Quinta, 07 de Novembro de 2024
   
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A Aliança Mosaica

Se a aliança abraâmica dirige a história da salvação, devido ao teor das suas promessas, a aliança mosaica dirige o relacionamento entre Deus e Israel no Antigo Testamento e ocupa uma porção enorme dos escritos de Moisés e dos profetas, sendo impossível compreender o Antigo Testamento sem se levar em conta essa aliança.[1] Por causa dela e dos estatutos que ela estabeleceu, os livros de Moisés (Pentateuco) costumam ser conhecidos como “lei” (“tôrá”, em hebraico). Já dissemos que a palavra “tôrá”, nesse sentido, deveria ser compreendida como “instrução”. Entretanto, não há como ignorar o grande volume que a lei ocupa nesses escritos.

Ainda que tratar todo o Pentateuco sob o nome de “lei” seja desconsiderar as porções narrativas e até poéticas, a lei é uma tônica muito grande nos escritos mosaicos. Por isso, no Antigo Testamento o Pentateuco é chamado de “lei” (Js 8.34), “livro da lei” (Js 1.8), “livro da lei de Moisés” (Js 8.31), “lei do Senhor” (Ed 7.10), “lei de Deus” (Ne 10.28,29), “livro da lei de Deus” (Js 24.26), “livro da lei do Senhor” (2Cr 17.9), “livro da lei do Senhor seu Deus” (Ne 9.3) e “lei de Moisés servo de Deus” (Dn 9.11). O Novo Testamento reconhece tal característica nomeando-o como “livro da lei” (Gl 3.10), “lei” (Mt 12.5), “lei de Moisés” (Lc 2.22) e “lei do Senhor” (Lc 2.23,24).[2]

A maioria dos leitores do Antigo Testamento já viu tais expressões e sabe da existência da lei. O que nem todo mundo sabe é a “razão” da existência dessa lei e sua “serventia” dentro do eterno propósito do Deus soberano. As respostas a essas questões estão ligadas à compreensão da aliança mosaica.

Dois meses após saíres do Egito, os israelitas chegaram ao monte Sinai (Êx 19.1). Ali, Deus entrou em aliança com Israel, dizendo a Moisés: “Assim falarás à casa de Jacó e anunciarás aos filhos de Israel” (Êx 19.3b). O tom expõe o fato de que Deus é o alto rei que se dirige à nação.

Em segundo lugar, o Senhor se apresenta como o Deus poderoso que os tirou do Egito: “Tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia e vos cheguei a mim” (Gn 19.4). Com isso, ele também recorda a preservação milagrosa por meio do mar, já que somente ele poderia promover algo assim, comparando-a com a ação de uma águia que leva seus filhotes onde eles não poderiam ir sozinhos: “Como a águia desperta a sua ninhada e voeja sobre os seus filhotes, estende as asas e, tomando-os, os leva sobre elas, assim, só o Senhor o guiou, e não havia com ele deus estranho” (Dt 32.11,12). Ao dizer “vos cheguei a mim”, percebe-se a disposição do Senhor de nutrir um relacionamento amoroso e bondoso com a nação de Israel.

Sem mais prelúdios, o Senhor apresenta sua proposta: “Agora, pois, se diligentemente ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança” (Êx 19.5a). Os estatutos da aliança serão dados na sequência, o chamado “livro da aliança” (Êx 20–23), além dos dispositivos que regulavam o culto e os sacrifícios, mas a obediência a todo esse código legal já é assunto do tratado. A conjunção “se” (“im”, em hebraico), em seu uso condicional,[3] fornece uma característica única dentro das alianças: um caráter condicional. Por esse motivo, diferente de todas as outras alianças, os benefícios divinos estavam atrelados a certas condições a serem cumpridas por Israel. Mas note bem: não é a validade da aliança que é condicional, mas os benefícios que ela irá prover.

Portanto, feita a proposta, Deus oferece os benefícios: “Então, sereis a minha propriedade peculiar dentre todos os povos; porque toda a terra é minha; vós me sereis reino de sacerdotes e nação santa” (Êx 19.5b-6a). Como “propriedade peculiar”, os israelitas teriam um relacionamento especial com Deus e ocupariam um lugar ímpar dentro do seu plano. Como “reino de sacerdotes”, eles desempenhariam uma função mediatória entre Deus e as outras nações, seja por meio do testemunho que deveriam dar no relacionamento com Deus, seja por meio da obra de alcance mundial do israelita Jesus Cristo. E como “nação santa”, eles foram “separados” nas nações do mundo a fim de andar como uma nação “separada” para o serviço e para a glória de Deus.

Por ser uma aliança diferente daquelas que Deus se comprometeu unilateralmente, esse acordo condicional precisava da participação voluntária do povo de Israel e do seu comprometimento oficial. Sendo assim, o mediador[4] Moisés “chamou os anciãos do povo e expôs diante deles todas estas palavras que o Senhor lhe havia ordenado”. Essa não era uma decisão que Moisés podia tomar sozinho, pois sozinho não poderia cumprir a aliança. “Então, o povo respondeu à uma: Tudo o que o Senhor falou faremos. E Moisés relatou ao Senhor as palavras do povo” (Êx 19.8).

Com esse acordo prévio, a aliança foi formulada. Imediatamente, foi acordado entre Deus e Israel o que pode ser chamado de aliança sinaítica (Êx 20 – Nm 10), visto que foi celebrada no Sinai. Não se trata de outra aliança que não a mosaica. Entretanto, há uma segunda porção acordada quatro décadas depois com a segunda geração de israelitas – visto que a primeira geração de rebelou (Nm 14) e morreu no deserto –, conhecida como “aliança palestiniana” (Deuteronômio), já que foi celebrada na Palestina, mais precisamente em Moabe, na Transjordânia. A união dessas duas porções forma o que conhecemos como aliança mosaica.

O formato utilizado para fazer essa aliança – tanto a sinaítica, como a palestiniana – era conhecido das pessoas do Oriente Médio Antigo.[5] Assim como Deus usou um modo contratual corrente nos dias de Abraão para entrar em aliança com ele, fez o mesmo no caso dos israelitas lançando mão da estrutura de um “tratado de suserania”.

Esse tipo de tratado era utilizado entre nações, no caso de uma nação mais forte exigir obediência de outra nação mais fraca. O mais forte era o “suserano” e o mais fraco, o “vassalo”. Os termos contratuais visavam a fazer com que o forte não destruísse o fraco e com que o fraco se submetesse. Dadas as circunstâncias, o tratado beneficiava os dois lados, visto que o suserano tinha garantida a sua preeminência e o vassalo, além de não ser destruído, tinha benefícios previstos no acordo como proteção de inimigos externos.

Nos dias de Moisés, os hititas usavam desse expediente para entrar em acordo com outros reinos, principalmente com os arameus.

O tratado de suserania do império Hitita (1450-1200 a.C.) – contemporâneo do êxodo (1406 a.C.) –, continha os seguintes componentes: (1) Preâmbulo; (2) prólogo histórico; (3) as estipulações; (4) provisão para depósito no templo e leitura pública periódica; (5) a lista de deuses como testemunhas; (6) a fórmula de maldições e bênçãos; (7) o juramento formal pelo qual o vassalo prometia sua obediência; (8) alguma cerimônia solene que acompanhava o juramento, ou que fosse um juramento simbólico; (9) algum tipo de forma para iniciar processo contra um vassalo rebelde.[6]

A aliança mosaica apresenta esse formato. Não é difícil imaginar a imagem que o Senhor quis produzir na mente dos israelitas:[7] um relacionamento “suserano-vassalo” em que Deus, depois de livrar Israel da suserania egípcia, seria agora, ele mesmo, o suserano que governaria a nação de Israel.[8] Quanto aos israelitas, lhe seriam vassalos obedientes e submissos. É possível ver esse formato no conjunto completo das leis do Sinai (Êx 20 – Nm 10) e na renovação da aliança nas planícies de Moabe (Deuteronômio).

Desse modo, o Senhor apresentou os termos da aliança no Sinai:

·         Preâmbulo: O início do tratado de suserania continha a identificação do autor do tratado e seu título. Portanto, o Senhor introduz a aliança nos seguintes termos: “Eu sou o Senhor, teu Deus” (Êx 20.2a).

·         Prólogo histórico: Recordava-se o relacionamento prévio entre as partes, o suserano e o vassalo. O Senhor lhes lembra o passado recente: “Que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão” (Êx 20.2b).

·         Estipulações: Eram as obrigações impostas sobre o vassalo que, no acordo, eram aceitas por ele. Nesse sentido, o Senhor estipulou o modo como os israelitas iriam servi-lo, enaltecendo um procedimento reto e íntegro (Êx 20.3–23.33). Outras estipulações estão em Êxodo 35–39, no livro de Levítico e em trechos de Números.

·         Provisão para depósito no templo e leitura pública periódica: Como o tratado não envolvia somente o rei vassalo, toda a nação vassala deveria ouvir periodicamente os termos do tratado para se familiarizar com ele e segui-lo. Quando não estava sendo lido ao povo, o tratado ficava guardado em um templo, já que, na visão antiga, ele era protegido pelos deuses. Seguindo esse parâmetro, Deus indicou um local para as tábuas da lei dentro do tabernáculo: “E porás na arca o Testemunho, que eu te darei. [...] Porás o propiciatório em cima da arca; e dentro dela porás o Testemunho, que eu te darei” (Êx 25.16,21).[9] Quanto à leitura periódica,[10] ordenou na porção palestiniana da lei: “Ordenou-lhes Moisés, dizendo: Ao fim de cada sete anos, precisamente no ano da remissão, na Festa dos Tabernáculos, quando todo o Israel vier a comparecer perante o Senhor, teu Deus, no lugar que este escolher, lerás esta lei diante de todo o Israel” (Dt 31.10,11 – ver, também, v.12,13).[11]

·         Testemunhas: Uma parte importante desse tratado eram as testemunhas, normalmente deuses que trariam punições caso o trato fosse quebrado. Não havendo ninguém maior que o Senhor Deus para agir de testemunha, ele tomou elementos da criação para essa finalidade: “Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Dt 30.19 cf. 31.28).

·         Fórmula de maldições e bênçãos: Estipulações penais pela quebra do contrato também faziam parte do acordo. Por outro lado, a obediência traria vantagens ao vassalo. Levítico 26 atua nesse sentido – como Deuteronômio 28, na aliança palestiniana. As fórmulas que introduzem as bênção e maldições condicionadas ao procedimento do povo israelita são: “Se andardes nos meus estatutos, guardardes os meus mandamentos e os cumprirdes, então, eu vos darei... [...] Mas, se me não ouvirdes e não cumprirdes todos estes mandamentos; se rejeitardes os meus estatutos, e a vossa alma se aborrecer dos meus juízos, a ponto de não cumprir todos os meus mandamentos, e violardes a minha aliança, então, eu vos farei isto...” (Lv 26.3,4a; 14-16a).

·         Juramento formal: As estipulações dadas pelo suserano deviam ser aceitas oficialmente pelo vassalo e respeitadas sob força de juramento.[12] No caso da aliança mosaica, o povo se manifestou ao ouvir os termos da aliança: “Veio, pois, Moisés e referiu ao povo todas as palavras do Senhor e todos os estatutos; então, todo o povo respondeu a uma voz e disse: Tudo o que falou o Senhor faremos” (Êx 24.3 – ver v.7).

·         Cerimônia solene: Normalmente, uma cerimônia pública acompanhava o juramento da aliança e conferia a ele um caráter solene. Com Israel não foi diferente, visto que celebrou a aliança mosaica oferecendo sangue sacrificial ao Senhor e tendo uma refeição comunitária (Êx 24.1-18).[13]

·         Processo contra um vassalo rebelde: Quem não se adequasse ao acordo fechado entre as nações, era de imediato punido. No Sinal, a aliança mal havia sido celebrada e o povo enveredou no caminho da idolatria fazendo para si um bezerro de ouro (Êx 32.1-8). A punição declarada pelo Senhor era extremamente dura: “Tenho visto este povo, e eis que é povo de dura cerviz. Agora, pois, deixa-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de ti farei uma grande nação” (Êx 32.9b-10). Assim teria acontecido se Deus não tivesse atendido o pedido de Moisés por misericórdia (Êx 32.11-24). Desse modo, apenas os que se envolveram na idolatria foram mortos (Êx 32.25-29). [14]

Resumo:[15]

·         Celebrada primeiramente no Sinai (1446 a.C.) e repetida nas planícies de Moabe (c. 1407-1406 a.C.).

·         Não substituía a aliança abraâmica, nem alterava suas promessas. Apenas criava condições de desfrute de tais bênçãos.

·         Regulamentava a vida do povo da aliança (Israel) visando a estabelecer seu modo de vida e de culto na terra prometida. Outras nações não entram nesse pacto, a não ser que passassem a fazer parte de Israel.

·         Por meio da obediência à aliança, dava as condições para o desfrute da bênção da presença de Deus.

·         A obediência também traria paz, prosperidade e permanência na terra prometida para cada geração. A desobediência traria o oposto: guerra, carestia e exílio.

·         A condição de obediência não era cumprida por um ritualismo mecânico, mas por um coração dedicado e ligado ao Senhor, o qual produziria uma vida onde a justiça dirigiria todos os relacionamentos.[16]

·         Apesar do caráter permanente da aliança assim que celebrada no Sinai, deveria ser renovada regularmente e relembrada ao povo, de geração em geração, pela leitura pública da lei. Cada geração deveria renovar sua aliança com Deus e assumir para si o compromisso feito pelos seus pais.

·         O que ela produzia de resultados práticos para os israelitas dependia da sua obediência ou não à aliança. Desse modo, apesar da aliança ter um caráter permanente, seu resultado era condicional.

·         Pressupõe a futura habitação de Israel nos limites plenos da terra prometida por meio da ação de Jesus, o descendente de Abraão.

Pr. Thomas Tronco


[1] John Bright, História de Israel, p. 188.

[2] Edward J. Young, Introdução ao Antigo Testamento, p. 47-48.

[3] Carlos Osvaldo Cardoso Pinto, Fundamentos para Exegese do Antigo Testamento, §19.11, p. 140.

[4] Segundo as Escrituras, Moisés não foi o único mediador dessa aliança. Os anjos também agiram como intermediários da aliança mosaica (At 7.53; Gl 3.19; Hb 2.2 cf. Dt 33.2; Sl 68.17). Essa realidade não estava presente somente no pensamento dos teólogos, mas do povo em geral. Herodes, em um discurso a fim de encorajar os israelitas em uma batalha contra os árabes, diz “que recebemos de Deus as nossas santas leis, pelo ministério dos anjos, que são os seus arautos e mensageiros” (Flávio Josefo, História dos Hebreus, p. 704-705).

[5] Ronald Youngblood, The Heart of the Old Testament, p. 69.

[6] George E. Mendenhall, “Covenant Forms in Israelite Tradition”, p 50-76.

[7] Thomas L. Constable, “Uma Teologia de Josué, Juízes e Rute”, in Roy Zuck, Teologia do Antigo Testamento, p. 118, afirma que Deus lançou mão da imagem do rei (suserano) sobre os seus súditos (vassalos), na forma de uma “analogia” para descrever sua relação com Israel.

[8] Eugene Merrill, História de Israel no Antigo Testamento, p. 75.

[9] Roland de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 335, explica o que vem a ser esse “Testemunho”: “O ‘Testemunho’ ou ‘Lei solene’ são as duas ‘tábuas do Testemunho’, as tábuas da Lei recebidas de Deus (Êx 31.18) e depositadas na arca (Êx 25.16; 40.20). Por essa razão, a Tenda que contém a arca será chamada de Tenda do Testemunho (Nm 9.15; 17.22; 18.2)”.

[10] Levando em conta que em Deuteronômio a aliança já estava sendo ensinada e renovada na segunda geração de israelitas depois do êxodo, Raymond Brown, Entendendo o Antigo Testamento, p. 38, observa que ela já vislumbra o ensino subsequente da lei às gerações seguintes: “A passagem que se encontra no início (Dt 5.1-27) lembra à congregação reunida os Dez Mandamentos que lhe foram dados em Horebe, e é-lhe dito que não pertencem ao passado, mas devem cuidadosamente transmiti-los para os filhos, nas gerações sucessivas (Dt 5.28–6.25)”.

[11] Exemplos da aplicação desse estatuto nas gerações futuras podem ser vistos em Js 8.34,35; 2Rs 23.2; Ne 8.1-8,13,18; 9.3.

[12] R. K. Harrison, Introduction of the Old Testament, p. 117, diz que o código hitita enfatizava a inviolabilidade dos juramentos, alianças e tratados, assim como outros sistemas de jurisprudência do Oriente Médio Antigo.

[13] Ralph Smith, Teologia do Antigo Testamento, p. 148.

[14] Para ver um gráfico que delineia o tratado de suserania nos dois conjuntos da aliança – alianças sinaítica e palestiniana –, além da renovação da aliança em Josué 24, consultar John F. Walvoord et al, The Bible Knowledge Commentary : An Exposition of the Scriptures, vol. 1, p. 137.

[15] Esses resumos das alianças baseiam-se em um material de aula sobre “o relacionamento das alianças” produzido por Carlos Osvaldo Cardoso Pinto.

[16] Apesar disso, Walter Eichrodt, Teologia do Antigo Testamento, p. 33, mostra que, com o tempo, a prática externa dos ritos como “sacrifícios, celebrações, peregrinações e jejuns, trouxeram consigo o esquecimento do aspecto ético-social das exigências divinas”. Por isso, um clamor dos profetas era a obediência que ia além dos ritos: “Pois misericórdia quero, e não sacrifício, e o conhecimento de Deus, mais do que holocaustos” (Os 6.6). Roland de Vaux, Instituições de Israel no Antigo Testamento, p. 492, ao comentar os textos Os 6.6 e 1Sm 15.22, diz que “os profetas se opõem ao formalismo de um culto exterior, ao qual não correspondem as disposições do coração”.

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