Gálatas 2.11-21 - A Simulação de Pedro
A presente etapa da narrativa de Paulo refere-se a uma severa repreensão que ele dirigiu a Pedro quando este visitou Antioquia. Com a menção desse episódio, Paulo pretende alcançar o propósito de mostrar que não era em nada inferior aos apóstolos de Jerusalém (já que repreendeu o maior dentre eles), bem como defender a salvação unicamente pela fé, ao reproduzir as palavras que dirigiu a Pedro.
A seção se inicia com a menção de uma visita de Pedro a Antioquia (11). O Livro de Atos não faz nenhuma referência a esse fato. Presume-se, a partir dos eventos narrados em Atos12, que, depois de ter sido milagrosamente libertado da prisão em que Herodes o havia lançado, Pedro foi a Antioquia. Em Atos é dito apenas que ele se ausentou indo “para outro lugar” (At 12.17). Depois disso, Pedro só aparece novamente na narrativa em Atos 15, no Concílio de Jerusalém (At 15.7). É possível, portanto, situar a visita de Pedro a Antioquia entre sua extraordinária libertação e o Concílio de Jerusalém.
Paulo afirma que por aquele tempo teve de enfrentá-lo “face a face, por sua atitude condenável”. Essa atitude é descrita no v.12. Nele aprendemos que Pedro comia com os gentios até a chegada de uma delegação de crentes judeus, vindos de Jerusalém, enviados por Tiago. Porém, com a chegada dessa delegação a Antioquia, ele ficou receoso de ser reprovado pelos legalistas e, para passar-lhes uma boa impressão, afastou-se dos irmãos gentios.
De fato, antes do concílio mencionado em Atos 15, a igreja de Jerusalém, predominantemente judaica, tinha em aberto a questão de como receber os gentios em sua comunhão. Não faltavam os que viam o Cristianismo como um simples ramo do Judaísmo e diziam que a fé não era suficiente para que um gentio fosse aceito como irmão, sendo necessária também a circuncisão e a guarda da lei mosaica (At 15.1, 5). Para esse grupo, era inadmissível que um judeu comesse com um gentio (At 11.1-3).
Não estando esse problema ainda formalmente solucionado, Pedro, diante dos irmãos judeus, ficou com medo de ser reprovado em sua associação com crentes incircuncisos e, assim, rompeu a comunhão com eles. Com isso ele demonstrou hipocrisia, covardia e desobediência, uma vez que já havia aprendido do próprio Senhor a não desprezar os crentes não judeus (At 10.27-28, 34-35; 11.1-17). Ele também demonstrou desprezo pela sã doutrina, preocupando-se mais com a aprovação dos homens do que com a de Deus. Segundo o v. 13, essa conduta vacilante e reprovável influenciou outros crentes judeus que a imitaram. Paulo admirou-se do fato de que o próprio Barnabé, exemplo máximo de piedade (At 4.36-37; 11.22-24), também tivesse se deixado levar.
Evidentemente, tamanha falta não poderia passar em branco e Paulo tomou em suas mãos a tarefa de admoestar Pedro, o principal responsável por toda aquela farsa. Paulo entendeu que Pedro e os demais judeus não estavam andando “de acordo com a verdade do evangelho” (14). De fato, a verdade do evangelho, além de ensinar que a salvação é pela fé somente (16; Rm 3.28), estabelece também que em Cristo, não há distinção entre judeus e gentios (At 15.8-9; Gl 3.26-28); que em sua morte, o Filho de Deus rompeu a barreira de separação que estava entre os dois e criou de ambos um novo homem, fazendo a paz (Ef 2.11-19); e que os gentios são co-participantes da graça de Deus dada em Cristo (Ef 3.5-6). Quando Pedro e seus companheiros se afastaram dos irmãos gentios era como se negassem todas essas verdades, passando a andar em desarmonia com elas.
A repreensão de Paulo destacou inicialmente a incoerência do procedimento de Pedro: “Você é judeu, mas vive como gentio e não como judeu. Portanto, como pode obrigar gentios a viverem como judeus?” (14). Com essas palavras, Paulo toca na ferida do farisaísmo. Nelas vemos implícitos os dois erros principais cometidos por todos os que querem viver sob a Lei. Primeiro, sua conduta exterior é uma farsa. Os legalistas têm uma vida dupla: diante dos homens apresentam-se como zelosos da Lei, mas longe dos olhos alheios vivem conforme outros padrões (Mt 23.23-28). Em segundo lugar, os fariseus legalistas têm o hábito de impor fardos sobre os outros, mas eles próprios não se dispõem a carregar esses mesmos fardos (Mt 23.4). É assustador que Pedro, que viu quão severamente o Senhor, em seu ministério terreno, reprovou a conduta farisaica (Mt 23.1-3), tenha incorrido em tão grave erro.
A reprodução da repreensão dirigida por Paulo a Pedro prossegue nos vv. 15-16. Nesses versículos Paulo conta ter trazido à lembrança de Pedro que mesmo eles, sendo judeus de nascimento, portadores de privilégios e conhecimentos espirituais que os colocavam em vantagem em relação a qualquer pagão ignorante (Rm 9.1-5), já haviam descoberto “que ninguém é justificado pela prática da Lei, mas mediante a fé em Jesus Cristo”. Esse princípio tão resistido pelos homens em todas as eras já havia sido descoberto por judeus agora convertidos, os quais outrora tinham tentado ser justificados pela prática da Lei e haviam falhado. Como então Pedro, alguém que, como um desses judeus, já tinha experimentado a impotência da Lei, era agora capaz de sutil e dissimuladamente impor sua observância aos gentios? Se, com todos os privilégios espirituais que tinham, os judeus haviam falhado e recorrido à fé, reconhecendo ser esta a única saída, como poderiam agora impor o fardo da Lei a povos que jamais tiveram privilégio algum? É, pois, como se Paulo dissesse: “Nós judeus, com todo o favor que recebemos, descobrimos ser impossível alguém salvar-se pela Lei. Como podemos esperar agora que os pobres gentios consigam essa façanha?”
Assim, Paulo conclui o v. 16 realçando que, mesmo eles, judeus com vantagens sobre todos os povos, tiveram que crer em Cristo para ser justificados, já que pela observância da Lei, a qual exige uma obediência perfeita, ninguém, nem mesmo o povo da Aliança com todo o seu conhecimento, direitos e prerrogativas, pode ser considerado justo aos olhos de Deus.
No v. 17, Paulo sugere que se o homem justificado pela fé em Cristo, porventura ainda buscar a justificação pela Lei, isso será o mesmo que, estando em Cristo, considerar-se ainda preso ao pecado. Seria como se dissesse: “Mesmo tendo encontrado a justificação pela fé em Cristo, isso não me é suficiente, pois considero-me ainda um pecador não justificado.” Ora, isso significaria que crer em Cristo nos manteria ainda sob o pecado. Nesse caso, o ministério do Senhor, ou seja, seu ensino e obra, não nos livraria, mas sim manteria nossas almas sob a culpa do pecado que não pôde remover. Cristo seria assim, um ministro que ainda nos deixaria no pecado. Para Paulo, essa hipótese é absurda. É, de fato, repugnante blasfêmia atribuir ainda que só uma parte da justificação à observância da Lei, já que isso implica afirmar que Cristo não é suficiente para salvar e que a simples fé nele ainda nos mantém enredados em culpa e condenação (veja o v.21).
O procedimento de Pedro em Antioquia trazia em si todas essas horríveis implicações. Sendo já justificado em Cristo, ele se apresentara diante dos judeus de Jerusalém como alguém que buscava a justificação pela prática da Lei e, agindo assim, blasfemava, já que com essa prática era como se dissesse que o Senhor não o livrara da culpa, mas como ministro do pecado, ainda o mantinha em triste escravidão. De fato, era como se dissesse que ainda estava em busca da salvação, considerando Cristo como alguém que o conservara preso aos seus pecados.
Dando seqüência à sua argumentação, Paulo, provavelmente ainda reproduzindo sua censura a Pedro, faz uso de uma figura tirada do contexto da construção civil (18). Ele afirma que “se reconstruo o que destruí, provo que sou transgressor”. O significado disso é simples: Paulo, Pedro e os demais crentes judeus, quando creram em Cristo, haviam como que “destruído” sua antiga confiança nas obras da Lei. Eles tinham chegado à conclusão de que a Lei não era capaz de fornecer abrigo contra a culpa do pecado e, por isso, tinham posto ao chão todas as paredes de confiança que se alicerçavam sua observância. Então, passaram a viver em outra casa, a casa da fé em Cristo, única edificação que oferece real segurança. Agora, porém, Pedro e seus companheiros estavam agindo como se voltassem a viver sob o teto da Lei. Era como se estivessem edificando novamente as paredes de confiança nas obras que eles próprios haviam destruído quando creram no Senhor. Ora, isso era o mesmo que reconhecer que erraram quando deixaram de confiar na Lei. Era o mesmo que afirmar que cometeram grave transgressão quando depositaram somente em Cristo a esperança de justificação.
No v. 19, ressaltando o absurdo da hipótese prevista no v. 18, Paulo mostra quão impossível era para ele qualquer reconstrução da confiança na Lei. Ele havia morrido para ela, ou seja, havia se libertado totalmente do seu domínio (Rm 7.4-6). Isso acontecera por meio da própria Lei que lhe mostrara, quando ainda o tinha sob seu domínio, quão incapaz era de livrar do pecado, posto que tão somente o realçava e, dada a nossa malícia, até o estimulava ainda mais (Rm 7.7-14). Nesse sentido, foi a própria Lei que encorajou Paulo a abandonar a confiança nela. Morto para os preceitos legais e, dessa forma, livre de seus fardos, Paulo passou a “viver para Deus”.
O apóstolo explica o significado da expressão “viver para Deus” no v.20. Num dos versículos mais tocantes de todo o NT, Paulo diz que morreu para a Lei ao unir-se a Cristo em sua crucificação. Essa é uma forma viva de dizer que morreu para a Lei ao apropriar-se dos benefícios da morte de Cristo. Assim, estar crucificado com Cristo é prender-se à cruz pela fé e, assim, morrer para a velha vida com seus padrões e crenças vãs (6.14). Lembremos que essas palavras provavelmente ainda compõem a admoestação dirigida a Pedro que, com seu procedimento, revelara um modelo diferente de vida.
Paulo prossegue explicando, ainda no v. 20, o sentido da expressão “viver para Deus” (v.19). Ele diz que, além de estar morto para o antigo estilo de vida baseado na confiança na Lei, tem agora seu “eu” totalmente dominado por Cristo. “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim”. Aqui reside o “segredo” de toda a piedade cristã. Esta não consiste de obediência exterior a regras, como ensinavam os mestres legalistas da Galácia, mas sim de um deixar-se dominar totalmente por Cristo, de tal forma que o indivíduo desapareça, inundado por uma onda de caráter transformado e santo (5.24).
Essa vida que implica morte para padrões antigos e inúteis; essa vida que implica a renúncia de si próprio; essa vida que consiste na construção da viver de Cristo em nós só é possível “pela fé no Filho de Deus”. Não há espaço nela para a confiança nas obras pessoais. Aliás, admitir, como Pedro dera a entender, que a justiça vem pela Lei, seria o mesmo que anular a graça de Deus e afirmar a inutilidade do sacrifício de Cristo (21).
Pr. Marcos Granconato