Confissões de um Ateu Sincero
Meu nome é Frederico. Sei que é um nome meio engraçado (dizem que é nome de papagaio). Por isso, prefiro que as pessoas me chamem de Fred. Tenho 38 anos, sou casado, tenho uma filha de 11 anos, trabalho como professor de Biologia e sou ateu. É nesse último item que quero me concentrar. Sou ateu.
LIVRE!
Confesso que não me tornei ateu depois de muita reflexão filosófica ou grandes lutas existenciais. Não! Na verdade, minha “conversão” aconteceu na adolescência. Na época, decidi ser ateu porque parecia ser a opção das pessoas mais sofisticadas e intelectuais e eu queria muito ser visto assim pelos meus colegas.
No colégio e na faculdade (conforme descobri mais tarde) existem duas maneiras de você ser visto como um “crânio”, dono de uma cabeça privilegiada. A primeira delas é estudando bastante; a segunda é dizendo que é ateu. Eu optei pela segunda maneira. E funcionou! Afinal de contas, os alunos percebiam que os professores que pareciam mais “mente aberta” — aqueles tipos que matam a gente de rir falando palavrões durante a aula — eram, na maioria, ateus, enquanto a crença em Deus ficava geralmente com o povinho de baixa escolaridade, como meus pais e avós.
Bom, seja como for, dizer aos meus colegas que eu era ateu me fez sentir respeitado. Tinha a impressão de que todos agora me viam como um cara inteligente, racional e dotado de uma mente científica. Era como se eu participasse de uma “elite pensante”, mesmo sabendo que eu não tinha pensado muito pra adotar o ateísmo.
Meu ateísmo declarado não trouxe, contudo, somente esse benefício. Definir-me como ateu produziu em mim certas sensações de que gostei. Eu não sabia que essas sensações viriam, mas fui surpreendido por elas e isso me fez muito bem. Deixe-me ser mais específico: quando me declarei ateu, fui tomado de um sentimento amplo de liberdade. Como eu disse, meus pais e avós criam em Deus. Eles não eram muito religiosos, mas acreditavam mesmo na existência de um “Ser Supremo”. Por causa disso, eu cresci ouvindo frases como “vamos pedir pra Deus”, “que Deus o proteja!”, “a gente tem de ter temor de Deus”, “a mão de Deus pesa”, e por aí vai... Essa noção que eles me inculcaram me prendia um pouco, impedindo-me de ser mais ousado diante das coisas que eu desejava fazer. Eu tinha receios. Tinha um pouco de medo de fazer algo de que Deus não gostasse e, então, fosse castigado. Puras bobagens!
Quando, porém, eu disse “eu sou ateu”, isso foi tremendamente libertador. Pensando bem, o impacto dessa afirmação foi muito maior em mim que nos meus colegas que a ouviam. De fato, a partir do dia em que a pronunciei, senti que podia fazer qualquer coisa, provar qualquer coisa, viver como eu bem quisesse, ser o que eu bem entendesse. Quando experimentei esse mel, confesso que deixei de perguntar se o ateísmo era verdadeiro ou não. Como eu disse, eu nunca tinha refletido muito sobre isso, mas agora, especialmente, sentindo-me tão livre, essa questão foi mesmo para o fundo da gaveta. O que importava é que doravante eu podia relaxar e seguir em frente “numa boa”. Nenhum juiz supremo, nenhum mandamento, nenhum castigo, nenhum inferno... Ah!
Enquanto essa liberdade esteve restrita ao campo das sensações, tudo correu bem. Algumas preocupações, porém, surgiram quando comecei a viver efetivamente a minha alforria. Eu explico: sendo um jovem ateu livre e desimpedido, em pouco tempo caí na farra pra valer. Não vou entrar em detalhes, mas fiz de tudo ou quase tudo. Não sei explicar direito como eu não me tornei de vez um “caso perdido” (como dizia meu pai), ou um “vida torta” (como dizia minha mãe). Acho que foi porque, depois de algum tempo, a liberdade do meu ateísmo perdeu um pouco a graça. Na verdade, confesso que eu não era nenhum poço de felicidade enquanto usufruía plenamente dela. E, pra piorar, acho que por causa da minha criação ou dessa cultura religiosa brasileira em que nasci, em algum canto escondido da minha mente havia uma espécie de voz, às vezes bem apagada, outras vezes muito incômoda e altissonante, que não me deixava totalmente seguro do meu ateísmo. Eu sempre a abafava dizendo que isso era resultado do que meus pais haviam plantado em mim na infância. O problema era que eu sabia que meus pais haviam me inculcado outras tolices quando eu era pequeno (venerar Maria, evitar o número 13, ter medo de assombração, não comer manga com leite...), mas nenhuma dessas coisas ficava me alfinetando anos e anos a fio. Por que só a crença em Deus não sumia de vez da minha cabeça?
Confesso que essa voz chata e importuna esvaziou um pouco a alegria da minha liberdade ateísta e, diga-se de passagem, ainda hoje tento fazê-la calar. Porém, creio que o que me impediu mesmo de ser um “vida torta” foi ter amadurecido e notado, a certa altura, que tinha que aprumar a vida. Se não o fizesse, aonde eu iria parar? Descobri, assim, que a liberdade do ateísmo era meio perigosa, pois é uma liberdade que remove todas as cercas. Até a cerca da consciência da gente ela acaba removendo. E é nisso que está o perigo. Ainda bem (pra não dizer “graças a Deus”) que percebi o risco a tempo e, sem religião, sem igreja, sem Bíblia nem nada, eu construí minhas próprias cercas usando como base algumas noções que adquiri em casa e também o exemplo dos meus pais.
Uma coisa, porém, quero deixar bem clara aqui: essas cercas eu mesmo construí. São minhas! Não são cercas de ferro que um Deus raivoso colocou ao meu redor. Eu mesmo as fiz e é graças a elas que hoje sou o que chamam de “homem de bem”. Pra ser sincero, admito que não as construí com um material lá muito resistente. Na verdade, considerando o grau de comprometimento que tenho com meus próprios valores, acho que usei uma espécie de isopor. Que seja! O fato é que eu quebro facilmente as minhas cercas sempre que quero ou julgo necessário. Durmo muito bem com isso! Bem... Pra ser sincero, nem sempre durmo muito bem.
O QUE ACONTECEU COM OS BALOPÓTAMOS?
O robustecimento do meu ateísmo nunca foi tão intenso como no tempo em que cursei a faculdade de biologia. Ali eu me sentia em casa, especialmente durante as aulas que destacavam algum aspecto da teoria da evolução das espécies. Eu sei que aceitar o evolucionismo não implica necessariamente ser ateu. Na verdade, na universidade eu conheci muita gente que era fã de Darwin e ainda assim cria em Deus. Contudo, o fato é que o evolucionismo servia, até certo ponto, de apoio lógico e científico para a negação da divindade e isso dava mais garantias ao meu ateísmo, fazendo-me sentir mais convicto. No princípio, essa convicção se mostrou muito forte — mesmo com aquela “voz” dentro de mim ainda sussurrando algumas palavras de vez em quando — e eu sorria contente e seguro cada vez que ouvia os argumentos imbatíveis da ciência em prol do darwinismo.
Essa segurança, porém, pelo que vejo hoje, foi somente uma espécie de entusiasmo infantil — uma vibração tardia própria do adolescente ingênuo que fica boquiaberto diante de descobertas fantásticas e “fatos comprovados”, até perceber que as provas de aço que tanto o encantam não são tão fortes assim.
Com efeito, meu encanto pelo darwinismo começou a se esfarelar precisamente numa aula da matéria denominada Processos Evolutivos, que tive em meu quarto semestre. Não que essa matéria fosse ruim. Muito pelo contrário. Nosso professor era dinâmico, divertido e dominava muito bem o assunto. Na verdade, o fato de o professor ser tão bom só piorou as coisas pra mim. Bem, seja como for, o que aconteceu ficou restrito a uma aula apenas, mas foi suficiente para gerar um incômodo que persiste em minha mente até hoje.
Ocorreu o seguinte: durante a tal aula, o nosso sábio e brilhante mestre expôs um quadro em que havia diversas figuras de animais conectadas por grandes setas azuis. Essas setas indicavam a sequência do processo evolutivo. Uma delas partia de um peixe e chegava a um lagarto; outra partia desse lagarto e chegava a um rato; outra, ainda, partindo do mesmo lagarto, chegava também a uma ave e assim por diante. O quadro mostrava as setas em várias ramificações e na extremidade de uma dessas ramificações estava a figura de um ser humano.
O objetivo do professor não era explicar o quadro que já era bem familiar até pra quem nunca tinha pisado uma faculdade. Ele apenas o estava usando para se referir à cadeia evolutiva em geral, mesmo porque ficar explicando cada passo dos processos de mutação seria insuportável para qualquer aluno. Assim, sem se deter muito naquele gráfico, ele estava prestes a dar seguimento à matéria quando um colega, o Luiz Carlos, pediu pra fazer uma pergunta. Naquela época, a pergunta que ele fez me pareceu a mais tola de todas que eu já tinha ouvido na faculdade: “O que são essas setas azuis?”.
A classe riu com aquela habitual indiscrição que reina no meio universitário e o professor explicou, suspirando, que as setas, “obviamente”, eram indicadores do curso da evolução biológica. Então o Luiz fez outra pergunta, dessa vez não tão boba: “Não seria melhor que no lugar das setas fossem colocadas figuras de animais em fase de transição? Sei lá... Talvez um peixe com pernas de lagarto ou um lagarto com asas de garça. Note aquela seta que sai da baleia e chega ao hipopótamo. Não deveria haver no lugar da seta um ‘balopótamo’? Afinal de contas, animas assim em mutação devem ter deixado milhares ou até milhões de fósseis, não é? Por que não colocar a figura deles aí em vez das setas?”.
A pergunta tinha sido feita numa linguagem de boteco. Não era nada acadêmica, nem tampouco soava científica ou intelectual, mas devo confessar que ela me fez pensar pela primeira vez em algo que nunca nenhum professor havia ainda explicado: onde estavam os fósseis dos diversos animais que foram deixados no rastro da evolução? Considerando a amplitude desse fenômeno e os milhões de anos ao longo dos quais as mutações se processaram, certamente deveriam existir milhões de fósseis de “balopótamo”, além de “lagarças” e “sapoelhos”.
Segundo imaginei, aquela questão não representaria nenhum problema para o meu professor. Ele tinha grau de doutorado! Sem dúvida, seria fácil pra ele responder uma pergunta tão simples. Ah, que decepção eu tive naquele dia! O professor, não querendo se deter no assunto (não era o tema da aula, dizia ele), afirmou que a ciência ainda não havia descoberto os tais fósseis (nenhum sequer!), mas que era só uma questão de tempo. Por enquanto, disse, tínhamos de nos contentar com as setas azuis. Em outras palavras, nossa crença na evolução estava mais baseada na tarefa de um desenhista de flechinhas do que nas pesquisas de arqueólogos e de outros cientistas renomados!
Tudo isso causou certa comoção na classe. Alguns alunos ficaram irritados com o Luiz, perguntando aonde ele queria chegar com aquelas questões; outros, do tipo dos que gostam de ver o professor em apuros, pressionaram o mestre ainda mais, dizendo a seu modo que se não existiam fósseis de “balopótamos” ou outros do gênero, então a evolução era somente uma proposta criativa e não uma realidade cientificamente comprovada. Afinal —protestavam —, depois de tanto tempo não era para terem achado apenas uma, mas milhares de amostras de animais em transição.
O professor, visivelmente impaciente, disse que cientistas modernos estavam explicando essas “lacunas no registro fóssil” por meio da teoria de que a evolução se deu aos saltos, sem a necessidade de elos de transição entre ratos e aves, por exemplo. Isso, contudo, só piorou a situação dentro da classe, pois deu a entender a alguns alunos (inclusive eu) que os cientistas se livravam dos seus problemas com a evolução não por meio de pesquisas, mas inventando novas teorias sem nenhum fundamento objetivo. Aí ficava fácil pra eles!
É... o Luiz nunca foi um aluno brilhante, mas reconheço que com um simples peteleco ele fez estremecer a grande muralha que eu usava para proteger meu ateísmo. Eu continuei sendo evolucionista, é claro. Que outra opção eu tenho como ateu? Mas, agora, defendo Darwin com um entusiasmo bem menor. De fato, hoje, como professor de Biologia no colégio, uso quadros bem parecidos com aquele que meu velho mestre expôs naquele dia. São quadros mais bonitos, modernos e benfeitos, mas as setas continuam lá, fazendo ribombar na minha cabeça a pergunta chata daquele aluno medíocre.
Li uma reportagem no site da Time, há cerca de dois anos (em junho de 2012), que dizia que na Coréia do Sul, país detentor do melhor sistema educacional do mundo, a teoria da evolução foi banida dos livros escolares. Será que o Luiz andou fazendo perguntas por lá? Não sei! O que eu sei (descobri mais tarde) é que aquele maldito desmancha-prazeres era cristão (eu devia ter desconfiado!), o tipo de gente que acredita em algo sem nenhuma evidência, só porque está escrito num livro de capa preta. Agora, quando vejo as setas nos meus gráficos, sou forçado a reconhecer que sou um pouco semelhante a ele. Confesso que eu também acredito em certas coisas sem nenhuma evidência, só porque estão escritas em livros... A diferença é que são de capa colorida.
MATÉRIA E NADA MAIS
As pessoas que acreditam em Deus dizem que os ateus são ou pessoas infelizes ou gente má. Dizem que são infelizes porque não há felicidade sem Deus. Dizem que são más porque quem não crê em Deus não tem temor dele e aí acaba praticando perversidades. Discordo plenamente desses pareceres. Eu sou ateu e não sou uma pessoa má. Na verdade, sem querer me enaltecer, acho que sou melhor do que muitos cristãos. Se bem que devo reconhecer que há muita gente que se diz cristã e vive bem longe dos ensinos de Jesus. O Luiz (aquele meu colega de faculdade) chamava essas pessoas de “cristãos nominais”. Agora, sempre que entro numa igreja para assistir a um casamento ou a qualquer outra coisa, penso comigo: “Será que sou um ‘ateu nominal’?” (hehehe).
Voltando ao assunto, tampouco sou um homem infeliz. O que tem acontecido comigo ultimamente é que estou atravessando aquela crise comum às pessoas que beiram os quarenta. Sabem como é... A gente não sente muito entusiasmo. As coisas perdem a graça. As novidades não empolgam tanto como antes. No meio dessa crise também sou acometido eventualmente de um sentimento intenso de angústia. É como se, às vezes, se abrisse um deserto ou um abismo em mim. Não sei explicar. É uma coisa silenciosa, imóvel, uma espécie de paisagem morta que me envolve por dentro. Isso me sobrevém sem aviso, não importa o lugar ou a situação em que eu me encontre. Acontece em festas e velórios; quando estou sozinho ou quando há uma multidão barulhenta ao redor. É bem provável que eu esteja com algum desequilíbrio hormonal. Só pode ser. Já marquei uma consulta médica.
Penso às vezes na hipótese disso tudo ser decorrente também da mesmice em que minha vida caiu. Aos 38 anos, tenho de me desincumbir de sérias responsabilidades e isso gera rotinas entediantes. E não estou falando só do trabalho. Meu casamento também caminha num ritmo moroso em que nós dois não temos mais muita disposição para grandes e vibrantes aventuras. Acho que me casei muito cedo e a fase de paixão impetuosa passou mais depressa do que eu esperava. Creio, assim, que preciso de mais emoção na vida. Será que se eu arrumasse outra mulher...
Nenhuma dessas coisas, porém, pode ser usada para me definir como um homem infeliz. Isso seria um grande exagero. Até porque, acreditem: eu sou um cara bastante divertido. Aliás, nesse ponto vejo também o valor do ateísmo. Eu explico. O ateísmo realmente me proporciona momentos de muito riso e distração, fornecendo o contexto em que eu posso expressar o meu lado “descolado” e brincalhão. Por exemplo, até pouco tempo atrás eu participava de salas de chat entre ateus na Internet e era muito legal quando um fanático religioso se intrometia nas conversas da gente para nos criticar. Como eu ria nessas horas com todas as ironias e “blasfêmias” (Ohhh) que dizíamos para o coitado!
Também por seu ateu, eventualmente me entrego ao luxo de me entreter provocando pessoas religiosas que conheço (especialmente meus alunos adolescentes). Geralmente eu digo a elas: “Se um Deus bom existisse não haveria tanto sofrimento no mundo”. Notem bem: eu nunca liguei para o sofrimento do mundo. Na verdade, confesso que nunca movi uma palha sequer para reduzir o sofrimento de ninguém. Acho que cada um tem sua carga de problemas e defende o seu lado. É a lei da sobrevivência. É desse jeito que eu penso. Mesmo assim, gosto de provocar os fanáticos com esse meu “argumento fatal” sobre Deus e o sofrimento. Acho engraçado vê-los balbuciando tentativas de respostas e ficando nervosos quando assumo um ar zombeteiro para, logo em seguida, menear a cabeça sorrindo. É uma glória pra mim!
O ateísmo também me traz momentos agradáveis por gerar situações inusitadas no meu dia-a-dia. Lembro-me de uma em especial que foi demais! Eu já disse que tenho uma filha de onze anos. O nome dela e Ana Lúcia. Quando ela tinha sete aninhos, uma vizinha crente pediu para levá-la num programa infantil da sua igreja, dizendo que haveria histórias, brincadeiras e lanche. A Lu insistiu muito e nós permitimos que ela fosse. Não demorou muito pra ela chegar em casa carregando um monte de figuras da arca de Noé, de Davi e Golias e de Jesus andando sobre a água. Ela também chegou falando sem parar do que tinha visto na igreja. Ficava cantarolando as músicas que aprendera e repetia pedaços da Bíblia que tinha decorado com a ajuda de uma professora.
Isso me deixou muito preocupado. Então proibi minha filha de voltar e expliquei para ela numa linguagem própria para crianças que religião era coisa perigosa, pois tornava as pessoas preconceituosas, intolerantes e cegas para a realidade. A Lu ficou um pouco triste, mas entendeu e não pediu mais pra ir à igreja.
Depois de algum tempo minha filha me contou que havia uma menina na classe dela que era crente. “Pai” — disse indignada — “Ela disse que acredita em Adão e Eva! Tem que ser muito idiota. Que burra!”. Nós achamos muito engraçado o jeito da Lu falar. Então perguntamos: “E o que você disse pra ela?”. A resposta da Lu foi hilariante: “Eu não briguei. Eu só falei ‘sai capeta!’”. Eu e minha esposa quase morremos de tanto rir.
A Lu é mesmo demais! Eu sou o fã número um dela. Que menininha esperta e perspicaz! E como é linda! Pode parecer piegas, mas não posso deixar de dizer: Ela é a luz da minha vida. Eu a amo tanto que até dói... Está bem, está bem... Eu relutei bastante, mas vou abrir o jogo. Afinal, estou escrevendo algumas confissões. Tenho que ser sincero. Eu tenho um pensamento sobre a Lu que muitas vezes atravessa abruptamente o meu coração provocando uma aflição breve, mas indescritível. Lá vai: A Lu é só matéria. Na melhor das hipóteses ela é apenas um espécimen desenvolvido da família dos primatas.
Nos momentos de maior ternura que vivemos, quando cheio de afeto a observo ocupada com as lições de casa, quando seus olhinhos curiosos se fixam em mim para atender o conselho que digo, quando ela me fala dos seus sonhos, dos seus temores, dos seus probleminhas de criança, quando ela entra em meu escritório com seu pijaminha rosa e me abraça dizendo um “boa noite” mais meigo do que a luz da Lua que então ilumina a janela, esse pensamento horrível, impiedoso e repulsivo sai das sombras e sussurra para mim com voz lúgubre: “A Lu é só matéria; um aglomerado de músculos, nervos e tecidos; só matéria fria e nada mais”.
Um católico me disse certa vez que há um compartimento no inferno reservado somente para ateus. Penso, contudo, que o meu inferno e o de todos os ateus é esse: a visita eventual, involuntária, mas inevitável, aos corredores macabros de uma realidade seca, cinzenta, sem sentido nenhum que, afinal, desemboca no nada. Se existe outro inferno além desse... Não... Não pode ser... Seria totalmente absurdo. Outro inferno seria o zênite da irracionalidade. Seja como for, se é tolice ou não, tenho que conviver com mais uma incerteza. Se eu estiver certo, quem crê em Deus não perde nada. No final tudo acaba no vazio e pronto. Se, contudo, a verdade estiver com quem crê em Deus, então eu estarei realmente perdido. Eu e a Lu.
Pr. Marcos GranconatoSoli Deo gloria