Os Dons do Espírito Santo: Significado e Duração
Os dons do Espírito Santo, seu significado e continuidade, estão entre os temas mais debatidos dentro do contexto evangélico. É nesse campo que ocorrem os maiores excessos na forma de agir de muitos crentes e é também por causa dessa discussão que terríveis divisões acontecem nas igrejas.
De tudo isso decorre a necessidade de entender bem o que são os dons do Espírito Santo, bem como seu propósito, duração e forma de funcionamento. De fato, a história já demonstrou satisfatoriamente que a má compreensão desses assuntos traz prejuízos desastrosos para o povo de Deus.
No Novo Testamento, há três passagens em especial que apresentam listas de dons espirituais. A primeira é Romanos 12.6-8 que menciona os sete itens alistados a seguir.
Profecia: O profeta era alguém que recebia revelações diretas de Deus e as transmitia aos homens de forma inerrante e infalível. No NT, as revelações proféticas eram predominantemente doutrinárias, ou seja, os profetas revelavam verdades divinas ocultas de outras gerações. Essas verdades eram também chamadas de mistérios (Ef 3.4,5). Só mui raramente os profetas traziam revelações sobre o futuro ou sobre a vida particular de alguém e, ao que parece, só o faziam quando o que era revelado tinha forte impacto sobre a igreja como um todo (At 11.28; 21.10,11). Os profetas tinham como função primária lançar as bases doutrinárias, éticas e funcionais da igreja (Ef 2.20). Como essas bases foram todas lançadas nos tempos dos apóstolos, os profetas deixaram de existir já no fim do século 1. O dom de profecia, portanto, não existe mais.
Serviço: É possível que esse dom abranja a habilidade dada por Deus de realizar bem aqueles trabalhos que são considerados inferiores pelas pessoas em geral. Nem todos são capazes de fazer esses serviços com qualidade. Por isso, Deus dotou alguns homens e mulheres da igreja com uma capacidade especial para realizar tarefas dessa natureza em favor dos santos.
Ensino: Trata-se da capacidade de transmitir a verdade de Deus à igreja com clareza e autoridade, promovendo sua edificação e amadurecimento. Através dos mestres, a igreja é protegida das falsas doutrinas e adquire base teológica para viver com retidão e santidade.
Exortação: Esse dom abrange o trabalho de consolar, animar e encorajar. Os cristãos geralmente são abalados não somente pelos problemas comuns da vida, mas também por ataques e dificuldades que lhes sobrevêm por causa da fé. Por isso, para que seu povo não fique à mercê do conselho de incrédulos, o Senhor concede esse dom a alguns crentes, a fim de que os santos encontrem neles amparo, alívio e amizade.
Contribuição: A referência aqui é à tarefa de distribuir. Sendo a igreja de Cristo formada por muitas pessoas pobres, há entre os santos aqueles cujo coração Deus dotou com a disposição constante de assistir os necessitados. Paulo diz que essas pessoas devem fazer isso generosamente. Outrossim, os crentes que têm esse dom devem se vigiar para que, no seu exercício, não sejam levados pelo desejo de ser admirados pelos homens (Mt 6.1).
Liderança: A prática desse dom envolve a administração de recursos da igreja e a direção geral da comunidade cristã local. A igreja não foi deixada por Deus à mercê das preferências de cada membro, pois isso a lançaria na desordem total (Jz 17.5,6). Antes, o Senhor lhe concedeu pessoas capazes de liderá-la, apontando seus alvos e o modo como devem ser atingidos. De acordo com Paulo, os líderes devem realizar seu trabalho com toda diligência, zelando para que seu dom não seja negligenciado.
Misericórdia: A pessoa que tem esse dom se vê disposta a mostrar favor a seus irmãos que sofrem por causa de doenças, perdas, decepções e tragédias. Por se tratar de uma tarefa pesada e, às vezes, bastante desagradável, pode acontecer de algum crente ter esse dom e passar a exercê-lo com pesar. Por isso, Paulo diz que os irmãos que têm o dom de misericórdia devem exercê-lo com alegria.
Conforme se vê, entre os dons alistados aqui somente o de profecia não existe mais. Com efeito, não há nenhum indício ou razão na Escritura que nos leve a afirmar que os demais também deixaram de existir. Na verdade, o próprio viver diário da igreja mostra sua permanência viva até os dias de hoje.
A Primeira Carta de Paulo aos Coríntios traz a maior lista de dons espirituais do Novo Testamento. São nove no total e se encontram em 1Coríntios 12.8-10. Essa lista de dons é a que mais tem causado controvérsias no meio evangélico, especialmente no tocante à atualidade de cada item alistado. A seguir são elencados todos esses dons, com uma breve exposição relativa ao seu significado e duração.
Palavra de sabedoria: A pessoa que tem esse dom diz palavras de sabedoria divina em contraste com os indivíduos que promulgam filosofias vãs ou palavras de sabedoria humana (1Co 2.6-7,13; 3.19). Os temas centrais abordados por quem tem o dom da palavra de sabedoria são a graça de Deus (2Co 1.12) e, especialmente, a cruz de Cristo (1Co 1.17,23-24). Esse dom, portanto, é fundamental para quem exerce o trabalho de evangelismo (1Co 1.17; 2.1). Num sentido mais estrito, a palavra de sabedoria também abrange a revelação de mistérios doutrinários trazidos à luz no tempo do Novo Testamento pelos apóstolos (1Co 2.7-13). Nesse sentido estrito, a palavra de sabedoria não existe mais, permanecendo apenas a sua expressão geral, ou seja, a capacidade de interpretar a realidade à luz da graça e da cruz do Senhor, expondo isso verbalmente aos outros no evangelismo e no ensino da igreja.
Palavra de conhecimento: É difícil saber o que Paulo tinha em mente quando fez distinção entre a palavra de sabedoria e a palavra de conhecimento. Porém, parece correto que a palavra de conhecimento se relaciona ao modo como se deve agir na prática da vida cristã. Se for esse o caso, esse dom é útil para conduzir a igreja ao crescimento na compreensão da sã doutrina, a fim de fazê-la abandonar comportamentos imaturos ou errados (1Co 8.7; 15.33,34).
Fé: Não se trata da fé salvadora, pois essa é um dom dado a todos os crentes (Ef 2.8). O dom da fé aqui mencionado é, provavelmente, uma convicção de origem sobrenatural de que Deus vai agir de forma especial numa determinada situação, quer por veículos naturais, quer por meios milagrosos (1Co 13.2). Essa confiança firme faz o crente agir como se o que espera estivesse mesmo prestes a se realizar (Hb 11.7-12). Não se deve confundir esse dom com mero otimismo ou com alguma forma de se autoiludir. O dom da fé é dado por Deus e gera uma surpreendente onda de confiança real no coração da pessoa.
Curas e operação de milagres: Os dons de curas eram capacidades dadas por Deus a alguns crentes de erradicar doenças, com o fim de servi-lo. O uso do plural (“dons de curar”) dá margem para formas diferentes de cura, o que pode abranger, além do milagre, o uso de meios naturais como remédios e cuidado médico. Já o dom de operação de milagres, conforme geralmente é entendido, consistia em realizar maravilhas fora da ordem natural das coisas. Parece certo dizer que o dom de curas, em sua expressão sobrenatural, era uma categoria mais específica do dom de operação de milagres que abrangia prodígios num sentido mais geral. Feitos sobrenaturais foram muito comuns na fase inaugural da igreja primitiva (At 5.15,16; 6.8; 8.13). Porém, em poucos anos essa fase começou a apresentar indícios de esfriamento (Fp 2.26,27; 1Tm 5.23; 2Tm 4.20). A razão disso é que as curas sobrenaturais e os milagres tinham por objetivo autenticar a mensagem nova que estava sendo pregada (At 14.3; Hb 2.4), não havendo necessidade dessa autenticação se perpetuar. Por isso, não se veem hoje pessoas com dons de realizar curas ou feitos milagrosos. Isso, contudo, não significa que o Senhor, eventualmente, não faça obras grandiosas além da compreensão humana. Antes, significa que, quando Deus realiza feitos assim, ele o faz em resposta à oração dos crentes em geral e não por meio de indivíduos dotados por ele com capacitações sobrenaturais (Tg 5.14-18).
Profecias: Veja-se o que foi exposto no início. Deve-se apenas acrescentar aqui que uma das responsabilidades da igreja no tocante aos profetas era avaliar o que eles diziam, comparando suas revelações com as verdades que o Senhor já havia transmitido (1Co 14.29). De fato, os profetas deveriam profetizar de acordo com a “proporção da fé” (Rm 12.6), ou seja, suas profecias deveriam se harmonizar com a doutrina cristã já fixada.
Discernimento de espíritos: Esse dom não consiste em descobrir os nomes ou as supostas áreas de atuação de demônios como alguns tendem a crer. Antes, é a capacidade de discernir a origem de uma mensagem ou ensino, isto é, trata-se do dom de discernir o que realmente procede do Espírito Santo. Assim, o crente dotado desse dom detecta se o que está sendo dito (com todos os seus desdobramentos práticos) é de origem divina ou é uma doutrina demoníaca (ou meramente humana) propagada por falsos mestres (1Tm 4.1,2; 1Jo 4.1-6). Não existe qualquer indício na Escritura ou na história do cristianismo que aponte para o desaparecimento desse dom, sendo vital a sua permanência na igreja cristã de todas as épocas.
Variedade de línguas e interpretação: O dom de línguas era a capacidade dada pelo Espírito Santo a alguns crentes de falar sobre as grandezas de Deus em um idioma humano jamais aprendido por quem falava (At 2.7-11). Ao definir esse dom, Paulo citou Isaías 28.11,12, identificando-o, assim, como um sinal de juízo contra judeus incrédulos que rejeitavam a mensagem de Deus (1Co 14.21,22). De fato, Deuteronômio 28.46,49 diz que ouvir uma língua desconhecida seria um sinal do juízo de Deus contra Israel sempre que esse povo rejeitasse sua mensagem. Ora, Israel rejeitou o Filho (At 7.51-53). Por isso, Deus usou a igreja para fazer com que os judeus ouvissem línguas que não entendiam como sinal do juízo que estava por vir. Esse juízo foi predito por Jesus (Mt 23.37-39) e chegou no ano 70 por mãos do general romano Tito. Uma vez que o castigo contra Israel sinalizado pelas línguas ocorreu, esse dom deixou de ser necessário e desapareceu. Obviamente, o fim do dom de línguas trouxe também o fim do dom de interpretação.
A terceira e última lista de dons que aparece no Novo Testamento encontra-se em Efésios 4.11. Na verdade, os dons ali mencionados designam funções dadas a algumas pessoas da igreja com vistas ao preparo dos crentes para o serviço de Deus, a fim de que o corpo de Cristo seja edificado e seus membros não se tornem semelhantes a meninos facilmente induzidos, “levados ao redor por qualquer vento de doutrina” (Ef 4.12-14).
A lista é pequena e se encontra em Efésios 4.11:
Apóstolo: Num sentido geral, o apóstolo era simplesmente um missionário pioneiro. Nesse sentido, Barnabé, por exemplo, foi chamado de apóstolo (At 14.14). Num sentido técnico, porém, esse termo tinha abrangência bastante limitada, designando apenas aqueles que viram o Senhor ressurreto e foram investidos diretamente por ele na função apostólica (At 1.21,22; 1Co 9.1; Gl 1.1), recebendo também, da parte de Deus, revelações doutrinárias especiais que servem como fundamento doutrinário para a igreja de todas as épocas (Ef 2.20; 3.4,5). Nesse sentido restrito, os apóstolos só existiram no século 1 e foram apenas doze (Ap 21.14). As marcas distintivas desse pequeno grupo eram as seguintes:
1. Eles eram missionários pioneiros (Rm 15.20; 2Co 10.13-16).
2. Eles eram testemunhas oculares da ressurreição (1Co 9.1; 15.8).
3. Eles não se autoinvestiam na função apostólica (Rm 1.5; 2Co 11.13; Ap 2.2).
4. Eles realizavam prodígios milagrosos (2Co 12.12).
5. Eles não entravam nessa função através de outros homens, mas somente por ordem direta de Cristo (Gl 1.1,11,12). A exceção no caso de Matias (At 1.21-26) ocorreu provavelmente por causa do caráter provisório de seu papel como décimo segundo apóstolo.
6. Eles eram canais de revelação doutrinária inédita (1Co 15.3; Ef 3.4-6).
7. Eles eram colocados por Deus numa posição de desprezo, miséria e sofrimento (1Co 4.9-13).
Se alguém não apresentasse essas marcas, poderia ser chamado de apóstolo no sentido não técnico, isto é, poderia ser, no máximo, um missionário pioneiro. Para ser, contudo, um apóstolo no sentido estrito, cada uma dessas marcas devia ser real em sua vida.
É importante destacar que o apóstolo, no sentido estrito, já nos tempos do Novo Testamento foi perdendo sua posição de liderança absoluta na igreja, cedendo lugar aos bispos ou pastores. Isso pode ser visto claramente no modo como a forte liderança de Pedro é nublada pelo decisivo governo de Tiago, que não fazia parte dos Doze. De fato, Pedro mostra até temor diante de uma comitiva que Tiago enviou a Antioquia (Gl 2.11-13) e, no Concílio de Jerusalém, a palavra final foi de Tiago e não de Pedro ou mesmo de Paulo (At 15.13ss). Isso dá indícios de uma mudança de primazia já na igreja primitiva que, aos poucos, foi substituindo a liderança apostólica pela pastoral. Afinal, com a morte dos Doze, já no século 1, o cargo de apóstolo, no sentido estrito, desapareceu de maneira definitiva.
Profeta: Veja-se nos artigos anteriores as considerações relativas ao dom de profecia.
Evangelista: É alguém que proclama as Boas Novas. Nos tempos do Novo Testamento designava especialmente missionários itinerantes que iam de cidade em cidade anunciando a mensagem de Cristo (At 8.5,26,40; 3Jo 1.7), embora o termo também seja aplicado a indivíduos que tinham um ministério fixo num determinado lugar (2Tm 4.5). Não há no Novo Testamento nenhum indício do fim do dom de evangelista.
Pastor mestre: Essa expressão pode designar duas funções distintas (pastores e mestres) ou somente a função do ministro que se ocupa de pastorear e ensinar a igreja. O artigo definido que consta do texto grego aponta para a segunda opção, realçando a dupla responsabilidade que recai sobre os pastores, a saber, o cuidado e a instrução do povo de Deus (At 20.28; 1Pe 5.2,3). O dom de pastor e mestre não apresenta nenhum sinal de ter pertencido somente aos tempos apostólicos, sendo seu exercício real e importante na igreja de todos os tempos.
Seja qual for o dom que um crente tenha recebido do Senhor, isso se encaixará em uma de duas categorias: ou será um dom de palavra ou um dom de serviço (1Pe 4.10,11). Se o dom for de palavra, então o crente deverá exercê-lo em harmonia com o que o Senhor revelou, jamais transmitindo à igreja apenas noções ou impressões pessoais. Se o dom for de serviço, o crente deverá realizá-lo não a partir de sua disposição individual, sempre oscilante, mas na força que Deus supre. Em todo caso, o uso dos dons do Espírito Santo deve ser feito de tal modo que a igreja toda seja servida (1Pe 4.10) e, no final, Deus, por meio de Jesus Cristo, seja glorificado (1Pe 4.11).
Pr. Marcos GranconatoSoli Deo gloria