Eclesiastes 8.10-17 – A Perspectiva Correta das Injustiças na Vida
A primeira parte do livro de Eclesiastes demonstra a perplexidade e o dissabor causados no Pregador — e nos demais seres humanos — por causa das enigmáticas contradições da vida e da falta de sentido em uma existência que não consegue se livrar das cargas e sofrimentos, nem desfrutar dos seus desejos e objetivos “debaixo do Sol”. Um problema recorrente, apresentado nos seis primeiros capítulos do livro, é o das injustiças na vida. Sem tratar de pecados específicos, o escritor volta agora nesse assunto lançando mão de uma nova abordagem. Ele compara o mesmo problema sob a perspectiva puramente “debaixo do Sol” e a perspectiva correta, cujas ferramentas e valores se encontram acima do céu.
A abordagem do problema é vista como uma conclusão tirada da observação da sociedade e das suas ocorrências ao longo de anos (v.10): “Eu também percebi que ímpios, que já foram sepultados, entravam e saíam do lugar santo e eram elogiados na cidade em que agiam assim. Isso também é futilidade”. De tradução bastante difícil, esse texto divide os tradutores. Contudo, o versículo seguinte parece aclarar o que o autor tinha em mente. Sua introdução o conecta ao trecho anterior, o qual já descortinava alguns aspectos da injustiça na experiência humana, tanto no trato do rei mau com seus súditos como no trato dos súditos tolos com seu rei. Entretanto, a segunda metade do capítulo expande o problema do mal e das injustiças na vida.
O escritor começa a descrever um caso conflitante no sentido do senso comum de justiça. Ele narra ter visto pecadores serem sepultados, ou seja, serem tratados com uma honra devida a homens de bem, já que a falta de sepultura era vista como uma grande tragédia e maldição. Mas não só isso. Em vida, eles “entravam e saíam do lugar santo”. Alguns comentaristas supõem que se trata de uma menção à cidade de Jerusalém. Porém, dois fatores criam certa dificuldade para essa opção. A primeira é o modo como “cidade”, em vez de surgir como um simples paralelo de “lugar santo”, parece englobá-lo e não substituí-lo. Em segundo lugar, os versículos 12 e 13 distinguem o justo do ímpio pelo modo como eles se portam “na presença de Deus”, uma menção frequentemente associada ao culto prestado ao Senhor no Templo, segundo as normas da lei mosaica. Assim, além de serem pecadores, agindo mal contra Deus e contra os homens em seu dia a dia, tais pessoas ainda apareciam nos cultos apresentados no Templo e agiam como se fossem pessoas de bem que realmente quisessem honrar ao Senhor, demonstrando, com isso, uma grande hipocrisia.
Até esse ponto, o leitor se surpreende apenas parcialmente, ficando estupefato com as formas que o pecado e o desvio assumem na vida do ímpio. Entretanto, o leitor se consola no fato de que a punição divina, que julga os corações, cobrará o mal de quem age assim. E é justamente nesse ponto que surge o fator que causa maior perplexidade, pois, em vez de receberem a devida e merecida punição, esses homens “eram elogiados na cidade em que agiam assim”, o que ocorreu até finalmente “serem sepultados” com todas as honras. A expressão “na cidade” não tem apenas o significado de um lugar, mas também pode ser traduzida como “pela cidade”, no sentido de “pelas pessoas que vivem na cidade”. É essa situação que define o cenário para o que se segue, indicando o problema apontado pelo autor.[1] O leitor termina o versículo possivelmente se perguntando: o que aconteceu com a justiça?
A resposta é dada a seguir (v.11): “Quando a sentença não é executada logo que se pratica o crime, o coração do homem se enche de coragem para praticar o mal”. A “sentença” é um ato judicial que pode também ser traduzido como “juízo”. Sabemos que quando o governo terreno não pune os malfeitores, eles se espalham e aumentam sua atuação perversa. Entretanto, ao analisar o problema das injustiças na vida, o autor não está pensando primariamente nos tribunais humanos, mas no julgamento divino. A questão que ele levanta é: por que Deus não pune os maus assim que praticam a maldade? Essa é uma pergunta que muita gente se faz. E a aparente inatividade de Deus é, muitas vezes, atribuída erroneamente à indiferença, à impotência ou ao favoritismo.[2]
O trecho “se enche de coragem” é dito, em hebraico, como sendo “se enche deles”, podendo apontar para o crime praticado ou para a ausência de juízo, dizendo ser um fator que encoraja o criminoso a repetir as práticas ruins. Isso é de estranhar, pois as instruções divinas e a lei mosaica apontam para outro rumo. Por exemplo, o texto de Deuteronômio 19.18-19 ensina o modo como punir os israelitas que dessem um falso testemunho. Porém, além de punir o culpado, uma das intenções do castigo imposto ao infrator era incutir temor nos demais para que não fizessem o mesmo, pelo que o texto diz: “Para que os que ficarem o ouçam, e temam, e nunca mais tornem a fazer semelhante mal no meio de ti” (Dt 19.20). Por isso, o choque de se observar uma circunstância como a descrita aqui pelo Pregador é um pouco desconcertante e traz dúvidas a respeito da razão de Deus desejar que os outros temam pecar, mas se omitir em punir alguns crimes tão logo ocorram. Será que Deus realmente age com justiça? Será que ele realmente se importa?
Essas questões que são levantadas na mente dos servos do Senhor encontram uma resposta surpreendente não pela verdade exposta, mas pelo contexto que a carrega (v.12): “Ainda que o pecador cometa cem crimes e tenha uma longa vida, eu sei o bem que virá para os que temem a Deus, que temem em sua presença”. Deve-se dar especial atenção à afirmação do escritor quando diz “eu sei”. Enquanto seus conselhos e conclusões no livro geralmente são introduzidos pela palavra “percebi”, nesse caso ele afirma saber o que diz nesse versículo. Isso é mais chamativo quando, várias vezes no livro — inclusive no final desse mesmo capítulo (v.16,17) —, ele fala sobre a limitação humana em entender os fatos e as incongruências da vida.
Apesar disso, o Pregador não tem qualquer dúvida sobre a justiça que será aplicada um dia às pessoas de acordo com o que realmente merecem. Essa certeza, obviamente, não se deve a algo que ele viu ou espera debaixo do Sol, mas a um olhar guiado inteiramente pela fé em Deus e em sua atuação justa, no momento determinado por ele, nesta vida ou depois da morte. O fato de o ímpio ter “uma longa vida” não significa, diante do tribunal divino, aprovação para os seus “crimes”, ainda que “cem” deles fiquem sem punição durante a vida do pecador. Apesar de todos serem pecadores (cf. 7.29), o fator que diferencia o justo do ímpio é que os justos “temem a Deus”. Quanto ao “bem que virá” a eles, o escritor não especifica se tem em mente apenas a recompensa futura, ou também as bênçãos presentes, que ajudam o justo, mesmo diante das dificuldades, a se resolver melhor em sua vida que o ímpio.[3] Como o versículo 15 aborda algumas dessas bênçãos presentes, dadas por Deus, é provável que ele veja tal “bem” como sendo, primariamente, a justificação eterna e, em adição a isso — mas não de modo irrelevante —, o suporte e a provisão do Senhor durante a vida.
Por outro lado, o ímpio, ainda que seja próspero nessa vida e receba os elogios e o respeito da sociedade, tem seu futuro definido pelo que há em seu coração, visto “que não teme na presença de Deus” (v.13): “Mas o bem não virá para o pecador, nem alongará seus dias como a sombra, visto que não teme na presença de Deus”. Essa afirmação de fé na justiça de Deus é notável, pois é feita sem apresentar nenhuma evidência de apoio. O autor simplesmente afirma que, por causa de sua impiedade, os ímpios não desfrutarão de uma vida prolongada.[4] Para falar do modo como sua vida será tolhida, ele compara esse alongamento ao caminhar de uma sombra, que vai aumentando seu tamanho e mudando sua posição com o movimento do Sol. Essa comparação produz a ideia de que a atuação do Senhor será semelhante ao momento em que o Sol desaparece, fazendo sumir a sombra que aumentava de tamanho e deixando apenas escuridão para trás de si.[5] De maneira semelhante, o pecador verá o fim do caminhar da sua sombra, ou seja, o fim dos seus dias, encontrando apenas as trevas do juízo divino.
Nesse ponto, o leitor pode achar que o escritor foi um tanto incoerente, já que, no versículo 12, descreve o pecador tendo “uma longa vida” e, no versículo 13, tem como certo que ele não “alongará seus dias”. Mas não se trata de incoerência e, sim, de perspectiva. Trata-se do olhar que o Pregador usa para interpretar os eventos. Diferente da perspectiva de quem olha apenas para as coisas “debaixo do Sol”, tal avaliação vem da perspectiva de quem olha acima do céu, para o Deus justo que, independente de quando, sempre pune o mal. Isso quer dizer que as mesmas situações podem ser vistas e avaliadas de modos diferentes quando se olha para elas com o olhar do mundo e com o olhar da fé. Esse texto também deixa transparecer que, independente da ênfase proposital do autor nos temas da existência “debaixo do Sol”, ele abrigava conceitos da vida após a morte, na qual o Senhor acerta todas as contas com os ímpios e recebe para si aqueles que o amam e o temem.
Apesar dessa certeza inamovível de Salomão, baseada na fé que tem em Deus, ele não ignora os problemas e contradições dessa vida, pelo que as reafirma de modo claro, conciso e impactante (v.14): “Há outra futilidade que ocorre sobre a Terra: há justos que recebem o que os feitos dos ímpios merecem e há ímpios que recebem o que os feitos dos justos merecem. Digo que isso também é futilidade”. As duas menções à qualificação de “futilidade” servem para lembrar os leitores de que eles não podem colocar suas esperanças e objetivos de felicidade, realização, significado e completude apenas nessa vida e nas coisas que estão “debaixo do Sol”. Contudo, a repetição da palavra “futilidade” não se presta, tampouco, a abalar a fé dos que temem a Deus.[6] O que ele expõe, especificamente, é que podemos testemunhar casos em que a justiça é completamente invertida. A forma da frase não quer dizer que isso sempre ocorre, mas que é comum se ver justos sofrendo as dores merecidas pelos ímpios, enquanto ímpios, além de não receberem a punição que lhes cabe, ainda desfrutam de paz, prosperidade e alegria no mundo. Com isso, mesmo tendo afirmado sua fé de que Deus um dia há de julgar a todos, ele põe em evidência o problema que introduziu nos primeiros dois versículos desse trecho — e que também expôs no caso do poder autoritário e nem sempre justo dos reis, na primeira parte do capítulo.
Diferente do modo geral como encarou essas contradições na primeira metade de Eclesiastes, demonstrando desânimo, perplexidade e desgosto, aqui o Pregador, com o uso das lentes corretas, recorre ao que vale a pena aproveitar nessa vida até que chegue o tempo de Deus tratar tudo em seu justo e santo tribunal (v.15a): “Assim, passei a estimar a satisfação, pois não há nada tão bom para o homem, debaixo do Sol, como comer, beber e se satisfazer”. O fato de ele deixar o problema exposto no versículo anterior sem resposta — limitação que fica ainda mais clara nos versículos 16 e 17 — e partir para o modo prático de aproveitar a vida, a despeito das suas contradições e enigmas, demonstra que a sabedoria não é capaz de resolver as dúvidas e oferecer compreensão definitiva para a questão da retribuição divina nessa vida.[7]
A surpresa é ver o autor “estimar” tanto algo que ele afirmou, antes, ser uma futilidade incapaz de dar sentido à existência, a saber, a “satisfação”, pelo que disse no segundo capítulo: “Disse a mim mesmo, em meu íntimo: ‘Vamos! Eu te provarei com a satisfação. Veja como é bom’. Porém, percebi que isso também era futilidade. Disse eu à diversão: ‘É loucura’; e à satisfação: ‘Para que serve isso?’” (2.1-2). Entretanto, quando ele se referiu à busca de satisfação nesses versículos, buscou-a nos valores e prazeres do mundo segundo os conceitos meramente “debaixo do Sol”. Agora, quando ele passa a ter estima pelo modo correto de se alcançar a “satisfação” (cp. 3.12; 5.19), em vez de “odiar a vida” (2.17) e sentir “dor e irritação” (2.23), ele se satisfaz em coisas simples, mas que são dadas por Deus como um “presente” gracioso aos homens (2.24; 3.13, 5.18). Na verdade, o escritor percebe, pela perspectiva correta, que a própria vida é dada pelo Senhor (v.15b): “Essas coisas o acompanharão em seu trabalho nos dias de vida que Deus lhe dá debaixo do Sol”. O doador da vida é também o doador de presentes e recompensas ao homem a fim de que desfrute seus dias na Terra, mesmo sendo “debaixo do Sol”.[8] São tais bênçãos que aliviam a frustração, as dores, as irritações e o cansaço do trabalho duro que é imposto à existência humana, demonstrando — contra a expectativa dos críticos que julgam o Pregador um ateu, um cético ou um pessimista — sua crença e convicção de que Deus é bom.[9]
Mas, e quanto ao problema das injustiças na vida e à aparente inércia de Deus diante deles? Quanto a isso, o autor volta a dizer, de modo agora mais vívido e sugestivo, que nem cabe ao homem conhecer os desígnios de Deus, nem há nele capacidade para tanto (v.16, 17a): “Quando apliquei minha mente a fim de entender a sabedoria e ver o trabalho que é feito na Terra — visto que o sono não vem aos olhos do homem nem de dia e nem de noite —, percebi toda a obra que Deus fez”. Esse trecho serve de introdução para as categóricas afirmações finais. Nessa introdução, Salomão quer ter certeza de que seus leitores saibam que ele se “aplicou” profundamente em suas reflexões, observações e pesquisas a fim de “entender” o funcionamento de “toda a obra que Deus fez”, especialmente a vida humana. E ele também quer garantir que esse trabalho foi tão árduo e o dominou a tal ponto que seu próprio “sono” foi afetado por essas meditações, não lhe permitindo dormir bem, sem que elas interferissem em seu descanso, “nem de dia e nem de noite”. Ele apresenta esses fatos como uma credencial capaz de validar suas duras declarações a seguir.
Trata-se de três afirmações paralelas e de ideias sinonímicas, com abrangência crescente, centradas no verbo “compreender”. A primeira afirmação mostra que o homem é incapaz de encontrar sentido e respostas para tudo que ocorre, o que, nesse caso, aponta especialmente para a questão da retribuição divina e para a perplexidade que ela nos causa (v.17b): “Pois o homem não consegue compreender o que acontece debaixo do Sol”. O trecho “o que acontece” quer dizer, literalmente, “a obra que é feita” e aponta para todo o objeto das reflexões do Pregador. A segunda afirmação acrescenta que tais respostas não podem ser obtidas nem mesmo com os esforços dedicados de alguém (v.17c): “Independente do seu esforço nessa busca, o homem não compreende”. Há uma limitação compulsória a todo homem nessa jornada árdua. O resultado final sempre será a incompreensão.
A terceira e última afirmação adiciona o fato de que essa compreensão independe do esforço humano, mas também independe da capacidade e dos propósitos dos sábios (v.17d): “Ainda que o sábio diga que chegará a entender, ele não consegue compreender”. Apesar de todas as afirmações enquadrarem a humanidade em geral, também descrevem os esforços e buscas incessantes do próprio rei sábio, tarefa anunciada desde o começo do livro: “Dediquei-me a estudar e investigar com sabedoria tudo que acontece debaixo do céu” (1.13a). Sua percepção de ser incapaz de compreender os desígnios de Deus para essa vida, por mais que tenha se esforçado, dia e noite, utilizando todos os recursos da sabedoria que lhe foram dados, talvez seja o fardo que ele disse estar atrelado à sua busca: “Deus pôs essa árdua tarefa sobre os filhos dos homens para afligi-los com ela” (1.13b).
Nossa conclusão é que, mesmo sendo impossível descobrir ou entender os planos do Senhor para essa vida e para o desenrolar da história, não há motivo para que os servos de Deus percam a alegria de viver ou se vejam como seres que não têm sentido ou relevância no mundo. Ao contrário, a esperança futura de habitar com seu salvador e ter sua justiça vindicada por ele, deve mantê-los fiéis e fazê-los aproveitar e se satisfazer com as bênçãos presentes, ainda que pareçam ser menores que as conquistas dos pecadores. Por outro lado, a certeza do juízo inevitável dos maus diante do tribunal celeste deve levar o servo do Senhor a temer tão grande juiz e honrá-lo com uma vida de obediência. Por fim, deve-se engrandecer o papel da fé na vida presente como “a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não veem” (Hb 11.1). Só assim a vida faz sentido e o amor de Deus se faz visível.
Pr. Thomas Tronco
[1] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 296.
[2] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 130.
[3] House, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005, p. 608.
[4] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 329.
[5] Wiersbe, W. W. Be Satisfied. “Be” Commentary Series. Wheaton: Victor Books, 1996, p. 101.
[6] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). Ecclesiastes. The Pulpit Commentary. London: Funk & Wagnalls: 1909, p. 204.
[7] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 574.
[8] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 997.
[9] Waltke, Bruce K.; Yu, Charles. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 1072.