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Gálatas 3.15-29 - A Harmonia entre a Promessa e a Lei

 

No parágrafo anterior, Paulo ressaltou que, mediante a fé em Cristo, pessoas de todos os grupos étnicos (e não somente os judeus) podem desfrutar da bênção prometida a Abraão (14). Tendo agora, portanto, introduzido o tema relativo à promessa feita a Abraão, Paulo prossegue enfatizando sua natureza pactual, mostrando que tal promessa não pode depender de exigências (como as normas da Lei Mosaica) impostas posteriormente.

Assim, no v.15, o Apóstolo usa a ilustração da aliança para explicar em que consistiram as promessas feitas a Abraão. Ele diz, apontando para a figura de um instrumento jurídico comum também em nossos dias, que um contrato[1], depois de ratificado, ou seja, uma vez confirmado e concluído, não pode ser alterado, muito menos podem ser acrescentadas a ele exigências inexistentes ao tempo de sua celebração.

Ora, o que é verdade no tocante a acordos feitos formalmente entre os homens, aplica-se às promessas feitas a Abraão e ao seu descendente (16), ou seja, Deus não poderia se comprometer a abençoar Abraão e o seu descendente de forma incondicional (cf. Rm 4.13) e, depois de algum tempo, “mudar as regras do jogo”. É fácil concluir onde Paulo quer chegar: a Lei não se constitui numa exigência necessária para que alguém se beneficie da promessa feita a Abraão. Se assim fosse, Deus teria agido de modo injusto, incluindo exigências novas num contrato já concluído.[2]

O v.16 apresenta uma breve nota hermenêutica esclarecedora de um ponto que é essencial para o ensino de Paulo. O apóstolo se detém sobre um detalhe presente no texto de Gênesis em que a referência à descendência de Abraão é feita através de uma palavra no singular, a palavra “semente” (Gn 12.7; 13.15; 24.7). A princípio, a presença desse termo no texto hebraico significa apenas que a promessa de Deus não se limitaria ao tempo de vida de Abraão, mas se estenderia ao longo das eras, alcançando inúmeras gerações procedentes do grande patriarca.

Paulo, contudo, vê algo mais aqui. Ele observa que o uso do singular em Gênesis não é acidental e que o termo “semente” também não deve ser entendido de modo coletivo. Para o apóstolo, o uso do singular conduz ao entendimento de que a “semente” se refere a um descendente só, ou seja, Cristo. A implicação disso é que as promessas não seriam restritas aos que descendem fisicamente de Abraão, mas a todos, tanto judeus como gentios que, pela fé, se encontram “em Cristo”, ou seja, se revestiram dele e a ele pertencem (vv.27-29). De fato, estando em Cristo, homens do mundo inteiro tornam-se beneficiários das promessas feitas a esse descendente de Abraão e, portanto, juntamente com ele, hão de herdar o mundo, conforme estabelece o pacto de Deus com Abraão (Rm 4.13).

Cabe ainda nesta altura ressaltar o modo como Paulo faz uso do texto bíblico. É notável a atenção que o Apóstolo dá a detalhes, fixando sua atenção em aspectos gramaticais e mostrando sua relevância para a construção da Sã Doutrina. Essa busca de sentido baseada não na imaginação ou na criatividade do intérprete, mas na gramática e na análise objetiva deve servir como padrão para todos os intérpretes da Bíblia na modernidade.[3]

A intenção de Paulo ao usar a ilustração do testamento ou do contrato (15) é exposta claramente no v. 17. Vê-se ali que, sendo a promessa feita mediante uma aliança já ratificada, não haveria como a Lei, dada séculos depois, invalidá-la. De fato, Deus não poderia se comprometer a dar gratuitamente uma herança e, depois de selado o compromisso, impor requisitos para que o homem desfrutasse dessa mesma herança. Isso faria com que a dádiva da herança passasse a depender do preenchimento dos novos requisitos e não mais da promessa gratuita de Deus (18). A verdade, porém, é que a herança foi concedida a Abraão e ao seu descendente (Cristo e, conseqüentemente, os que são dele, cf. vv. 26-29) mediante uma promessa, independentemente de qualquer exigência prévia ou posterior como a Lei Mosaica.

Do que Paulo disse até aqui surge naturalmente uma questão: se a Lei não é um requisito para o desfrute da promessa, então qual é a sua razão de ser? Para que ela foi dada? Com que objetivo foi imposta? No v. 19 o apóstolo explica que as normas estabelecidas no Sinai foram promulgadas “por causa das transgressões”.  O significado disso pode-se deduzir a partir de Romanos 3.20; 4.15; 5.20; e 7.5,7. Nesses textos aprendemos que a Lei de Moisés torna o homem consciente do seu pecado[4], uma vez que ressalta a sua desobediência. Ademais, por causa dela, todos são colocados sob a condição de transgressores (vv. 22-23). Assim, a Lei foi dada para realçar o fato de que somos maus, demonstrar essa verdade a nós mesmos e encerrar o homem sob a desobediência. É isso o que Paulo quer dizer quando afirma que a Lei foi dada “por causa das transgressões”. Ela veio para realçar o pecado e demonstrar que somos pecadores.[5]

O propósito da Lei conforme descrito acima vigorou “até que viesse o Descendente a quem se referia a promessa” (19), o qual, segundo o v. 16, é Cristo. Isso significa que ao longo de séculos a Lei Mosaica demonstrou satisfatoriamente, especialmente na História de Israel, a pecaminosidade humana (Rm 9.31). Tendo cumprido seu objetivo, a Lei deixou de vigorar. Isso aconteceu tão logo a solução para a transgressão do homem demonstrada na Lei, ou seja, Cristo, se manifestou neste mundo. Ainda que o Senhor tenha nascido sob a Lei (4.4), sua obra pôs fim ao império da Lei (4.5; Ef 2.14-15). Esta, tendo atingido seu propósito de realçar a desobediência, deu lugar à solução para essa mesma desobediência, a saber, a Cruz (Jo 1.17; Rm 8.3-4; 2Co 3.7-10; Cl 2.16-17; Hb 7.12; 8.13; 9.10). Na verdade, conforme será visto adiante, a Lei, expondo a deplorável condição do ser humano, serviu para conduzi-lo a Cristo, em quem encontra a solução para sua tão terrível situação (v. 24. Vd tb. Rm 10.4).

Prosseguindo em sua apologia da gratuidade da promessa, Paulo acrescenta que a Lei foi “promulgada por meio de anjos”. A presença dos anjos na entrega da Lei é vista também em Deuteronômio 33.2; Atos 7.38,53 e Hebreus 2.2. Paulo menciona esse detalhe para afastar qualquer acusação de desprezo pela santidade da Lei, pois ao ensinar que a mesma não tinha utilidade para justificar o pecador, mui facilmente seus inimigos poderiam apegar-se a isso, distorcendo suas palavras e acusando-o de tratar a Lei de Deus com desprezo inaceitável. Paulo, porém, longe de desprezar a Lei, tão-somente mostra o objetivo distinto dela que, como vimos, não é justificar o homem, mas realçar seu pecado e, por fim, conduzi-lo à busca de socorro em Cristo.[6]  

O v. 19 termina dizendo que a Antiga Aliança veio por meio de um mediador, ou seja, Moisés. A seguir, no verso 20, há um contraste entre aquela aliança e a feita anteriormente com Abraão. O pacto da Lei teve um mediador que representava o povo colocando-se sob as disposições legais impostas por Deus. No Pacto Abraâmico nenhum mediador havia, pois nele somente Deus se obrigou, nada impondo ao homem. Na Aliança Mosaica havia duas partes entrando numa relação em que ambas tinham deveres, sendo uma delas (a parte humana) representada por Moisés, o mediador. Na Aliança Abraâmica também havia duas partes, Deus e o homem, mas só Deus se comprometeu, sem impor nada a Abraão que servisse como condição para que ele cumprisse sua promessa de abençoá-lo juntamente com seu Descendente. O v. 20, portanto, pode ser entendido da seguinte maneira: no caso da Lei houve um mediador que representava a obrigação de muitos; já no caso da promessa somente Deus figurou como a parte comprometida. Paulo aponta esse contraste para fortalecer sua tese acerca da gratuidade da promessa e desmantelar o ensino dos falsos mestres que teimavam em dizer que a herança de Deus poderia ser obtida pelo cumprimento de preceitos legais.

Surge, então, uma importante questão: há contradição em Deus? Como ele pode fazer uma promessa e depois estabelecer preceitos que em nada cooperam com o cumprimento dela? Como ele pode prometer uma herança e, em seguida, estabelecer regras que afastam ainda mais o homem do gozo dessa herança? Como ele pode prometer que o homem será bendito e justo e então criar um sistema de normas que o tornam maldito e culpado? Acaso a Lei não se opõe às promessas de Deus? (21).

A resposta de Paulo a essa pergunta é um enfático “não”. O apóstolo ensina que se Moisés tivesse trazido aos judeus uma lei que pudesse levar à vida eterna, então a justificação seria oriunda da Lei e os judeus, ao observá-la, se constituiriam num povo livre da culpa do pecado e pronto para receber a herança prometida. Dessa forma, a promessa da herança e a promulgação da Lei estariam em clara harmonia.  Deus, porém, decidiu harmonizá-las de forma diferente. Seu plano consistiu em fazer da Lei um meio de colocar todos sob o pecado[7] a fim de conceder pela fé a herança prometida (22). Dessa forma, a Lei não vai contra a promessa de Deus. Antes, pondo o homem debaixo do pecado, deixa unicamente a fé em Jesus Cristo como solução para a sua culpa e, assim, o estimula a crer. Crendo, então, o homem torna-se participante da promessa. Portanto, a Lei é útil para mostrar que a fé em Cristo é o único caminho para as bênçãos da promessa. É assim que ela não se opõe às promessas de Deus.

É importante que o certo grau de complexidade de raciocínio presente no texto não venha nublar a principal e claríssima lição que o Apóstolo quer incutir nos seus leitores, a saber, a de que a promessa feita a Abraão é dada somente aos que crêem em Jesus Cristo. Paulo estende os efeitos do Pacto Abraâmico até os nossos dias, mostrando que a salvação é simplesmente a inserção do homem nos benefícios desse pacto. E para que essa inserção ocorra é preciso tão-somente que o homem creia em Cristo, o Descendente de Abraão. O apóstolo quer deixar claro que abraçar a Lei liga o homem a Moisés e faz dele mais um transgressor. Já abraçar a fé em Cristo liga o homem a Abraão e faz dele mais um herdeiro.

Antes que o evangelho fosse revelado, mostrando que é pela fé em Cristo que alguém pode tornar-se herdeiro da promessa abraâmica, o homem estava debaixo da Lei Mosaica (23). A linguagem de Paulo traz a idéia de estar sob a tutela de um guarda que tem a função de proteger.  De fato, a Lei dada no Sinai se constitui na perfeição da justiça e o esforço do homem em conformar a sua vida aos seus preceitos, ainda que seja incapaz de produzir a justificação, torna a conduta humana virtuosa e protege a sociedade da degradação total. Por outro lado, estar sob semelhante tutela implica também redução da liberdade, um preço muito alto quando se considera que a obediência da Lei não nos faz merecedores da herança prometida.

Dentro do claustro da Lei, portanto, o homem teve sua conduta controlada e, como já visto (v. 19), aprendeu da sua pecaminosidade e miséria. Dessa forma a Lei foi útil, especialmente porque, em vez de se opor às promessas de Deus, mostrou que o único caminho para recebê-las é a fé (vv. 21-22). O exercício dessas funções atribuídas ao código mosaico, contudo, deveria perdurar somente até o advento do evangelho de Cristo, já prometido nos escritos proféticos (Rm 1.1-2). É a esse evangelho que Paulo se refere com a expressão “a fé que haveria de vir” (23).

A conclusão lógica a que se chega disso tudo é que a Lei realizou a tarefa de um tutor que nos levou até Cristo (24).  A palavra traduzida no português como “tutor” (NVI) ou “aio” (ARA) é, na língua grega, o termo usado para designar a pessoa que cuidava de uma criança (παιδαγωγός. Lit. “pedagogo”), realizando, entre outras coisas, a tarefa de escoltá-la na sua ida à escola. Assim, a Lei tomou o homem pela mão e, enquanto exercia sobre ele alguma influência moral, também mostrava que a perfeita obediência era impossível e, dessa forma, o conduzia à fé em Cristo, o único meio através do qual o homem pode ser justo diante de Deus. Evidentemente, tendo realizado plenamente sua função, o tutor torna-se agora uma figura desnecessária (25). Aproveitando a figura usada por Paulo, pode-se dizer que a criança está agora com o Mestre. Não é mais preciso a custódia do tutor.

Paulo realça que a fé à qual fomos conduzidos nos tornou filhos de Deus (26). A idéia de filiação, obviamente, é essencial quando se fala em direito de herança. No constante propósito de desmontar a idéia de que é possível entrar na posse da herança prometida a Abraão por meio da guarda da Lei, o Apóstolo demonstra que é a fé em Cristo que nos torna filhos de Deus, de modo que só por meio dela pode-se chegar à herança (Rm 8.17).

No v. 27 é-nos dito com mais detalhes no que consiste o processo pelo qual alguém é inserido na esfera de filiação mencionada no versículo anterior. Segundo o texto, o homem batizado em Cristo, reveste-se do Filho de Deus. Ser batizado em Cristo significa simplesmente unir-se a ele pela fé. Nos tempos neo-testamentários havia forte conexão entre crer e ser batizado já que essas duas coisas aconteciam quase que ao mesmo tempo na prática da igreja primitiva (At 2.41; 8.37-38; 16.33). Por isso, algumas vezes Paulo refere-se à experiência de conversão usando a figura do batismo (Rm 6.3-4; Cl 2.12. Pedro faz o mesmo em 1Pe 3.21). È também fora de dúvida que muitas vezes Paulo usa a palavra “batismo” não para se referir à ordenança observada com água, mas à realidade espiritual da inserção do crente no corpo de Cristo e na sua esfera de atuação e influência especiais (1Co 12.13). É o chamado batismo do Espírito Santo. Aliás, é bem provável que esse seja o sentido pretendido no texto em análise. Que Paulo não via o batismo com água como necessário à salvação deduz-se facilmente de 1Coríntios 1.14-17.

Segundo os vv. 26-27, portanto, o homem passa a desfrutar do status de filho de Deus quando se une ao Salvador pela fé (Jo 1.12). Dessa forma ele se reveste de Cristo, ou seja, sua união com o Senhor é tamanha que Deus, ao olhá-lo, vê antes Cristo nele do que ele próprio. É como se Cristo fosse um manto que cobrisse e envolvesse o crente de tal forma que ambos se tornam como um só. Nessa união, o Filho de Deus como que “contagia” aquele que crê com sua filiação. Isso prova ser correto dizer que o crente é filho de Deus “em Cristo Jesus”.

Sob a vestimenta de Cristo todas as distinções entre as pessoas tornam-se irrelevantes (28). A união com o Senhor faz de todos um só corpo (1Co 10.17; 12.12-13; Cl 3.15), anulando as desigualdades e desencorajando qualquer forma de inimizade e discriminação (Ef 2.14-16; Cl 3.11). Contudo, o efeito principal da fé é que, recebendo a adoção decorrente da união com Jesus, o homem se torna um descendente de Abraão tal como o seu Senhor e, conseqüentemente, passa a ter direito à herança prometida ao grande patriarca (29). 

Pr. Marcos Granconato 



[1] A palavra usada por Paulo pode significar “testamento”, isto é, a declaração de última vontade. Também tem o sentido de contrato ou aliança.  No versículo em análise trata-se de uma declaração da vontade feita por Deus na qual somente ele se obrigou, sem nada impor ao homem. 

[2] Deve-se lembrar que, à luz do v.17, a Lei só veio 430 anos depois de estabelecida a aliança com Abraão.

[3] Em Mateus 22.31-32, 41-45 vê-se que nosso Senhor também dava especial atenção a aspectos gramaticais do texto bíblico.

[4] A consciência de pecado existe mesmo naqueles que jamais conheceram a Lei de Moisés (Rm 2.14-15). Porém, ela é muito limitada. Por exemplo: não se sabe através da mera “lei interior” que a cobiça é pecado (Rm 7.7).

[5] O ensino de que a Lei Mosaica foi dada com o propósito de refrear as transgressões parece encontrar obstáculos no que Paulo ensina em Romanos 7.7-14. Ali aprendemos que a Lei, apesar de santa, justa e boa, estimula o pecado na humanidade carnal. É verdade que, idealmente, o mandamento seria dado para produzir vida (Rm 7.10). Seu objetivo real e prático, contudo, foi outro, a saber: dar maior força ao pecado (Rm 7.12-13; 1Co 15.56).   

[6] Outros textos em que Paulo mostra apreço pela Lei são Romanos 3.31; 7.7,12,14; 8.4; 1Tm 1.8.

[7] A frase “a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado” significa que o Velho Testamento declarou a transgressão de todos (Rm 3.9-19), demonstrando que a Lei que foi dada a Moisés era incapaz de justificar e conceder vida.

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