que peca procure desculpas para amainar a consciência sem se curvar arrependido diante de Deus. Desculpas, como “todos fazem a mesma coisa” ou “Deus sabe que sou pecador”, somente trazem, para quem as utiliza, “muito pesar”. Não é algo que compense ou que faça o homem feliz.
Diante de tanta experiência e sabedoria do salmista e de tanto favor e misericórdia do Senhor, chega a ser uma grande tolice sofrer os danos de reter a confissão de pecados e de permanecer no mal. É grande insensatez sofrer as perdas dessa condição enquanto se deixa de lado a restauração plena que há no perdão que Deus concede aos seus. Não há razão para o cristão passar por isso sem voltar atrás, para os braços do Senhor. Se um personagem fictício de um livro muda o rumo da sua vida ao ter “figuradamente” sua alma comprada para o bem, quanto mais os servos de Deus que foram, em realidade, comprados por Cristo a custo do seu sangue (At 20.28) para lhe pertencerem para sempre. Que a nossa luta seja contra o pecado e contra a dureza do coração que teima em não se arrepender! Que o nosso prêmio seja o perdão, a restauração e a comunhão com aquele que nos ama de um modo incomparável! E que a nossa motivação para prosseguir seja o sacrifício e o exemplo do nosso santo Mestre a quem servimos!
Pr. Thomas Tronco