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Eclesiastes 1.1-11 – A Inexistência do Progresso

 

Eclesiastes é considerado por muita gente como um livro pessimista, fruto de um ânimo depressivo e desiludido do autor, especialmente em sua introdução. Mas isso não é verdade. Para atravessarmos essa floresta de reflexões, muitas vezes fechada e com pouca luz, é preciso ter em mente aonde o escritor quer conduzir seus leitores. Isso, certamente, muda o enfoque de toda sua argumentação inicial e lhe dá cores que completam um belo quadro. Assim, mesmo chocados com a visão taciturna do início do livro, temos de dar um voto de confiança ao escritor no sentido de saber que ele quer nos ensinar coisas positivas, preciosas e edificantes. Estas, quando bem-compreendidas, mudarão nossa visão sobre a vida e seus valores e que os veremos do modo como Deus os vê. Para tanto, é preciso ter em mente que o propósito do escritor parece ser o de “estimular o temor do Senhor como a chave para uma vida significativa em um mundo que é, em tudo mais, desprovido de significado”.[1]

O livro começa de modo clássico, com a apresentação autoral (v.1): “Palavras do Pregador, filho de Davi, rei em Jerusalém”. Apesar de o livro não vir assinado com o nome do seu escritor, não é difícil descobrir sua identidade, visto informar ser ao mesmo tempo “filho de Davi” e “rei em Jerusalém”. Nenhum outro filho do rei Davi, fora Salomão, assumiu o trono de Israel. É claro que a palavra “filho” pode, muitas vezes, ser compreendida no AT como outro descendente — como um “neto”, “bisneto” ou outro da mesma linhagem —, mas a história dos reis davídicos não habilita muitos deles a serem pregadores sábios e nenhum outro deles utilizando ensinos e linguagens tão semelhantes ao restante da literatura salomônica. Assim, apesar da objeção de boa parte dos estudiosos modernos, Salomão é o candidato praticamente indiscutível ao posto de autor do livro.

É bom notar que a palavra hebraica traduzida aqui como “Pregador” também tem o sentido de um “presidente de assembleia”,[2] uma boa descrição para um rei, ou de um “coletor” ou “colecionador”,[3] alguém que reúne informações suficientes para torná-lo um bom professor ou pregador, algo que descreve bem a figura e a função do rei Salomão, especialmente na produção de Eclesiastes.

Tendo se apresentado como autor, Salomão, então, faz sua primeira afirmação (v.2): “Futilidade de futilidades! — diz o Pregador — Futilidade de futilidades! Tudo é futilidade!”. O termo hebraico aqui traduzido por “futilidade” é normalmente traduzido nas Bíblias de língua portuguesa como “vaidade”. A dificuldade, porém, é que o termo vaidade pode ser confundido com o apego pessoal à beleza, em vez de apontar, como deveria, para coisas que são vãs, inúteis e passageiras. Assim, “futilidade”[4] é, talvez, uma escolha melhor, tanto para fazer jus à tradução do texto original como para transmitir ao leitor a ideia pretendida pelo escritor. Assim, esse é um início enigmático, pois se trata de uma conclusão forte e inesperada que precisa ainda ser explicada e provada. Em suma, o que é postulado nesse versículo é que todas as coisas ligadas à vida são passageiras e não têm sentido em si, ou melhor, não dão sentido à existência humana. Todas elas são inúteis para nos explicar por que e para que existimos. Além disso, a compreensão e o usufruto delas são incapazes de dar sentido à vida das pessoas e só podem fornecer uma felicidade ilusória a quem as busca.

Não é para menos que muita gente acha que Eclesiastes é um livro tremendamente pessimista e fruto de uma mente deprimida e decepcionada com o mundo. Mas isso não é verdade. Todo o livro deve ser lido e analisado à luz da conclusão do autor, na qual ele compara o temor do Senhor a todos os meios de vida sem ele. Mas, por ora, o escritor quer impactar seus leitores com as implicações inevitáveis da visão incorreta sobre o mundo à parte do conhecimento e do relacionamento com seu criador. Seu intuito parece ser o de mostrar a vacuidade das coisas nelas mesmas, sem que o relacionamento saudável com o Senhor dê sentido a tudo mais.

Desse modo, o escritor lança uma pergunta retórica (v.3): “Que proveito o homem tem em todo o esforço que ele empreende debaixo do Sol?”. A pergunta é retórica porque, apesar de, inevitavelmente, levar à reflexão a respeito dos resultados do trabalho, a resposta que o autor almeja obter é “nenhum”. A expressão traduzida como “o esforço que ele empreende” é a tradução da mesma palavra em duas formas diferentes e sequenciais, o que é um modo hebraico de dar ênfase ao significado do termo. Nesse caso, o termo tem o sentido de “trabalho”, mas também de “aflição” ou “problema”, mostrando que esse trabalho é árduo, preocupante e desgastante, criando mais aflição no homem do que lhe dando sentido à existência.

Algo importante a se notar para a boa compreensão do livro é a perspectiva com a qual Salomão expõe tais pensamentos, descrita na expressão “debaixo do Sol”. Sua preocupação não é com a localização desse astro dentro do sistema solar ou em relação às galáxias, mas oferecer uma ideia equivalente à expressão “debaixo do céu” em Êxodo 17.14 e em Deuteronômio 7.24 e 9.14, referindo-se a “este mundo”.[5] Assim, ele nos ajuda a olhar pela lente do homem que vive apenas pelo que vê e não pelo que está acima do Sol e do céu, a saber, o Deus criador de tudo e redentor daqueles que creem nele.

O primeiro golpe na visão existencialista é mostrar aos homens, especialmente àqueles que se acham importantes, o quanto são dispensáveis e passageiros (v.4): “Uma geração vai e outra geração vem, mas a Terra permanece continuamente”. A ideia de Salomão não é propriamente a de informar até quando a Terra irá existir, mas utilizá-la como parâmetro a fim de provar seu argumento a respeito da transitoriedade da vida. Normalmente, vemos nossa geração como central no desenvolvimento do mundo e fundamental no decurso da história. Entretanto, o texto chama à memória dos seus leitores as gerações passadas das quais eles quase nada sabem e que em nada afetam seus objetivos imediatos. É como se dissesse que todas as gerações pensaram ser fundamentais até passarem e darem lugar a outras. Ao contrastar a sucessão de gerações com a permanência da Terra, o autor quer tirar dos leitores qualquer tipo de pretensão de que suas vidas tenham em si importância atemporal e contínua.

É claro que alguém pode pensar que essa mensagem se encaixa melhor no mundo antigo do que no atual, com seus avanços rápidos e astronômicos, cheios de transformações. Alguém também pode dizer que a experiência de vida de cada pessoa é uma sucessão de mudanças. Contudo, apesar das grandes transformações pelas quais os homens passam em suas vidas e em suas gerações, a criação permanece seu curso sem ser transformada significativamente por nós, tornando nossas mudanças e nossos progressos em fatores insignificantes diante do mundo no qual habitamos.

Para provar esse ponto de vista, o escritor passa à observação de certos fenômenos da natureza (v.5): “O Sol se levanta, o Sol se põe e se apressa para o lugar de onde se levanta novamente”. A impressão inicial que o escritor dá é a de que o Sol está em movimento ao redor da Terra. Entretanto, isso não constitui um erro, mas o uso de um tipo de linguagem chamada fenomenológica, a qual narra os eventos como eles se parecem do ponto de vista do observador, sem se importar com a exatidão científica. Assim, o presente objetivo em expor o movimento diário do Sol é mostrar a continuidade e constância do universo, independente do que o homem faça, pense, sinta, queira ou conheça.

Logo depois de descrever a movimentação do Sol no sentido Leste-Oeste, ele completa o quadro com o vento girando constantemente no sentido Norte-Sul (v.6): “O vento sopra para o Sul e se volta para o Norte. Volta após volta, o vento vai e se volta novamente”. É claro que há ventos que se deslocam mesmo nas direções Norte e Sul (Jó 37.9,17; Ct 4.16), mas é certo, também, que não existem apenas tais ventos. A própria Bíblia cita outras direções de ventos, como aqueles vindos do Leste (Gn 41.6,23,27) e do Oeste (Êx 10.19). Porém, o quadro se completa em si mesmo quando, para os quatro lados que se olhe, a Terra e a natureza continuam seu curso constante sem qualquer alteração por causa dos homens, independente do que eles pensem de si.

O próximo ciclo descrito pelo escritor envolve a água dos rios (v.7): “Todos os rios correm para o mar, mas o mar não se enche. Os rios correm até o lugar para onde, então, voltam a correr”. O movimento contínuo da água em uma só direção é mais uma prova da continuidade e da automanutenção da natureza independente do homem. O que não é citado, mas que não é um grande mistério, é como pode a água correr constantemente sem encher o mar e sem esgotar seu suprimento, pois qualquer leitor é capaz de entender que a razão para tanto é a chuva, outro fator natural constante, geração após geração. Inicialmente, isso pode não parecer grande coisa no argumento sobre a futilidade das coisas que compõem a experiência humana e o progresso alavancado pelo desenvolvimento das humanidades. Porém, basta que haja uma temporada prolongada de estiagem ou de chuvas intensas para mostrar que, mesmo com todos os avanços, o homem é sujeito ao seu meio e é incapaz de vencer sua força ou impedi-lo em seu curso.

É óbvio que não há nada errado com os ciclos que mantêm a criação. É a renovação diária dos recursos naturais que nos possibilita viver e que mantém a fauna, a flora, a sucessão das estações do ano e a produção de alimentos. Mas a repetição de voltas nos elementos da criação — o Sol, os ventos e a água dos rios —, mais do que observações científicas ou análises do que veem os nossos olhos, parece ser a tentativa do escritor de provocar certa sensação no leitor, uma sensação de pequenez e de transitoriedade em um mundo que existia antes dele e que continuará a existir normalmente depois de sua morte, sem sentir sua falta.

Outro efeito de mencionar as sucessivas voltas do Sol no sentido Leste-Oeste, dos ventos no sentido Norte-Sul e das águas descendo e subindo morros é a sensação de monotonia, de modo que Salomão aponta isso também em seu argumento (v.8): “Todas essas coisas são maçantes a ponto de ninguém poder descrever. O olho não se farta de ver e o ouvido não se sacia de ouvir”. Esse é um versículo que apresenta muitas dificuldades de tradução, especialmente porque seu sentido não é tão claro a ponto de, pela facilidade de compreensão, auxiliar os tradutores em sua tarefa. Mesmo assim, ele parece mostrar que, apesar da continuidade repetitiva da criação, o homem não é capaz de explicar tudo que a move e a mantém, não havendo a possibilidade de um término no processo de observá-la e aprender sobre ela. É como se o homem fizesse um curso que ele nunca conseguirá concluir, não conseguindo obter realização pessoal e satisfação plena nessa atividade intelectual.[6]

Isso, obviamente, suscita uma questão: “É inútil observar a criação?”. Claro que não, pois as Escrituras afirmam que “os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas” (Rm 1.20). Contudo, a perspectiva que Salomão está abordando em seu livro é a do mundo “debaixo do Sol”, no qual o homem ignora a existência do Senhor ou simplesmente não se importa com ela, herdando do universo, com isso, uma mensagem vazia e insatisfatória.

Nesse ponto, alguém poderia contestar dizendo que o sentido da vida não está no universo em que ele existe, mas na história que ele ajuda a traçar. Mas essa é mais uma área que recebe um duro golpe das observações do escritor (v.9): “O que foi antes é o mesmo que será depois. O que aconteceu antes é o mesmo que acontecerá depois. Não há nada novo debaixo do Sol”. O campo dos acontecimentos, pelo visto, é também marcado por ciclos que se repetem. Essa realidade se deve nem tanto à mesmice da natureza, mas à mesmice do homem, o qual, mesmo geração após geração, continua tendo as mesmas paixões, desejos, fraquezas, impulsos e pecados. É por isso que governos se sucedem, guerras se repetem, relacionamentos continuam a ocorrer, tradições são mantidas e quebradas, agrupamentos são feitos e desfeitos, conhecimento é transmitido, conquistas se acumulam e tragédias continuam a recair sobre os homens. E por mais que cada evento isolado tenha um grande impacto sobre sua geração, eventos semelhantes ocorreram em outras épocas sem que a história se quebrasse no meio ou deixasse de seguir seu rumo constante.  

A conclusão de que “não há nada novo debaixo do Sol” é enfatizada por uma pergunta que, apesar de seu caráter retórico, o escritor faz questão de responder (v.10): “Acaso há alguma coisa de que se possa dizer: ‘Veja, isso é novo’? Isso já aconteceu muito tempo antes de existirmos”. A resposta sobre o surgimento de novidades é um sonoro “não”, visto que os acontecimentos atuais são repetições de eventos semelhantes do passado. Da mesma forma que ocorre na natureza, a repetição constante de realizações anteriores é também verdadeira nas atividades das pessoas, fazendo com que sua observação também seja maçante e produza cansaço e falta de satisfação no homem.[7] No final das contas, as novidades que o homem vê são novidades apenas para ele,[8] algo que tira delas o caráter de novo e que confere falta de sentido ao seu descobrimento.

O escritor é alguém muito hábil com sua pena, pois os ciclos monótonos e repetitivos que ele descreve são também expostos por meio de suas frases sucessivas e circulares, dessa vez enfatizando os ciclos históricos (v.11): “Não há recordação das coisas passadas, nem haverá recordação das coisas que ocorrerão no futuro. Elas não serão lembradas por aqueles que virão depois”. Essa afirmação parece ser um pouco exagerada, pois a história se lembra de feitos e de nomes notáveis. Mas esses, se comparados à totalidade das pessoas que já viveram e que ninguém nunca ouviu falar delas, e dos acontecimentos que já ocorreram e ninguém sabe, são menos que uma gota no oceano. Isso certamente faz com que o escritor tenha razão ao desencorajar o leitor a se achar importante ou crer que deixará marcas indeléveis na história. Quando olhamos para a história passada e percebemos que só conhecemos pequenos grãos daquilo que ela foi, temos nisso mais uma prova da futilidade da vida quando considerada completa em si mesma.[9]

A conclusão que se pode tirar desse trecho inicial é que todo progresso que o homem julga conhecer ou promover é inexistente e vão, pois seu alcance é ínfimo na natureza, seu conhecimento completo é inatingível e suas conquistas são esquecidas nas gerações futuras, esvaziando-o de qualquer sentido ou valor duradouro. Mas o que o autor quer produzir com essa reflexão? Simplesmente desanimar seus leitores e tirar deles o prazer de viver? Não! Na verdade, ele tem propósitos bem maiores e nobres que esses. Porém, para atingi-los, é preciso, primeiro, que o leitor entenda qual é o resultado da perspectiva da vida apenas da visão existencialista, ateísta ou simplesmente de alguém que não se importa com Deus ou com aquilo que não vê, olhando apenas para as coisas “debaixo do Sol”. Se, pelos olhos da fé, o homem não consegue olhar para acima do Sol, para o Deus criador e salvador que a tudo dá sentido e significado, tudo que conhecerá na vida será “futilidade de futilidades”.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 566.

[2] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 573.

[3] Brown, Francis; Driver, S. R.; Briggs, Charles. Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon. Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, 2000, p. 875.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 1.2].

[5] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 284.

[6] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 65.

[7] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 980.

[8] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 35.

[9] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). Ecclesiastes. The Pulpit Commentary. London: Funk & Wagnalls: 1909, p. 11.

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