Não me Envergonho do Evangelho
O título deste artigo foi extraído de Romanos 1.16. Nesse famoso versículo, Paulo exalta a mensagem de Cristo, afirmando que ela é “o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê”. Ora, numa época em que o meio evangélico dá tanta ênfase ao “poder de Deus” e tão pouco espaço para o evangelho, dá pra notar que existe alguma coisa errada. Também numa época em que os pregadores ensinam que a salvação depende, no fim das contas, da pessoa que escuta a mensagem, dá pra ver por que tão pouca gente considera o evangelho o “poder para a salvação”. Na cabeça de muitos pastores, o “poder para a salvação” está mais no livre-arbítrio dos homens do que no evangelho puro de Cristo. Mas vamos deixar o quadro moderno de lado e falar sobre o pedaço de Romanos 1.16 que serve de título para este artigo.
Já li alguns comentários sobre a expressão “não me envergonho” e alguns me pareceram muito fracos. Os comentários fracos são aqueles que, entre outras coisas, desconsideram aspectos técnicos da linguagem e nascem a partir das meras percepções pessoais do comentarista. Nem sempre esses comentários são ruins ou heréticos. Na maior parte das vezes, eles são apenas “fracos” por não oferecer informações mais ricas em termos contextuais e/ou gramaticais. Eu costumo chamar as exposições assim de “interpretações intuitivas”, já que sua fonte principal são os insights de quem escreve.
Bom, aonde é que eu quero chegar? Como eu ia dizendo, já li comentários fracos sobre a frase “não me envergonho do evangelho”. Nesses comentários, os autores diziam coisas mais ou menos assim: “Por quais razões alguém teria vergonha do evangelho? Paulo não tinha essa vergonha, mas por que alguém teria? Bem, alguém poderia se envergonhar do evangelho por causa da sua simplicidade, por ser uma mensagem anunciada por gente iletrada (pescadores galileus). Outros poderiam se envergonhar do evangelho porque o conteúdo de sua mensagem pode parecer absurdo aos homens. Afinal de contas, o evangelho diz que um nazareno crucificado é Deus, que ele ressuscitou dentre os mortos e um dia voltará em glória. Acaso isso não despertaria o riso das pessoas? Outros ainda poderiam se envergonhar do evangelho porque seus expoentes são socialmente isolados, rejeitados e perseguidos. Que vergonha estar associado a gente assim!”.
Comentários desse tipo parecem bonitos e, geralmente, estão na base de um forte apelo pastoral. No entanto, uma análise “técnica” do texto revela que nem de longe Paulo estava pensando nessas coisas quando escreveu Romanos 1.16. De fato, quando o apóstolo compôs esse famoso versículo, ele usou uma figura de linguagem chamada litotes. A litotes é usada quando o objetivo de quem fala ou escreve é atenuar uma afirmação por meio da negação do seu contrário. Calma! Não é tão complicado quanto parece. Deixe-me dar um exemplo. Suponhamos que eu queira dizer que Maria é velha. Afirmar isso, por mais verdadeiro que seja, não é lá muito delicado. Então, pra atenuar a afirmação, eu digo: “Maria não é jovem”. Percebeu? Eu digo que Maria é velha negando o contrário do termo velha (jovem). Aí a afirmação fica mais leve e Maria não se sente tão ofendida.
Como isso se aplica ao versículo que estamos considerando. Muito simples: Paulo está dizendo, na verdade, que se orgulha do evangelho. Nem de longe ele pensou em razões para se envergonhar da mensagem que pregava e também não imaginou ninguém enfrentando uma situação em que fosse possível ficar envergonhado por crer em Cristo. Na verdade, ao escrever, ele só quis destacar o oposto disso. Ele tão somente se orgulhava do evangelho e até explicou o motivo (“porque é o poder de Deus para a salvação”). No entanto, dizer “eu me orgulho do evangelho” teria uma conotação pesada e Paulo atenuou esse impacto usando uma litotes, ou seja, negando o contrário de orgulhar-se e, dizendo assim, “não me envergonho”.
Que relevância isso tem em termos práticos? Bem, entender isso é crucial para que o pregador evite enfatizar coisas que Paulo não quis enfatizar. O pregador (ou mesmo o leitor) que compreender o versículo corretamente não perderá seu tempo destacando a possibilidade de alguém ter vergonha do evangelho ou mesmo as razões pelas quais isso pode acontecer. Em vez de agir assim, ele destacará o “santo orgulho” que o crente deve ter do evangelho e as razões para isso, incentivando-o a anunciar com mais vigor a palavra da fé.
Ademais, o crente que entender o texto corretamente não correrá o risco de acreditar que a vergonha do evangelho é uma possibilidade compreensível (o que pode até desmotivar o evangelismo). Sua tônica será na grandeza do evangelho e não em motivos razoáveis pelos quais algum crente medroso possa ficar com vergonha dele, já que, conforme dito, a vergonha do evangelho e os eventuais motivos para isso não estavam na mente do apóstolo quando escreveu Romanos 1.16.
Bom, fica aí uma liçãozinha básica de como entender o versículo mencionado. Por meio dele, aprendemos que Paulo se orgulhava da mensagem que pregava, sendo esse o ponto principal que anelou realçar. Pelo menos nesse texto, o apóstolo sequer considerou a hipótese de alguém se envergonhar do evangelho. Se quisermos, pois, transmitir o que Paulo ensina aqui, a única forma de fazer isso é motivar os crentes a se gloriarem naquilo que creem, sendo esse “santo orgulho” um grande incentivo para a obra de proclamação.
Pr. Marcos Granconato
Força e Fé
Soli Deo gloria