A Aliança Davídica
Em lugar de o Senhor aceitar a casa de presente, ele fez o oposto. E mais: prometeu uma casa para Davi: “Dar-te-ei, porém, descanso de todos os teus inimigos; também o Senhor te faz saber que ele, o Senhor, te fará casa” (2Sm 7.11b). Diante disso, ficou claro a Davi e aos leitores do livro de Samuel que o reinado de Davi não seria estabelecido pelo que ele poderia fazer para Deus, mas pelo que Deus faria por ele.[3]
Ao prometer a Davi uma casa, o Senhor não se referiu a uma construção, visto que o próprio texto revela a propriedade de uma boa casa real: “Disse o rei [Davi] ao profeta Natã: Olha, eu moro em casa de cedros” (2Sm 7.2a). Sendo assim, o Senhor se referiu a uma “dinastia real”. Se a aliança abraâmica prometeu aos israelitas uma “terra”, a aliança davídica[4] prometeu a Davi e ao povo de Israel um “trono” e uma “descendência real”: “Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi, meu servo: Para sempre estabelecerei a tua posteridade e firmarei o teu trono de geração em geração” (Sl 89.3,4). Na verdade, essa aliança nada mais é do que uma especificação da aliança abraâmica, já que ela já havia anunciado a existência de uma monarquia israelita.
Sendo assim, a aliança davídica também não substitui a abraâmica, mas se soma a ela no que tange à liderança política de Israel. Se a aliança abraâmica previu reis (Gn 17.6,16) vindos da tribo de Judá (Gn 49.10), a aliança do Senhor com Davi identificou a linhagem davídica como a dinastia específica pela qual o reino israelita seria dirigido. O que há de marcante nessa promessa é a duração desse reinado, pois seria “perpétuo”, assim como a posse da terra prometida a Abraão.
A recusa divina de receber de Davi a construção de um templo – isso só ocorreu no reinado de Salomão, filho de Davi – serviu para frisar que a aliança davídica não era uma troca de favores, mas uma promessa unilateral iniciada pelo próprio Senhor de maneira incondicional, ou seja, não dependia de condições humanas para que fosse levada a cabo. Assim, depois de dizer “te farei casa”, Deus continuou: “Quando teus dias se cumprirem e descansares com teus pais, então, farei levantar depois de ti o teu descendente, que procederá de ti, e estabelecerei o seu reino. Este edificará uma casa ao meu nome, e eu estabelecerei para sempre o trono do seu reino” (2Sm 7.12,13).
Certamente, a parte menos importante desse trecho é a que mais chama atenção: “Este edificará uma casa ao meu nome”. Entretanto, esse não é o centro dessa aliança. Deus mesmo frisou a verdade de que ele nunca habitou em uma casa entre os israelitas, mas sempre andou entre eles no tabernáculo (2Sm 7.6). Apesar disso, o filho de Davi realizaria esse empreendimento que Davi desejou. Se o templo não era o centro da aliança, qual era?
A resposta tem a ver com a descendência real de Davi. Deus garantiu ao rei que levantaria seu descendente e “estabeleceria o seu reino”. Diferente do que ocorreu a Saul, o reinado de Israel não passaria a outra dinastia. E mais: Deus estabeleceria “para sempre o trono do seu reino”. Essa é a garantia incondicional de um trono “perpetuo” da linhagem davídica.
Apesar da incondicionalidade da promessa, um fator condicional está presente, nem tanto pela promessa do trono em si, mas por apontar para pessoas israelitas que estavam sob o tratamento condicional da aliança mosaica. Assim, o Senhor fala do filho de Davi algo que vale para toda a linhagem: “Eu lhe serei por pai, e ele me será por filho; se vier a transgredir, castigá-lo-ei com varas de homens e com açoites de filhos de homens” (2Sm 7.14). O que o Senhor faz aqui nada mais é que reafirmar as maldições da aliança mosaica pela desobediência (ver Lv 26 e Dt 28).[5]
Entretanto, apesar do tratamento condicional da aliança mosaica, o benefício da aliança davídica – a garantia do “trono perpétuo” – jamais seria esquecido ou rejeitado, pelo que Deus garante na sequência: “Mas a minha misericórdia se não apartará dele, como a retirei de Saul, a quem tirei de diante de ti. Porém a tua casa e o teu reino serão firmados para sempre diante de ti; teu trono será estabelecido para sempre” (2Sm 7.15,16). Essa é a garantia de que até o final da história da humanidade haverá um descendente real da casa de Davi e um trono em Israel onde esse rei exercerá seu poder governamental.
Essa mesma dinâmica – punição dos indivíduos pecadores da dinastia da aliança, mas a garantia do trono e do reino perpetuamente – se vê no Salmo 89. Ele anuncia a punição dos reis pecadores: “Se os seus filhos desprezarem a minha lei e não andarem nos meus juízos, se violarem os meus preceitos e não guardarem os meus mandamentos, então, punirei com vara as suas transgressões e com açoites, a sua iniquidade” (Sl 89.30-32). Entretanto, garante:
Mas jamais retirarei dele a minha bondade, nem desmentirei a minha fidelidade. Não violarei a minha aliança, nem modificarei o que os meus lábios proferiram. Uma vez jurei por minha santidade (e serei eu falso a Davi?): A sua posteridade durará para sempre, e o seu trono, como o sol perante mim. Ele será estabelecido para sempre como a lua e fiel como a testemunha no espaço (Sl 89.33-37 cf. v.3,4,28,29).
O Antigo Testamento vê a aliança davídica se cumprir plenamente em um rei especial, nascido em Belém, “cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Mq 5.2). Ele viria somente depois de a linhagem de Davi ser, de fato, punida conforme a própria prescrição da aliança[6] – Miqueias 5.1 diz: “pôr-se-á sítio contra nós; ferirão com a vara a face do juiz de Israel”.
Tendo o cumprimento de Miqueias 5.1 ocorrido em 587 a.C. com o destronamento de Zedequias, o último rei da casa de Davi a reinar em Israel, o Novo Testamento identifica Jesus como o herdeiro do trono davídico e garante seu futuro reinado na mesma função ocupada por antecessor, o rei Davi, pelo que o anjo garante a Maria: “Este será grande e será chamado Filho do Altíssimo; Deus, o Senhor, lhe dará o trono de Davi, seu pai” (Lc 1.32).
Para que não se confunda o caráter desse reinado, o anjo completa: “Ele reinará para sempre sobre a casa de Jacó, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1.33). Esse é o pleno cumprimento da aliança davídica. Se hoje não há um rei da dinastia de Davi reinando em Jerusalém sobre a nação de Israel, é por causa do tratamento condicional disciplinar que essa aliança previu. Mas a garantia do trono existe e, no momento que Deus preparou para tanto, Jesus retornará e assumirá seu lugar no trono de Davi cumprindo a aliança de caráter perpétuo.
O momento desse cumprimento é vislumbrado em um momento que, para nós, ainda é futuro: “O sétimo anjo tocou a trombeta, e houve no céu grandes vozes, dizendo: O reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do seu Cristo, e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11.5). O fato de essas vozes dizerem que o reino “se tornou”[7] indica que eles não se referem ao reinado eterno e soberano do Senhor sobre o universo, mas de um reinado específico que ele não teve sempre e que, na verdade, ainda não assumiu. Por isso, a ação seguinte se vê no tempo futuro mesmo da perspectiva daqueles dias: “e ele reinará pelos séculos dos séculos” (Ap 11.5b).
Resumo:[8]
· Celebrada no Monte Sião (Jerusalém).
· Iniciada por Deus e garantida unilateralmente por Ele.
· Promessa de uma dinastia contínua e de um herdeiro eterno especialmente prenunciado, cujo caráter divino promoverá um reinado de justiça plena.
· Promessa de um trono perpétuo cujo reino, também perpétuo, é a nação de Israel, a qual Davi governou.
· O rei eterno, da dinastia de Davi, exercerá, também, preeminência sobre as nações.[9]
· Tratamento condicional aos indivíduos da dinastia, com promessa de disciplina temporal para os reis que pecassem conforme as prescrições da aliança mosaica.
· Aliança de caráter incondicional.
· Pressupõe o futuro reinado de Jesus, o descendente de Davi, sobre Israel restaurado e assentado na terra prometida.
Pr. Thomas Tronco
[1] Samuel J. Schultz, A História de Israel no Antigo Testamento, p. 141.
[2] Eugene Merrill, História de Israel no Antigo Testamento, p. 251-256.
[3] Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento, p. 299-300.
[4] O texto de 2Samuel 7, que estamos tratando como celebração da aliança davídica, não contém a palavra “aliança” (“berît”, em hebraico). Entretanto, nas últimas palavras de Davi – 2Samuel 23.5 – ele se refere a essas promessas como sendo uma “aliança” (Ralph Smith, Teologia do Antigo Testamento, p. 149).
[5] Especialmente Lv 26.17,25,29,32-34,38 e Dt 28.25,36,48-57. Destaque especial para: “O Senhor te levará e o teu rei que tiveres constituído sobre ti a uma gente que não conheceste, nem tu, nem teus pais; e ali servirás a outros deuses, feitos de madeira e de pedra” (Dt 28.36).
[6] Isaías previu o mesmo, dizendo: “Porque um menino nos nasceu, um filho se nos deu; o governo está sobre os seus ombros; e o seu nome será: Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade, Príncipe da Paz; para que se aumente o seu governo, e venha paz sem fim sobre o trono de Davi e sobre o seu reino, para o estabelecer e o firmar mediante o juízo e a justiça, desde agora e para sempre. O zelo do Senhor dos Exércitos fará isto” (Is 9.6,7). Jeremias também associa esse reinado ao governo da nação israelita (Jr 23.5,6; 33.15-17).
[7] Do verbo grego “gínomai”, que significa “ser feito”, “tornar-se”, “tomar lugar” (W. Arndt, F. W. Danker e W. Bauer, A Greek-English Lexicon of the New Testament and other Early Christian Literature, p. 196-199). Comprar esse sentido ao texto subsequente: “Graças te damos, Senhor Deus, Todo-Poderoso, que és e que eras, porque assumiste o teu grande poder e passaste a reinar” (Ap 11.17).
[8] Esses resumos das alianças baseiam-se em um material de aula sobre “o relacionamento das alianças” produzido por Carlos Osvaldo Cardoso Pinto.
[9] Ver Miqueias 4.1-3 cf. 5.2.