Eclesiastes 11.1-6 – Providências Sábias Diante do Desconhecido
O capítulo 9 de Eclesiastes fala sobre os acontecimentos inesperados, enquanto o 10 versa sobre problemas no governo e o modo como eles impactam a vida dos cidadãos. Diante das inseguranças da vida e da contrariedade das condições que, muitas vezes, é enfrentada pelas pessoas, o Pregador se preocupa em fornecer subsídios, no capítulo 11, para que seus leitores ajam de maneira sábia neste mundo de incertezas. Segundo sua exposição, há um modo certo de se viver mesmo nas situações mais incertas.
Esse trecho está disposto de tal modo que há três pares de versículos (1-2, 3-4, 5-6).[1] Os versículos 1 e 2 instruem a pensar no bem e no mal que podem ocorrer no futuro, trabalhando pelo bem, mas se preparando também para enfrentar o mal. Os versículos 3 e 4 encorajam os leitores a se esforçar mesmo diante das incertezas e das situações inevitáveis que recaem sobre os homens. Por fim, os versículos 5 e 6 ensinam que o desconhecimento a respeito dos planos e da atuação de Deus deve levar seus servos ao trabalho duro, esperando nele a concretização dos seus esforços.
Assim, o primeiro conselho do escritor abrange a área dos negócios ou investimentos a longo prazo (v.1): “Atire o seu pão sobre a face das águas, pois muitos dias depois você o encontrará”. A tradução dessa frase não é difícil, mas sua compreensão sim. Os exegetas normalmente se dividem entre três possibilidades de interpretação, enxergando nela um pano de fundo agrícola, filantrópico ou comercial. No primeiro caso, o texto apontaria para algum tipo de plantio em terrenos alagados ou áreas de enchentes anuais, comuns no Egito, nas proximidades do rio Nilo. Assim, o escritor estaria aconselhando seus leitores a investir no plantio a fim de que, dentro de algum tempo, pudessem colher. Uma dificuldade dessa posição é o fato de que nenhum tipo de plantio em áreas alagadiças se encaixa bem em uma colheita a ser feita depois de “muitos dias”, tratando-se de culturas mais rápidas. Outra dificuldade é que seria pouco produtivo utilizar a comparação com uma realidade tão afastada e alheia à experiência israelita ou do próprio escritor a fim de transmitir uma ideia que deveria ser bem-compreendida e causar bastante impacto nos leitores.
O segundo caso, envolvendo o pano de fundo da filantropia, vê a ação de atirar o pão como um modo de auxiliar os necessitados, dando-lhes o que precisam para sua sobrevivência. O que não fica claro é de que modo a filantropia, apesar de ser recomendada em diversas partes das Escrituras, faria com que aquele que a promove venha a encontrar tal pão depois de muitos dias. Alguns sugerem que as pessoas ajudadas com o pão retribuiriam o favor caso seu benfeitor passasse por dificuldades no futuro. Só que, nesse caso, a filantropia perderia sua característica de ajuda amorosa e desinteressada para se tornar um investimento calculado. Isso transformaria o auxílio a necessitados em mera atuação interesseira — porém, incerta, já que não é possível garantir que os ajudados melhorarão de vida a ponto de poder retribuir o favor ou que tenham a mesma disposição no futuro.
O entendimento mais comum recai, então, sobre a figura de um comerciante que opera uma frota de navios. Isso, certamente, tem muito a ver com a experiência do próprio rei Salomão: “Porque o rei tinha no mar uma frota de Társis, com as naus de Hirão; de três em três anos, voltava a frota de Társis, trazendo ouro, prata, marfim, bugios e pavões” (1Rs 10.22). Assim, além de se valer de uma realidade ligada a si mesmo e conhecida por seus súditos, o quadro geral parece fazer mais sentido, já que os empreendimentos comerciais de Salomão nessa área — navios enviados com mantimentos “sobre a face das águas” a fim de voltar com lucros — eram um investimento a longo prazo.[2] Sendo assim, a frase “atire o seu pão sobre a face das águas” poderia ser parafraseada como “envie seus grãos em navios”.[3] Portanto, o ensino seria que, diante das incertezas sobre o futuro, é preciso tomar providências justamente pensando nos dias que virão. Trata-se de um alerta sobre a necessidade de pensar bem adiante — ainda que pareça que demorará muito tempo para chegar lá — investindo sabiamente tanto o tempo como os recursos.[4] O fato é que a falta de preparo no presente para os dias futuros faz com que eles sejam menos incertos e quase garantidamente mais difíceis. Alguns preparos precisam ser feitos logo, pois seus resultados demoram “muitos dias” para serem sentidos.
Pensando ainda na incerteza quanto aos acontecimentos futuros, o Pregador ensina outro procedimento sábio e precavido (v.2): “Divida suas posses em sete ou mesmo em oito partes, pois você não sabe que calamidade virá sobre a terra”. A menção aos números “sete” e “oito” não tem a intenção de sugerir que apenas essa quantidade de divisões dos patrimônios e investimentos atende ao padrão do procedimento sábio. Essa justaposição numérica, na literatura hebraica do Antigo Testamento, serve geralmente para expressar um total indefinido, sem a intenção de ressaltar o número inferior ou o superior. Há vários exemplos bíblicos de justaposição numérica, como de “um” ou “dois” (Dt 32.30, Jr 3.14, Jó 33.14, 40.5, Sl 62.12), de “dois” ou “três” (2Rs 9.32, Is 17.6, Os 6.2, Am 4.8), de “três” ou “quatro” (Jr 36.23, Am 1.3-11, Pv 21.19, 30.15,18), de “quatro” ou “cinco” (Is 17.6), de “seis” ou “sete” (Jó 5.19, Pv 6.16) e de “sete” ou “oito” (Mq 5.5, Ec 11.2).[5]
Apesar de muitos intérpretes verem na ordem de repartir as posses uma instrução que incentiva a generosidade de compartilhar seus bens, o conselho parece ser o de, prevendo possíveis e desconhecidas ocorrências danosas, tentar garantir que a calamidade não se abata do mesmo modo sobre todo o patrimônio e os investimentos de alguém. O texto clássico utilizado para exemplificar esse tipo de providência é aquele em que Jacó, sem saber como seria seu reencontro com Esaú, divide sua família e seus rebanhos em dois grupos. A ideia de Jacó foi que, caso Esaú ainda guardasse ressentimentos e quisesse vingança, seu ataque atingisse apenas um dos grupos enquanto o outro fugia a salvo (Gn 32.7-8). Do mesmo modo, o sábio, que vive em um mundo tão contraditório e cheio de surpresas, deve estar pronto para enfrentar contratempos sem que eles atinjam toda sua fonte de renda e segurança.
Ao que parece, Salomão exorta seus leitores a assumir um esforço constante e diligente, além de empreender investimentos prudentes e diversificados, reconhecendo que tudo está sob o controle soberano de Deus.[6] A ideia de ficar parado esperando a provisão divina não é algo que passa pela mente do escritor, não por que ele não creia no poder ou na soberania do Senhor, mas porque reconhece que essa não é a atitude sábia de um servo de Deus ou de alguém razoável e responsável.
O segundo conselho é introduzido por duas comparações que encontram eco no versículo seguinte (v.3): “Quando as nuvens se enchem, elas descarregam a chuva sobre a terra. Quando uma árvore cai — seja para o Sul ou para o Norte —, fica bem ali, no lugar em que caiu”. Apesar de haver estudiosos que liguem essas figuras ao versículo anterior, o quiasma que elas formam com o versículo 4 faz com que, preferivelmente, sejam vistas como introdução para a lição de ordem prática que virá na sequência. O fato é que tais figuras representam a previsibilidade e a imprevisibilidade dos acontecimentos. A previsibilidade de certas ocorrências pode ser vista no conhecimento que o homem tem de que a “chuva” vai cair depois que as “nuvens” ficam carregadas. Desse modo, é possível tomar algumas providências a tempo, como, por exemplo, procurar abrigo e recolher utensílios que não devem ser molhados. Ainda assim, mesmo prevendo acontecimentos como uma chuva iminente, não é possível evitar todas as suas consequências, ficando a mercê dos acontecimentos.[7]
Por outro lado, vendavais, que conseguem fazer com que árvores sejam desarraigadas e caiam, não são tão fáceis de prever. Como forças impetuosas, ventos assim — vindos do “Norte” ou do “Sul” — põem abaixo árvores que parecem inabaláveis. Elas tombam conforme a força do vendaval e não conforme algum planejamento prévio. Na verdade, elas podem até causar muitos danos ao desabar sobre lugares inesperados e em momentos imprevisíveis. O fato é que não é possível estar pronto ou preparado para todas as eventualidades da vida, o que torna a vida arriscada, assim como os investimentos que visam a garantir a subsistência das pessoas.
Sejam males previsíveis ou imprevisíveis, o conselho do escritor é que o sábio deve cumprir suas responsabilidades do mesmo modo, sem ser impedido por dificuldades que ele espera ou que não espera (v.4): “Quem fica observando o vento, não planta e quem fica olhando as nuvens, não colhe”. A estrutura quiasmática é formada pelas figuras das “nuvens” e do “vento”, no versículo 3, seguidas por menções ao “vento” e às “nuvens”, no versículo 4. Porém, enquanto o versículo 3 aborda figuras comparativas, aqui o autor exorta quem dá mais importância às observações dos acontecimentos do que às suas tarefas e responsabilidades. Esse provérbio critica aqueles que são excessivamente cautelosos.
O agricultor que espera o momento mais oportuno para plantar — quando não há vento para soprar a semente — e para colher — quando não há chuva para arruinar uma colheita madura — nunca fará nada além de esperar o momento certo.[8] É claro que alguém pode argumentar que é sábio observar as circunstâncias para não fazer algo no momento errado. Isso é verdade, a não ser que tal observação conduza não ao momento apropriado, mas à inatividade por se esperar o momento “perfeito”, o qual normalmente não ocorre nem é possível prever. Isso quer dizer que o homem deve primar pela cautela e pelo preparo, mas não pode se deixar paralisar diante de incertezas.[9]
O último conselho nessa área começa expondo a limitação do conhecimento dos homens diante das ações e dos propósitos do Senhor (v.5): “Assim como não há quem conheça os caminhos do vento, nem como se formam os ossos no ventre da gestante, do mesmo modo não há quem conheça as obras de Deus, o qual faz todas as coisas”. Esse é mais um versículo que divide os intérpretes. Visto que a palavra “vento” também pode significar “espírito”, há quem proponha que o sentido da primeira parte do texto seja algo que aponta para o fato de que “ninguém sabe como o espírito se junta aos ossos no ventre da gestante” — ou versões ligeiramente diferentes.
Apesar de ser gramaticalmente possível, essa opção não faz jus ao contexto no qual o vento já foi tema nos últimos dois versículos, sem haver qualquer indicação de mudança no sentido da palavra ou na linha de argumentação. Assim, o mais provável é que o autor esteja novamente falando da limitação humana em prever os eventos climáticos que podem se abater sobre ele. Entretanto, para frisar ainda mais o desconhecimento de tais verdades, o autor oferece uma comparação marcante — especialmente para aqueles dias — a respeito do mistério que envolve a formação dos “ossos no ventre da gestante”. É claro que não são apenas os ossos que se formam no ventre, mas todo o feto. Os ossos são uma parte do todo que compõe o novo ser humano gerado. É possível que, ao citar os ossos, ele esteja se referindo à parte interna do corpo que está sendo formado dentro de outro corpo, estando duas vezes encoberto aos olhos humanos e oculto à sua compreensão.
A sabedoria do homem não pode mudar ou sondar a atuação de Deus na natureza ou em qualquer outra área (cf. v.5).[10] Por isso, o autor faz questão de relembrar seus leitores da inescrutabilidade de Deus,[11] ensinando que ela nunca deve servir de desculpa para a inatividade humana. Ao contrário, ela deve ser motivo de o homem assumir a atitude correta tanto diante do Senhor como diante das suas próprias responsabilidades na vida. Por isso, a parte prática do conselho, em vista da limitação humana, é trabalhar de modo redobrado (v.6): “Plante sua semente desde a manhã e não dê descanso às suas mãos até à tarde, pois você não sabe qual esforço dará resultado, se este ou aquele, ou se os dois prosperarão igualmente”. Os trechos “desde a manhã” e “até à tarde” formam uma expressão idiomática que indica totalidade completa, apontando para todo o dia de trabalho por meio dos seus extremos.[12] Quer dizer que o homem deve investir seu tempo em algo proveitoso e não ficar sem fazer nada ou descansar sem ter se cansado. Ao contrário, deve passar seu dia em meio ao esforço que produzirá aquilo que ele precisa e o que servirá para a glória do seu Senhor. Mais que isso, ele deve se esforçar em diversas áreas de trabalho sabendo que não tem poder para fazer qualquer uma delas dar os resultados que ele pretende. É claro que alguém pode olhar para essa limitação humana e desistir do esforço, mas o correto e sábio é redobrar os esforços para que um, ou outro, ou todos os esforços atinjam o êxito desejado.
Olhando para a mensagem dos versículos 5 e 6, chega-se à conclusão de que, já que os caminhos de Deus são misteriosos, a pessoa deve trabalhar duro e evitar o ócio.[13] É certo que muitas ocorrências que não se esperam podem atrapalhar e até impedir os esforços de alguém. Mesmo assim, a lição que o Pregador quer ter certeza de que seus leitores aprenderão é que, apesar de os acontecimentos serem inesperados (cf. 9.11), os bons resultados não vêm da sorte, mas da diligência.[14] A conclusão é que a incerteza quanto ao futuro não deve impedir que o indivíduo cumpra suas responsabilidades, mas que enfrente a vida com diligência e entusiasmo.[15]
Poucas mensagens nos parecem tão atuais como essa. É claro que isso nos dá uma boa noção de que, apesar de o mundo ter mudado tanto ao longo dos séculos, as pessoas e suas condições de vida têm sido as mesmas ao longo da história. Essa é uma ótima razão para ouvirmos os conselhos atuais do Pregador e aplicá-los em nosso dia a dia, tornando-nos exemplos a serem seguidos por outros, não apenas em razão do trabalho, mas também do conhecimento de Deus e da fé no salvador Jesus Cristo. Por isso, precisamos ser previdentes, preparando-nos para os bons e maus momentos do futuro. Temos de nos preparar para acontecimentos inesperados e inevitáveis que eventualmente nos atingirão. E devemos nos esforçar e trabalhar duro, esperando em Deus a concretização dos nossos labores. Feito isso, podemos, também, aproveitar a vida com alegria e entusiasmo, como um presente dado a nós pelo próprio Senhor (cf. 11.7-10). Que ele nos ajude!
Pr. Thomas Tronco
[1] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 392.
[2] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 139.
[3] Wiersbe, W. W. Be Satisfied. “Be” Commentary Series. Wheaton: Victor Books, 1996, p. 127.
[4] Merrill, Eugene. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd, 2009, p. 607.
[5] Gesenius, F. W. Gesenius’ Hebrew Grammar (E. Kautzsch; S. A. E. Cowley, Ed.). 2ª ed. Oxford: Clarendon Press, 1910, p. 437.
[6] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1003.
[7] Keil, C. F.; Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament. Peabody: Hendrickson, 1996, vol. 6, p. 782.
[8] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 11.4 – nota 10].
[9] Hill, Andrew E.; Walton, John H. Panorama do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2007, p. 405.
[10] Archer Jr., Gleason Leonard. Merece Confiança o Antigo Testamento? 3ª ed. São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 436.
[11] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 323.
[12] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 151.
[13] House, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005, p. 611.
[14] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). Ecclesiastes. The Pulpit Commentary. London: Funk & Wagnalls: 1909, p. 285.
[15] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 575.