O Cristão e a Teoria da Terra Plana
O espaço reservado em nosso boletim semanal para as pastorais é levado muito a sério em nossa igreja. Esses pequenos textos do nosso pastor, ou de outros escritores sob sua supervisão, visam à edificação, instrução, correção ou proteção dos crentes que lhe foram confiados para pastoreio. E é para atender a esse último aspecto ― o da proteção ― que o presente texto foi encomendado pelo nosso pastor. Essa série de pastorais aborda a Teoria da Terra Plana, pois temos ouvido, com alguma frequência, relatos de cristãos que têm sido seduzidos por teorias conspiratórias que apenas os colocam como fácil alvo de zombaria juntamente com a igreja de que fazem parte.
A Teoria da Terra Plana não é nova e nem é meu objetivo abordar os diversos grupos que vêm abraçando a causa através da história. Todavia, nesses últimos dois anos ela tem sido mais notada, principalmente por causa da popularização das mídias sociais como o Facebook e YouTube. Uma análise simples do conteúdo que tem sido divulgado na Internet mostra que o debate sobre a Terra Plana tem três modalidades: a didático-acadêmica (professores que desejam estimular seus estudantes questionam propositalmente verdades triviais e, assim, fazem com que os alunos trabalhem conceitos complexos para desconstruir falácias científicas); a do humor/deboche (a área científica é fértil para a elaboração de falácias que geram humor e descontração); e, por fim, a conspiratória (busca corrigir supostos erros científicos que temos cometido e nos livrar da manipulação de organizações poderosas). E este é o primeiro erro que os crentes podem cometer: falhar em discriminar as três modalidades acima e abraçar e defender, como verdade, os ensinos que vêm, muitas vezes, de boatos infundados ou, pior, de piadas científicas. Geralmente, o próximo passo dos inimigos do evangelho para desmoralizar e atacar a fé dos crentes é dizer que o crente que crê na ressurreição de Jesus Cristo é o mesmo que crê na Terra Plana, exercendo pouco ou nenhum escrutínio intelectual.
A estratégia é antiga e perspicaz. No final do século 19, dois ateístas céticos, Andrew Dickson White e John Draper, criaram a tese de conflito de que o cristianismo retardaria o progresso da ciência. Por meio da disseminação do mito de que a igreja medieval acreditava que a Terra era plana, eles sugeriram que a igreja poderia se redimir do seu suposto erro acolhendo o darwinismo. Esse complô foi muito bem-sucedido, não apenas por contaminar a igreja com o evolucionismo como por também criar a falsa percepção de que a igreja realmente acreditava na Terra Plana quando a disputa entre heliocentrismo e geocentrismo se deu.
Muitas pessoas assumem hoje que todos pensavam que a Terra era plana até o tempo de Cristóvão Colombo. Isso é um mito. O debate na época de Colombo não contemplava o formato da Terra, mas seu tamanho. Os muçulmanos haviam bloqueado as rotas comerciais terrestres para o Extremo Oriente. Logo, todos perceberam que viajar para a Ásia navegando para o Oeste da Europa era uma possível alternativa ― mas era comercialmente viável? Colombo propôs uma viagem de alguns meses sobre águas abertas e inexploradas sabendo que, para os navios utilizados na época, não era aconselhável navegar mais do que alguns dias fora da vista da terra. Tudo foi muito ousado e perigoso.
Para tornar sua viagem proposta mais palatável e menos absurda, Colombo superestimou a distância a leste da Europa e, ao mesmo tempo, diminuiu a medida de Erastótenes da circunferência da Terra ― ou seja, a premissa de Colombo sempre foi uma Terra esférica! Na estimativa de Colombo, era mais curto e vantajoso chegar à Ásia navegando para o Oeste se comparado às outras alternativas disponíveis. Basta brincar com um globo terrestre para perceber que Colombo estava errado. Aliás, não faltam conspiracionistas para dizer que Colombo errou os cálculos de propósito para ter sua viagem financiada!
Em novembro de 2017, houve a Primeira Conferencia Internacional dos Terraplanistas, na Carolina do Norte, EUA. Menos de trezentas pessoas compareceram ao evento, incluindo repórteres científicos e outros membros curiosos de entidades a fim de saber o que acontece com esse movimento. A organização criacionista Answers in Genesis enviou o renomado astrônomo Dr. Danny Falkner para cobrir o evento. Ele esperava ver argumentos novos ou mais robustos sobre a teoria, mas acabou encontrando um grupo de pessoas que subiam ao púlpito para dar testemunhos de como se deu sua “conversão” ao terraplanismo, tudo isso em meio a aplausos e gritos de apoio. Se, diante disso, sua mente rapidamente associou o que escrevi com o que acontece em uma igreja pentecostal no tocante às manifestações atribuídas ao continuísmo dos dons espirituais, você não está só. Não precisamos de um sociólogo ou filósofo para nos dizer qual é o comportamento que grupos adotam quando, sem base de evidências, mas cheios de paixão por suas percepções, buscam recrutar prosélitos e reforçar suas próprias convicções. Mantêm-se firmes, não por evidências, mas por encorajamento mútuo no erro que os une.
A seguir, iremos abordar, brevemente, alguns argumentos clássicos em favor da esfericidade do planeta em que Deus nos colocou. Listaremos dois argumentos neste texto e mais dois no seguinte, além das conclusões.
1. A sombra da Terra durante o eclipse lunar
A primeira discussão registrada a respeito de uma Terra esférica é de Pitágoras, no século 4 a.C. Pitágoras entendeu corretamente que a causa dos eclipses lunares é o fato de a sombra da Terra se projetar sobre a Lua.
Isso acontece somente quando a Lua é oposta ao Sol em nosso céu, o que coincide com a lua cheia. A sombra da Terra é maior do que a Lua, de modo que não podemos ver toda a sombra ao mesmo tempo. No entanto, durante um eclipse lunar, vemos a sombra da Terra se aproximando da Lua.
Como a periferia da sombra da Terra sempre é uma porção de um círculo, é mais que lógico que a sombra completa da Terra deve ser um círculo. Se a Terra fosse plana e redonda, semelhante a um disco (como sugerem os terraplenistas), poderia projetar uma sombra circular, mas apenas para os eclipses lunares que ocorrem à meia-noite. Para um eclipse lunar ao nascer ou ao pôr do sol, a sombra da Terra seria uma elipse, uma linha ou um retângulo, dependendo da espessura do disco comparado ao seu diâmetro, caso a Terra fosse plana.
No entanto, a sombra da Terra durante um eclipse lunar é sempre um círculo, independentemente da hora da noite em que ela ocorre. A única forma que, consistentemente, tem uma sombra circular independentemente da sua orientação é uma esfera. Aliás, o próximo eclipse lunar em São Paulo ocorrerá no dia 28 de julho de 2018. Anote em seu calendário e observe com atenção o fenômeno!
2. A visibilidade das estrelas (curvatura da Terra no sentido Norte-Sul)
Outro argumento envolve as estrelas que são visíveis nas partes Norte e Sul do céu. A Estrela do Norte, também conhecida como Polaris, encontra-se dentro de um grau do polo celeste Norte, a direção no espaço à qual a rotação da Terra aponta. À medida que a Terra gira a cada dia, as estrelas, o Sol e a Lua parecem girar em torno do polo celestial Norte, de modo que esse polo celeste permanece fixo no céu. Alguns fotógrafos, sabendo disso, fazem maravilhosas fotos usando a técnica de longa exposição, cujo resultado são inúmeras linhas circulares que revelam o caminho das estrelas do ponto de vista da Terra.
A posição da Estrela do Norte é visivelmente mais alta no céu para observadores nos locais mais ao Norte do que em locais ao Sul. Logo, a Estrela do Norte é muito maior no céu no Norte dos Estados Unidos e no Canadá do que no Sul dos Estados Unidos, mais próximo da linha do Equador, assim como o Estado da Flórida.
Isso só pode ocorrer se o movimento Norte-Sul estiver ao longo de um arco, ou seja, de um planeta esférico. Esse fato é ainda mais realçado por outras considerações: há uma região ao redor da Estrela do Norte em que as estrelas não se levantam ou se estabelecem, mas que, em vez disso, apresentam-se continuamente em círculos em torno do polo celestial Norte. Chamamos essas estrelas de circumpolares, o que significa “ao redor do polo”.
A região das estrelas circumpolares é vista de modo mais amplo nas regiões ao norte, quando comparado a locais ao sul do planeta. Do mesmo modo, há uma região circumpolar ao sul. A região circumpolar do Norte, onde as estrelas são sempre visíveis (para quem mora ao norte da linha do Equador), é muito grande, e a região circumpolar do Sul, cujas estrelas nunca são visíveis (para quem mora ao norte da linha do Equador), também é grande, como se sabe.
Todavia, para as pessoas que moram próximo da linha do Equador, é possível ver as duas regiões circumpolares, a do Norte e a do Sul, mas ambas menores. Essas observações mostram, portanto, que a Terra está curvada no sentido Norte-Sul.
3. A curvatura da Terra no Sentido Leste-Oeste
A Terra não é curvada apenas no sentido Norte-Sul, mas também no sentido Leste-Oeste, o que é muito importante para supormos sua forma esférica. Há uma diferença de três horas entre as costas Leste e Oeste dos Estados Unidos. Algo semelhante seria a diferença entre Rio Branco, no Acre, e a Ilha de Fernando de Noronha, em Pernambuco. Ou seja, o Sol nasce, aproximadamente, três horas antes na costa Leste do que na costa Oeste. Isso é facilmente verificado por qualquer pessoa que tenha voado entre as costas Leste e Oeste dos Estados Unidos, como de Nova Iorque até Los Angeles (ou do Acre até Pernambuco). Não só o seu relógio mostra que há uma diferença de três horas, mas seu corpo notará a diferença no tempo, muitas vezes com os desagradáveis sintomas de jet lag.
Se alguém dirigir um carro de uma costa a outra, a viagem levará vários dias. Logo, nossos corpos não perceberão a diferença horária. No entanto, nossos relógios revelam que o tempo mudou. Transportes rápidos, como aviões, não eram possíveis na Antiguidade, mas os antigos podiam ver essa diferença horária de maneira diferente: por meio do eclipse lunar. Como o eclipse lunar acontece simultaneamente para todas as pessoas na Terra, um eclipse lunar pode começar logo após o pôr do sol na Grécia. No entanto, no céu espanhol, a Lua apareceria em eclipse antes mesmo de o Sol se pôr. Isso é possível constatar até mesmo pelas fotos do Instagram ou Facebook postadas por pessoas em diferentes localidades. Significa que o eclipse lunar começou antes do pôr do sol na Espanha, mas depois do pôr do sol na Grécia. Apesar de subestimarmos o grau de comunicação no mundo antigo, os antigos estavam cientes desse efeito ― mesmo sem ter smartphones! Isso mostra que a Terra está também curvada no sentido Leste-Oeste. Se a Terra, portanto, é curva tanto no sentido Norte-Sul como Leste-Oeste, sua forma mais provável é, obviamente, uma esfera.
4. Fontes antigas
Fontes antigas, como Aristóteles, também mencionaram que os cascos dos navios desapareciam no horizonte antes que seus mastros quando os navios navegavam. Isso só aconteceria se a Terra fosse esférica. Sem auxílio óptico, como uma luneta, não é fácil fazer essa constatação. No entanto, pode-se facilmente ver um efeito relacionado. Se alguém estiver empoleirado no alto do mastro do navio é capaz de localizar terra ou outros navios antes das pessoas que estão no convés. É por isso que os observadores de navios antigos eram colocados em um mastro com o “ninho de corvo” bem acima do convés da embarcação. Se a Terra fosse plana, não haveria vantagem alguma em estar acima do convés. Isso só é possível se a Terra for esférica.
As pessoas da Antiguidade não apenas sabiam que a Terra é esférica como uma delas mediu com precisão a circunferência do planeta, em torno de 200 a.C. Eratóstenes trabalhou na Grande Biblioteca em Alexandria, no Egito. Ele é conhecido como o “pai da geografia” porque encomendou a confecção de muitos mapas. Em certo ano, no solstício de verão (o dia mais longo do ano), Eratóstenes estava no Sul do Egito, na região dos trópicos, em Siena (Assuã de hoje). Estando no limite norte dos trópicos, o Sol estava diretamente a pino ao meio-dia. Ele percebeu isso porque podia olhar para um poço profundo e ver seu fundo iluminado.
Normalmente, o fundo de um poço não é visível porque a luz do Sol não brilha diretamente no sentido do comprimento do poço, mas o faz ao meio-dia no solstício de verão naquele local (região dos trópicos). Ele também notou que Sol nunca foi a pino em Alexandria, assim como em Siena, justamente porque a cidade está mais ao norte. De volta a Alexandria, no ano seguinte, no solstício de verão, Eratóstenes mediu a circunferência da Terra ao Sol do meio-dia. Ele fez isso construindo um polo vertical de altura conhecida e medindo a sombra do poste ao meio-dia. A trigonometria permitiu que ele encontrasse o ângulo da formação da sombra pelo poste (aproximadamente, 7 graus). Eratóstenes descobriu que o ângulo era cerca de 1/50 de um círculo. Isso significava que Alexandria e Siena, distantes, aproximadamente, oitocentos quilômetros, estavam separadas por um quinquagésimo da circunferência da Terra. Logo, sabendo a distância entre esses dois locais e multiplicando a distância por cinquenta, o resultado seria o tamanho da circunferência da Terra (aproximadamente, 40 mil quilômetros).
Conclusão
Como podemos perceber, os argumentos em favor da esferecidade da Terra são robustos e conhecidos há séculos. Ademais, outros argumentos que não foram abordados aqui, mais sofisticados ou não, como o relato de dois cristãos dentre os doze homens que já pisaram a Lua, não podem ser desprezados.
Por isso, o cristão, como sempre, deve avaliar com cuidado as informações que são despejadas diariamente nas redes sociais, tanto no aspecto científico como no teológico, para que não seja alvo de zombarias que possam comprometer sua reputação e da preciosa igreja de que faz parte. E claro que sempre haverá uma inevitável zombaria por causa do nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Mas sejamos zelosos a respeito da zombaria (evitável) que é proveniente de uma postura acadêmica deficiente e negligente como, por exemplo, a da Teoria da Terra Plana.
Ev. Leandro Boer