Escatologia: Uma Senhora Discreta
Quando se fala sobre a doutrina das últimas coisas, surgem dois extremos entre os evangélicos: os que se apegam a esse aspecto do ensino cristão como se fosse o cerne do cristianismo e aqueles que dizem que a escatologia não tem utilidade alguma, sendo apenas fonte de divisão e discussões inúteis.
Como é de se esperar, os dois extremos estão errados. Apegar-se às doutrinas das últimas coisas como se ela fosse o ponto central da fé nubla os aspectos do ensino cristão que devem ser mantidos no topo da pirâmide teológica — a bibliologia, a teontologia, a cristologia e a soteriologia, por exemplo. Além disso, quem enfatiza muito a escatologia acaba por não se contentar com seu caráter lacônico. Sim, a escatologia bíblica, por razões escondidas nos desígnios soberanos de Deus, é propositalmente vaga. Ela exibe vários espaços em branco e ensina algumas coisas envoltas em certa névoa, impedindo que vejamos tudo claramente (aliás, é em parte por isso que há diferentes “posições escatológicas” entre os evangélicos). Por causa disso, o crente “viciado” em escatologia corre o risco de tentar desanuviar alguns ensinos. Até aí, tudo bem. O problema é que, nessa tentativa, ele pode se apegar às suas respostas e envolvê-las artificialmente num grau de certeza que é impossível que seja obtido por qualquer trabalho exegético realmente sóbrio, honesto e isento.
Deixe-me dar um exemplo. Os amilenistas pós-tribulacionistas, no desejo ardente de provar que estão certos, dizem que o Apocalipse de João não pode ser lido de forma linear. Isso levaria à conclusão de que, após a vinda de Cristo e antes do estabelecimento do novo céu e da nova terra, haveria um reino messiânico terreno de mil anos, o que para eles é inaceitável. Por isso, esse grupo eleva à categoria de certeza a “teoria dos sete ciclos”, segundo a qual o Apocalipse, ao longo dos capítulos 4 a 20, conta a mesma história sete vezes — todas elas apenas realçando, sob perspectivas diferentes, a derrota do mal com a segunda vinda de Cristo. Tudo o mais (inclusive o Milênio) seriam apenas detalhes figurados próprios de cada ciclo, sem qualquer sentido literal.
Até onde posso enxergar, a teoria dos sete ciclos é exposta com algumas variações na Bíblia de Genebra e podem até existir alguns pequenos argumentos que a favoreçam. Porém, essa teoria lembra mais uma lente hermenêutica tendenciosa criada para apoiar certa leitura do texto do que o resultado franco da análise interna do Apocalipse que, de fato, apresenta pouquíssimos motivos para não ser lido linearmente.
Bom, no outro extremo da corda estão os que não ligam para a escatologia. Esses também estão errados. Afinal de contas, a escatologia é importante sim, uma vez que fornece o conteúdo da nossa esperança, a base do nosso consolo e o impulso da nossa coragem. Na verdade, nenhum crente pode sobreviver por muito tempo no deserto seco deste mundo sem um eventual gole de escatologia. Essa foi uma das razões pelas quais Paulo disse que “se a nossa esperança em Cristo se limita apenas a esta vida, somos os mais infelizes de todos os homens” (1Co 15.19).
Com efeito, mesmo reticente em alguns pontos, às vezes aparentemente contraditória, outras vezes clara como o dia, eventualmente tão simples quanto uma lição infantil e, em alguns momentos, tão complexa quanto um enigma matemático, a escatologia, seja em seus momentos de clareza ou de obscuridade, é uma senhora que sempre nos sorri faceira por trás do véu que cobre a sua face. É somente dela que ouvimos acerca da vinda gloriosa do nosso Salvador que transformará esse nosso corpo de humilhação para ser igual ao corpo de sua glória (Fp 3.21). É somente dela que aprendemos sobre a palingenesia — a regeneração de todas as coisas (Mt 19.28) —, época em que este mundo caído estará diretamente sob o cetro do Rei davídico. É, enfim, somente dela que aprendemos sobre o tempo em que o propósito do Pai de colocar tudo sob a Suprema Cabeça, Cristo, será finalmente alcançado (Ef 1.10).
Assim, ainda que não se deva tentar remover o véu da senhora Escatologia no desejo de desenhar os detalhes de sua face, também não se pode virar-lhe as costas em total desconsideração por ela. Foi o próprio Deus quem nos concedeu sua companhia. Aproximemo-nos dela, portanto, para aprender suas preciosas lições, mas sem tentar ouvir muitos segredos e sem nos frustramos com seu eventual silêncio.
Pr. Marcos Granconato
Força e Fé
Soli Deo gloria