Javé e Karma
“De um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra, havendo fixado os tempos previamente estabelecidos e os limites da sua habitação” (At 17.26).
Segundo a cosmovisão cristã, uma das formas de classificar a realidade é por meio da distinção entre entes criados e entes incriados. Quando, pois, querem ilustrar graficamente essa visão de mundo, os mestres cristãos costumam traçar uma linha horizontal e, acima dela, escrevem a expressão “não criado” (ou coisa que o valha). Depois, logo abaixo da linha, escrevem a palavra “criado”.
Numa divisão assim, os crentes colocam acima da linha unicamente o Deus Trino e, abaixo, os anjos, os homens e tudo mais no universo. Os cristãos também entendem que somente o que se situa acima da linha deve ser adorado. É por isso que os verdadeiros seguidores de Jesus não cultuam Maria, os seres angelicais e os santos venerados pelo catolicismo. Todos esses seres se situam abaixo da linha. Portanto, não são dignos de nenhum tipo de adoração.
Nos tempos atuais, porém, essa cosmovisão cristã tem encontrado novos desafios que (pasmem!) partem de dentro do próprio arraial denominado evangélico. Refiro-me ao fato de que, recentemente, muitos crentes têm defendido a existência de duas realidades incriadas que coexistem de forma autônoma e independente. Essas duas realidades são, segundo essa nova tendência, Deus e a história.
Obviamente, essa crença não é declarada assim, de forma tão escrachada. Porém, o que tem sido afirmado por aí afora, especialmente nos círculos neoarminianos, é que Deus não criou a história. Ainda que, segundo essa concepção, a história (em especial a que há de vir) seja uma realidade certa e fixa, essa realidade não foi criada. Antes, existe de forma autônoma, tendo surgido sabe-se lá de onde e sendo acessível somente a Deus que a conhece, mas que não a criou ou planejou.
Para ilustrar esse ensino, os mestres dessas coisas dizem que a história, em seus aspectos passado, presente e futuro, está para Deus como uma estrada está para um observador do alto de uma montanha. Esse observador somente vê e estrada, conhecendo suas curvas, aclives, declives, extensão e também os incidentes (e acidentes) que nela ocorrem. Ele, porém, apenas “constata” essas coisas, não sendo o construtor da estrada e muito menos o controlador do que nela ocorre.
Qualquer pessoa que tenha um mínimo de instrução teológica percebe que um ensino como esse representa um rompimento fatal com a doutrina da criação que afirma insistentemente que só existe uma realidade incriada: Deus! Trata-se também de um completo rompimento com a doutrina da providência e um golpe violento contra qualquer noção de soberania divina absoluta.
Na verdade, os defensores desse tipo de coisa propõem que aceitemos uma nova forma de paganismo dotado de duas cabeças. Querem que creiamos na eternidade e autonomia de Deus e também numa história incriada e independente, que surgiu do nada, sem qualquer mente soberana que a tenha planejado e trazido à luz. Esse modelo é, por assim dizer, uma mescla de Javé e Karma, uma fé esdrúxula que proclama um Deus pessoal incriado que coexiste com uma história impessoal, surgida ex nihilo (do nada). Essa história, sendo uma realidade objetiva, pode até ser consultada por Deus, mas não se deve crer que ela é obra dele. É assim que concluem que Deus tem uma presciência meramente “constatativa”.
Todas essas invenções devem ser rejeitadas pelos crentes que primam pela boa ortodoxia. Com efeito, o cristão realmente bíblico deve reconhecer que existe sim uma “coisa” chamada história e que essa “coisa” não é apenas uma sucessão casual de acontecimentos, como acreditam os ateus, mas sim uma realidade planejada. Essa realidade se situa na mente de Deus. Não se trata, pois, de algo exterior ou paralelo a ele, como uma “estrada” que ele observa. E essa história, previamente traçada e, em sua maior parte, escondida na mente de Deus, vem à luz no transcorrer das eras, na medida em que ele administra sua concretização nos tempos que de antemão fixou.
Isso tudo possibilita que olhemos para a história como uma forma de revelação. Sim, pois nela vemos o magnífico plano de Deus para o universo se desenrolando aos poucos e, então, contemplamos nesse drama a sabedoria do Senhor, sua arte, sua criatividade, sua grandeza, sua complexidade e também seus intrigantes enigmas. Então, diante de tudo isso, somos encorajados a dizer com o poeta bíblico: “São muitas, Senhor, Deus meu, as maravilhas que tens operado e também os teus desígnios para conosco; ninguém há que se possa igualar contigo. Eu quisera anunciá-los e deles falar, mas são mais do que se pode contar” (Sl 40.5).
Pr. Marcos Granconato
Non nobis, Domine