Salmo 133 - A Maravilhosa União dos Irmãos
Uma história de origem judaica conta que dois irmãos, um solteiro e um casado, compraram uma terra e se tornaram sócios na produção agrícola. Combinaram que dividiriam a colheita meio a meio. Porém, um dia, o irmão solteiro pensou: “Não é justo que meu irmão e eu dividamos igualmente os frutos, porque sua família é numerosa. Todas as noites levarei escondido um saco de grãos do meu celeiro para o dele”. O curioso foi que o irmão casado pensou algo parecido: “Não é justo que meu irmão solteiro receba a mesma quantia de grãos que eu, pois um dia meus filhos me sustentarão, ao passo que ele não terá ninguém que o ajude. Vou levar parte dos meus grãos em segredo para o celeiro dele”. Com o passar do tempo, ambos ficaram admirados ao notar que, apesar das suas doações diárias secretas, seus estoques não diminuíam. Mas, certa noite, o mistério acabou, pois os dois se encontraram carregando os grãos para o celeiro um do outro. Ao entenderem o que estava ocorrendo, deixaram os sacos de mantimento cair ao chão e se abraçaram emocionada e demoradamente. Perceberam quão felizes eram por viver em uma união fraternal tão profunda.
O Salmo 133 trata do mesmo tema dessa história. Como “cântico de romagem” (shîr hamma‘alôt), é fácil entender porque os peregrinos cantavam esse hino enquanto adoravam a Deus em união, como o povo esperançoso da promessa. Outra informação importante contida no título do salmo é a autoria “de Davi” (ledawid). Conhecendo o autor, sabemos que o salmo foi composto cerca de mil anos antes de Cristo. Contudo, não é tão fácil detectar que ocasião da vida do rei de Israel constitui o pano de fundo do seu texto. Há quem acredite se tratar de uma ocasião de festa, quando todo o povo estava reunido para adorar. Entretanto, a ênfase na união de irmãos e não na adoração torna essa proposta um pouco vazia.
Levando em conta que o salmo não contém traços de sofrimento, perseguição e divisão — dificuldades sentidas por Davi na sua vida pré-monárquica e na parte final do seu reinado —, parece que uma boa ocasião para a composição do salmo seja aquela em que se deu a união dos dois reinos, Judá e Israel, sob seu comando (1004 a.C.). Assim que Saul morreu (1011 a.C.), Davi foi coroado rei da tribo de Judá, a qual se tornou rival do restante do reino de Israel. Porém, sete anos depois, Davi foi elevado ao status de monarca do reino unido de Israel, instituindo Jerusalém como capital nacional e centro religioso, já que levou para lá a arca do Senhor. Após muitos anos de ruptura, o povo estava novamente unido e adorando a Deus lado a lado, mas, principalmente, coexistindo como um país e um povo único. Diante do sentimento exultante de ver o povo coeso, o salmista apresenta a união dos irmãos sob dois enfoques.
O primeiro enfoque é o que é a união fraternal (v.1): “Quão bom e quão prazeroso é os irmãos viverem unidos!” (hinneh mah-tôv ûmah-na‘îm shevet ’ahîm gam-yahad). A primeira coisa que se deve notar é que a união de que o salmista fala não é simplesmente o encontro numeroso de israelitas durante uma festa — razão pela qual a proposta de um contexto meramente festivo perde sua força. O que ele tem em mente é os irmãos “viverem” em união. Não é algo passageiro como um encontro social encerrado com um aperto de mão e votos de “boa viagem”. Ele fala de algo perene. Não uma circunstância, mas um estado. É por isso que o texto respinga alegria e tem figuras tão marcantes.
Essa unidade é descrita com dois adjetivos. O primeiro deles é “bom” (tôv). A mesma palavra pode assumir sentidos mais intensos que cabem bem na intenção do salmista de valorizar sobremaneira a união fraternal, como “formoso”, “magnífico” e “precioso”. Isso quer dizer que há benefícios coletivos e individuais no vínculo fraternal. Em outras palavras, há valor prático positivo nessa unidade comunitária. O segundo adjetivo que qualifica a união entre os irmãos é “prazeroso” (na‘îm). Sendo assim, a união não é apenas matéria de cálculo para se saber quanto vantajosa é. Aspectos íntimos como alegria, segurança, completude e comunhão fazem parte do pacote. Outros sentidos da palavra, bem encaixados no contexto, são “agradável”, “deleitoso” e “harmonioso”. A conclusão é que não se pode dispensar a bênção da união entre irmãos, sejam eles sanguíneos, compatriotas ou espirituais.
O segundo enfoque é a que se compara a união fraternal (vv.2,3). Após uma declaração clara sobre o valor da união entre os irmãos, o salmista introduz dois símiles, ou comparações, a fim de expressar melhor não apenas seu pensamento, mas também seu sentimento — as figuras de linguagem são hábeis para cumprir tal propósito. O primeiro símile é o “óleo perfumado” (v.2a): “É como o óleo aromático [derramado] sobre a cabeça” (kashemen hattôv ‘al-haro’sh). Aprendemos no Novo Testamento que o óleo era valioso (Mc 14.5) e útil na apresentação das pessoas, dando-lhes aparência limpa (Lc 7.37,38) e saudável (Mt 6.17,18), além de ser usado como medicamento (Tg 5.14). Nos dias do Antigo Testamento não era diferente, pois ele era usado como produto fino de beleza nas cortes (Et 2.12), cosmético propício ao amor (Pv 7.17; Ct 5.5), remédio para ferimentos (Is 1.6) e elemento para a consagração de sacerdotes e reis (Ex 30.30; 1Sm 10.1).
Apesar de a comparação ser maravilhosa até aqui, ela ainda assume um caráter mais significativo com a sequência da frase (v.2b): “O qual escorre sobre a barba, a barba de Arão, caindo sobre a gola das vestes dele” (yored ‘al-hazzaqan zeqan-’aharon sheyyored ‘al-pî middôtayw). Além dos benefícios naturais do óleo, Davi associa sua imagem à consagração de Arão, no qual o óleo representava não apenas a separação dele e de seus filhos para o serviço do Senhor, como também a perpetuidade do chamado (Êx 40.13-15). Desse modo, Davi quer transmitir aos israelitas o valor e a durabilidade da união fraternal promovida por Deus. Mesmo não sendo descrita nenhuma ação de Deus, a ocorrência tripla do verbo hebraico yarad (descer) no derramamento do óleo da cabeça para a barba, da barba para as vestes e, no versículo seguinte, a água descendo a montanha, produz a ideia de que é do alto que a união é promovida na forma de uma bênção.
O segundo símile é o “orvalho” (v.3a): “É como o orvalho do Hermom que desce sobre os montes de Sião” (ketal-hermôn sheyyored ‘al-harrê tsîyôn). Geograficamente, essa descrição é impossível de ocorrer já que o monte Hermom fica no Extremo Norte de Israel, local de onde brota o rio Jordão, e o monte Sião é localizado em Jerusalém, cerca de duzentos quilômetros ao sul. Além disso, a água que desce do Hermom corre pelo Jordão, mas não pode subir morro acima até Jerusalém. Contudo, o salmista não está pensando em termos geográficos, mas, sim, em termos teológicos.
Nesse sentido, as águas abundantes que descem do Hermom, atravessando Israel de norte a sul, produzem a ideia do suprimento e do refrigério necessário ao povo, à vegetação e aos animais, sendo providos por Deus. Já Sião, como receptora do orvalho que vem do Hermom, surge como a cidade abençoada pelo Senhor e sede das esperanças israelitas de redenção e de um futuro glorioso. Sobre essa última, o salmista completa (v.3b): “Pois ali o Senhor decretou a bênção e a vida eterna” (kî sham tsiwwâ yhwh ’et-havverakâ hayyîm ‘ad-ha‘ôlam). Desse modo, Jerusalém, além de alvo das bênçãos de Deus, é também o local de onde o Senhor promoveria redenção espiritual e política para Israel e para as nações. Essa comparação tem valor no contexto do salmo, pois, assim como a esperança de que Deus promoveria em Sião as maiores bênçãos enchia os israelitas de força, alegria e coragem, do mesmo modo tais benefícios eram manifestos diante da união fraternal. A comunhão entre os irmãos trazia a cada um alegria, refrigério, socorro e vigor.
É uma pena que uma lição tão encarecida no passado tenha sido relegada a segundo plano na atualidade. Nossos dias testemunham indiferença uns pelos outros dentro das igrejas, contatos superficiais, falta de envolvimento, substituição da comunidade eclesiástica por pequenos grupos domésticos e participações intermitentes nos trabalhos coletivos de culto a Deus. A consequência disso tudo — obviamente não anunciada, nem computada pelos proponentes desse sistema moderno e corrompido de ajuntamento — é o enfraquecimento tanto das igrejas, como dos crentes individualmente. Mas não é isso que a Bíblia nos ensina. Ela conclama a nos reunirmos regularmente (Hb 10.25), nos envolvermos uns com os outros (1Ts 5.11), nos alegrarmos na comunhão (Rm 15.32; 2Tm 1.4), praticarmos o amor verdadeiro (Ef 4.2; 1Ts 4.9) e a, juntos, batalharmos pela edificação do corpo de Cristo (1Co 12.7; 1Pe 4.10) e pela expansão da mensagem do evangelho entre os perdidos (1Pe 2.9). Que saibamos valorizar a vida de união que temos uns com os outros por meio do sangue do Cordeiro e da habitação do Espírito Santo, de modo que nossos celeiros nunca se esvaziem do amor fraternal que começa aqui e que continuará no céu por toda a eternidade!
Pr. Thomas Tronco