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Eclesiastes 7.23-29 – A Sedução da Loucura e a Loucura da Sedução

 

O trecho final do capítulo é mais fluente e linear que os anteriores, mas, ainda assim, divide os intérpretes. Isso porque metade do parágrafo se concentra no tema da sabedoria inatingível, enquanto a metade seguinte fala dos perigos da sedução feminina. Por isso, alguns comentaristas julgam que a mulher, citada na segunda parte do texto, seja uma personificação da “Sabedoria”, como Salomão faz em Provérbios 89. Contudo, quem pensa assim tem dificuldades para explicar os perigos que ela representa para o homem que teme a Deus e que razão ele teria para fugir dela, no versículo 26. Outros, talvez pensando nisso, sugerem que a mulher seja uma metáfora para designar os desejos da carne e a pecaminosidade humana.

Seja qual for a proposta de identificação figurada da mulher do texto, a dificuldade que todos os proponentes têm é a de interpretar quem seria, então, o “homem sábio”, no versículo 28. Alguns sugerem ser uma referência a Adão, por ser o único homem que viveu, pelo menos por algum tempo, sem o pecado. Mas diz isso se esquecem que Eva experimentou a mesma realidade, criando um problema de interpretação no próprio versículo 28. Por essas e por outras explicações limitadas e contraditórias, concluímos que dificilmente Salomão tinha em mente, nesse texto, a personificação da Sabedoria ou qualquer outra referência metafórica para a mulher de que fala.

Ao contrário, o trecho tem ênfases e demonstrações de emoções muito pessoais para o escritor, diferente do modo geral de se expressar no livro. Enquanto Salomão normalmente se apresenta como um Pregador sábio, que fez muitas pesquisas e descobertas sobre a vida e que tem uma grande bagagem a transmitir, aqui ele se apresenta mais deficiente e vulnerável, perplexo com o modo como lidou com a sabedoria que recebeu de Deus. Ele também fala mais das suas buscas pessoais que das conclusões a que chegou. Por fim, ao apresentar suas conclusões e ensinos de vida, ele faz duas chamadas enfáticas à atenção do leitor a fim de dar ênfase especial ao que vai dizer, como se fosse uma lição pessoal de vida de quem a aprendeu ao custo de muita dor e sofrimento.

Por isso, a julgar pelas descrições do harém de Salomão e dos desvios de sua vida causados por ele (1Rs 11.3-8), seguidas de dolorosas consequências (1Rs 11.9-25), julgamos que ele realmente trata, na segunda metade do parágrafo, de mulheres e dos perigos da sedução — deve-se lembrar que, no livro de Provérbios, esse é um tema tão extensamente tratado (Pv 5; 6.20-35; 7) quanto o recurso da personalização da Sabedoria. O Pregador ainda termina o capítulo expondo a condição caída da raça humana, razão de tantos desvios, contradições e sofrimentos.

Salomão inicia o parágrafo falando de seus pensamentos, pesquisas, reflexões e descobertas (v.23a): “Eu examinei todas essas coisas com a sabedoria e disse: ‘Eu me tornarei sábio’”. Ele diz sobre isso em outras partes do livro, antes daqui. Veja o que afirma: “Dediquei-me a estudar e investigar com sabedoria tudo que acontece debaixo do céu” (1.13a) e também “observei todos os feitos do homem debaixo do Sol” (1.14a). Seu objetivo, proposto ao dizer “eu me tornarei sábio”, foi bem-sucedido se comparado aos demais homens, pelo que disse: “Sobressaí e ultrapassei em sabedoria a todos que existiram em Jerusalém antes de mim. De fato, eu adquiri muita sabedoria e conhecimento” (1.16). Assim como no versículo 25, ele já havia se preocupado com os temas antagônicos de sabedoria e loucura, de modo a dizer: “Dediquei-me a conhecer tanto a sabedoria como a loucura e a insensatez” (1.17a) e também “refleti sobre a sabedoria e sobre a loucura e a insensatez” (2.12a). A partir de todas essas buscas por conhecimento, ele tem muito a ensinar nos escritos do livro, sempre deixando claro se tratar de descobertas que fez em suas análises, usando a expressão “percebi” — tradução do verbo hebraico que significa “vi” (1.14; 2.1,11,14,24; 3.22; 4.4; 5.13; 7.15).

Salomão foi, de fato, o homem mais sábio que viveu, segundo as palavras do Senhor que o abençoou com tanto conhecimento: “Dou-te coração sábio e inteligente, de maneira que antes de ti não houve teu igual, nem depois de ti o haverá” (1Rs 3.12). Apesar disso, Salomão termina o versículo com uma afirmação intrigante (v.23b): “Mas a sabedoria estava longe de mim”. O texto hebraico diz “ela estava longe de mim”, mas é evidente que o escritor está se referindo à sabedoria que disse ter buscado sem sucesso. É claro que o reconhecimento de que não se tem toda a sabedoria é uma das coisas que tornam alguém sábio,[1] visto que tal noção produz humildade em vez de orgulho. Ainda assim, é necessário, nesse ponto, fazer uma distinção entre a “sabedoria” que Deus lhe deu e a “sabedoria” que ele não chegou perto de obter.

O versículo seguinte aclara um pouco a questão (v.24): “Quem pode alcançar aquilo que está longe e muito profundo?”. A expressão “muito profundo” reflete aqui a repetição da palavra hebraica que tem o sentido de profundidade, dando ênfase a um alto grau de incompreensibilidade.[2] A pergunta retórica “quem pode alcançar?” serve para dizer que ninguém é capaz de descobrir todos os mistérios e conhecimentos ocultos do universo criado por Deus, reproduzindo brevemente algo que Jó também percebeu (Jó 28.12-22).[3] Muitas dessas respostas, obviamente, encontram-se apenas na mente do Senhor, à qual Paulo diz ser insondável e incompreensível pelos homens (Rm 11.33-35), concordando com a percepção de Salomão. Mas devemos estar atentos ao fato de que o Pregador, nesse ponto, não está mais pensando sobre as coisas misteriosas da criação, como fez no começo do livro, mas investiga aqui o coração do homem e seu comportamento, nos quais ele considerou haver aspectos que estavam além da sua compreensão (cf. Pv 20.5).[4]

O escritor não deixou de alcançar o conhecimento de mistérios ocultos e muito profundos por falta de tentar ou de se esforçar (v.25a): “Apliquei a minha mente a fim de entender, investigar e perseguir a sabedoria e a avaliação das coisas”. Os verbos “entender”, “investigar” e “perseguir” têm, nesse versículo, um sentido correlato que aponta enfaticamente para a busca árdua, contínua, diligente e incansável pelo entendimento.[5] Os objetos de tanta pesquisa foram a “sabedoria” e a “avaliação” correta das coisas, ou seja, a “conclusão” a respeito da qualidade daquilo que estudou e analisou. Quando ele diz que algo “é futilidade” (1.2,14; 2.15,17,19,21,23,26; 3.19; 4.4,8; 5.10; 6.2,9; 7.6), trata-se de uma avaliação que ele fez sobre algo e essa é a conclusão a que chegou. Do mesmo modo, as declarações “melhor é” (5.1,5; 6.3,9) ou “não há nada tão bom” (2.24; 3.12,22) são conclusões advindas de sua análise cuidadosa. De fato, Salomão não se saiu nada mal como pesquisador e pensador.

Entretanto, ele não analisou apenas o lado bom da sabedoria, mas também sua ausência nos homens, de modo que ele acrescenta seu outro nicho de observação (v.25b): “E entender a estupidez da maldade e a idiotice da loucura”. Os objetos de estudo, nesse caso, são a “maldade” e a “loucura”. Ele já havia falado sobre elas (1.17; 2.12). Porém, aqui ele as intensifica por meio de qualificações descritas como “estupidez” e “idiotice”. A palavra hebraica para “idiotice” foi traduzida em outras partes do livro como “insensatez” (1.17; 2.3,12). Entretanto, o tom acentuado que o texto dá à “maldade” e à “loucura” pede uma tradução mais enfática e agressiva para o termo. É como se ele desejasse que as palavras causassem dor no alvo delas. Isso seria pouco educado, a não ser que o alvo fosse ele mesmo. O tom enfático e ríspido desses termos dá a impressão de que eles tocam em um ponto sensível para o próprio escritor, mexendo com suas emoções. É como se ele quisesse se punir com tais palavras ou dizer a si mesmo: “Como eu pude ser tão estúpido assim?”. Com isso, ele avalia duramente a “sedução da loucura” que pode se apoderar até dos homens mais sábios.

Esse tom emocional e a possibilidade de falar algo doloroso da sua experiência pessoal ajudariam a explicar um pouco mais do significado de “a sabedoria estava longe de mim” (v.23b). Imediatamente depois de Deus conceder sabedoria a Salomão, as Escrituras narram o episódio de duas mulheres que disputavam um bebê vivo, enquanto outro estava morto (1Rs 3.16-28). A solução dada pelo rei a fim de julgar corretamente e restituir o bebê vivo à mãe verdadeira deixou o povo perplexo, pelo que é dito que “todo o Israel ouviu a sentença que o rei havia proferido; e todos tiveram profundo respeito ao rei, porque viram que havia nele a sabedoria de Deus, para fazer justiça” (1Rs 3.28). O texto revela, de fato, que o povo ficou muito impressionado com a sabedoria de Salomão, mas não deixa de afirmar que tal conhecimento servia “para fazer justiça”.

Isso quer dizer que a sabedoria não serve apenas para dar respostas a mistérios complicados, mas também para ser posta em prática e ser revelada em ações concretas, além de preservar a vida do sábio dos danos que a tolice pode causar (7.11,12).[6] Sob tal aspecto, até o homem mais simples pode ser sábio se temer a Deus (cf. Pv 1.7) e tiver uma vida condizente com tal realidade. E foi justamente nesse ponto que Salomão agiu como um completo tolo, em desobediência ao Senhor, ao agradar suas mulheres, dando-lhes templos em honra de falsos deuses, e ao prestar um culto abominável junto delas. Qualquer um que lê essa parte da história de Israel se pergunta: “Como o homem mais sábio do mundo fez uma coisa tão louca e insensata?”. Quando Salomão escreveu essas palavras, a mesma pergunta devia atravessá-lo e retalhá-lo diariamente de cima a baixo. Além disso, as consequências presentes, na forma de conflitos militares com diversos inimigos, e as consequências futuras, na promessa divina de dividir Israel em dois países, provavelmente aumentavam seu sofrimento e arrependimento por erros tão crassos. É justamente nesse ponto do texto que ele introduz o assunto a respeito das mulheres e da “loucura da sedução”.

Diferente do seu modo habitual de expor seus ensinos, introduzidos pelo verbo “percebi”, o escritor usa, dessa vez, o termo “descobri”, como se explicasse algo que ele conheceu pessoalmente (v.26a): “Eu descobri algo mais amargo que a morte: a mulher cujo coração é como laços e redes de caça e cujas mãos são como correntes”. O modo como ele fala dessa mulher a expõe como um fator perigoso e não exatamente “amargo”. A expressão “mais amargo que a morte” pode ser uma referência não à mulher em si, mas ao efeito que ela produz no homem a quem ela captura. Esse amargor, figura para sentimentos marcados por dor e dissabor,[7] seria uma boa descrição do que o próprio Salomão sentia depois de ter se deixado desviar por suas mulheres.

Dito isso, ele passa a descrever um tipo de mulher que causa amargor nos homens. A descrição não tem relação com sabores, mas com a figura de um caçador perigoso, cheio de recursos para capturar suas presas e detê-las com firmeza. Ele diz que o “coração delas é como laços e redes de caça”. Com isso, desenha para o leitor armadilhas postas em emboscada para presas desavisadas, que caem nos “laços” inescapáveis e nas “redes” envolventes do seu “coração”, ou seja, dos seus desejos, sentimentos e planos que envolvem e cativam homens desatentos — deve-se lembrar que o conceito de “coração” engloba os sentimentos, mas também o exercício intelectual do ser humano.[8] Depois de enredados, eles não conseguem se soltar facilmente, pois são firmemente aprisionados pelas “correntes” escravizadoras das “mãos” suaves dessa mulher que, com carinho e prazer, aprisiona sua caça indefesa. É uma descrição propositalmente assustadora, especialmente por promover desgostos e consequências amargas vindas de alguém cuja aparência é tão bonita, agradável e prazerosa. É a armadilha perfeita.

Essa descrição expõe, figuradamente, a sedução que uma mulher pode exercer sobre um homem. É claro que a sedução, em si mesma, não é capaz de efeitos tão amargos. O autor está se referindo a algo além, que é o poder da mulher sedutora sobre o homem, sendo capaz de levá-lo a ações e atitudes das quais ele vem a se arrepender amargamente. O desvio de Salomão é um exemplo do poder que suas mulheres tiveram sobre ele e sobre o seu juízo, desviando-o para a tolice e fazendo-o amargar consequências desastrosas. Por isso, ele dá um alerta (v.26b):Aquele que é bom diante de Deus foge dela, mas o pecador é capturado por ela. “Aquele que é bom diante de Deus”, assim como em 2.26, é uma referência ao servo que teme e agrada o Senhor por meio da fé (cf. Hb 11.6). Com o uso da sabedoria, o homem que agrada o Senhor evita se arriscar ao desvio com mulheres sedutoras que acolhem valores distorcidos pelo mal e pela loucura. Ao contrário, ele foge dela assim como um animal que percebe o perigo e corre do caçador com todas as forças para salvar sua vida. O “pecador”, por sua vez, não foge dessa mulher, mas vai ao encontro dos seus braços sedutores e é “capturado por ela”. A mesma palavra hebraica aqui traduzida como “capturado”, quando não inserida em um contexto de caça ou de guerra, mas de relacionamento, tem o significado de “ser seduzido”.[9]

Diante disso, um enfático chamado é feito (v.27,28a): “Preste muita atenção! Isso é o que eu descobri — diz o Pregador — enquanto examinava passo a passo a fim de chegar a uma conclusão que eu ainda procuro sem encontrar”. O imperativo “preste muita atenção” é a tradução da forma hebraica que significa “veja!”. É uma enfática chamada à atenção para algo importante que será dito. Em outras palavras, o autor está anunciando que irá expor uma de suas mais importantes e críticas descobertas, uma de importância vital para o homem “que é bom diante de Deus”. O modo de construir a frase, adicionando “diz o Pregador”, dá um tom solene e sério ao que será dito. Teólogos liberais dizem que a ação do escritor de citar o Pregador na terceira pessoa é uma evidência de uma autoria compartilhada, ou seja, da existência de mais de um escritor, possivelmente de outras épocas diferentes. Mas a verdade é que se trata de um recurso literário nada incomum que, algumas vezes, é usado por simples questão de estilo e, outras, para dar ênfase, como aqui. Um recurso parecido foi utilizado por Deus quando se dirigiu irado aos israelitas rebeldes, falando de si mesmo na terceira pessoa, com a expressão correlata “diz o Senhor” (Nm 14.28). É claro que o Pregador não é Deus, mas, ainda assim, lança mão do mesmo recurso para dar destaque ao que está para transmitir. Ele quer ter certeza de que toda a atenção dos seus leitores estará voltada ao seu ensino.

Depois de tanta ênfase, ele anuncia que sua descoberta se deu quando ele analisava “passo a passo” — ou “coisa por coisa” —, demonstrando sua minuciosa pesquisa e reflexão. O objetivo de tanto trabalho era poder “chegar a uma conclusão”, o que também pode ser traduzido como “descobrir a avaliação correta”. Em outras palavras, o escritor estava examinando todos os fatores a fim de entender a qualidade do seu objeto de pesquisa. O desconcertante é que, mesmo com tanta atenção e pesquisa minuciosa, o mais próximo de uma “conclusão” a que chegou é que, segundo diz, “eu ainda procuro sem encontrar”. Esse é um modo de dizer que suas observações sobre o tema o deixaram confuso e que ainda o deixam perplexo.

Depois de uma introdução tão enfática e longa, ele chega ao ponto que deseja apresentar, deixando também o leitor perplexo (v.28b): “Encontrei um homem sábio entre mil outros, mas não encontrei uma mulher sábia dentre todas elas”. Nesse ponto, o Pregador costuma ser avaliado pelos críticos como misógino, ou seja, alguém que sente desprezo ou ódio pelas mulheres. Mas isso não é verdade. O que ele faz aqui é um alerta contra as armadilhas da luxúria desenfreada.[10] Sua visão sobre as mulheres em si pode ser vista quando ele diz que aproveitar a vida com a mulher que ama é a recompensa de um homem (9.9), ou que uma “mulher virtuosa é a coroa do seu marido” (Pv 12.4) e também que “a mulher sábia edifica a sua casa” (Pv 14.1). Além disso, ele encarece o relacionamento entre o marido e sua esposa ao longo de todo o livro de Cantares. Ele realmente considera a mulher um presente e um suporte para o homem, desde que a vida e o relacionamento deles sejam marcados pela sabedoria. E é justamente sobre a sabedoria que ele está discorrendo aqui.

O texto hebraico não traz as qualificações “sábio” e “sábia”, mas diz apenas “encontrei um homem entre mil outros, mas não encontrei uma mulher dentre todas elas”. É como se houvesse linhas pontilhadas a serem completadas adjetivando os personagens ali descritos. Desse modo, o tradutor tem de supor o que o autor tinha em mente e completar essas linhas pontilhadas a fim de ajudar o leitor a compreender o pensamento. É possível que os leitores originais, dos dias de Salomão, não tivessem a mesma dificuldade de compreensão que temos, pois a construção da frase pode refletir um ditado conhecido ou um modo de se expressar mais corriqueiro do que para nós. Quanto a nós, temos de decidir entre algumas possibilidades. Uma delas, adotada por muitos tradutores, é a qualificação de “um homem reto” e “uma mulher reta”, visto que é sobre retidão que o versículo posterior fala ao explicar o modo como a humanidade foi criada. Porém, o parágrafo todo fala sobre a sabedoria e os efeitos da falta dela tanto para homens (v.26b) como para mulheres (v.26a). Por isso, outra possibilidade — adotada aqui — vê menções a “um homem sábio” e “uma mulher sábia”. Uma possibilidade adicional razoável, mas bem menos destacada pelo contexto, é ligada à descrição do homem “bom diante de Deus” (v.26), como alguém que “agrada ao Senhor”.

A dúvida seguinte é relacionada à que o escritor quis dizer com isso. Certamente não se trata de estatísticas matemáticas que ele tenha calculado, mas de uma figura proverbial usada para transmitir uma ideia central. Mas qual seria essa ideia central? Como essa frase não contém, de modo isolado, um sentido que seja compreensível e que faça jus ao restante das Escrituras, devemos olhar para ela sob o prisma do versículo 26, que vem imediatamente antes do anúncio que leva à descoberta do autor. O versículo 26 trata do perigo que a mulher sedutora traz ao homem no sentido de impedi-lo de ser bom diante de Deus. É claro que não são apenas as mulheres que podem desviar alguém. Homens também podem desencaminhar seus companheiros, como no caso de Jonadabe, o qual convenceu Amnom, filho de Davi, a possuir sua meia-irmã, algo que culminou no estupro incestuoso de Tamar (2Sm 13.1-22) e no fratricídio de Amnon (2Sm 13.23-36). Assim, o perigo que a sedução das mulheres representa é reproduzido pelos homens aos seus companheiros por outras vias, fazendo com que o sábio tenha de tomar cuidado com todos os seus relacionamentos.[11]

Olhando por esse prisma, o que Salomão quer dizer é que estamos cercados por pessoas que têm capacidade de nos desviar da sabedoria e nos fazer agir como tolos se não estivermos atentos e se não tivermos temor de Deus. Assim, enquanto alguns leitores e comentaristas supervalorizam o fato de o texto falar de “um homem sábio”, mas nenhuma “mulher sábia”, o que passa despercebido é o fato de ele contar “um homem sábio entre mil”. Com isso, ele quer dizer que é raro encontrar alguém realmente sábio que ajude o outro a seguir em frente, aprendendo a sabedoria de Deus e se sujeitando cada vez mais ao seu controle e caráter santos.[12] Mas será que é impossível encontrar uma mulher que seja sábia? Não! Já dissemos que Salomão fala do valor e da importância da “mulher sábia” em Provérbios. Parece-nos que, aqui, a ideia do autor foi apenas dar mais ênfase ao perigo de ser seduzido por uma mulher e ser por ela desviado da sabedoria. Mas a escolha dos números do texto, longe de se tratar de uma fórmula matemática ou estatística, é um alerta de que homens também podem desviar um companheiro. Tudo isso é dito, obviamente, pela perspectiva masculina do escritor, que é um homem que está escrevendo imediatamente para outros homens.[13] Levando isso em conta, torna-se evidente que as mulheres tolas também correm o risco de serem seduzidas por homens e também de serem desencaminhadas por suas companheiras.

Esse quadro leva de modo natural — na verdade, de modo bem mais natural que outras possibilidades de interpretação do versículo 28 — à conclusão final do capítulo (v.29): “Preste atenção à única coisa descobri: Deus fez a humanidade reta, mas eles intentaram muitas astúcias”. Mais uma vez o escritor chama a atenção do leitor, mas não para uma verdade nova e, sim, para uma afirmação paralela e explicativa da que enunciou antes. Em vez de se referir separadamente a homens e mulheres, ele os une em um único termo: a “humanidade”. A palavra hebraica significa “homem”, tanto para designar o ser humano macho como para designar todas as pessoas em conjunto, com sentido de humanidade. Além disso, essa palavra foi usada como nome ao primeiro ser humano criado: Adão. Com tais possibilidades de tradução, podem-se supor muitas coisas sobre o “homem sábio” ou “homem reto”. Contudo, a sequência da frase, desenvolvida na forma do plural, faz com que toda a humanidade seja abarcada pelo texto.

O autor explica que “Deus fez a humanidade reta”, começando, obviamente, pelo homem Adão, a quem criou de modo perfeito, qualificando-o, junto com o restante da criação, como “muito bom” (Gn 1.27,31). Deus criou apenas um homem e, a partir dele, a mulher, ambos sem pecado. Mas ao fazer isso, ele também criou a humanidade, já que deu a capacidade de reprodução ao casal (Gn 1.28) e que já conhecia cada pessoa que viria a viver (cp. Sl 139.16; Ef 2.4,5; Ap 17.8). Isso significa que a queda de Adão e Eva deu início à existência decaída de todas as pessoas, as quais “intentaram muitas astúcias”, ou seja, são guiadas por desejos cobiçosos de pecados que afastaram todos não apenas da santidade, mas também da comunhão com Deus. Não há nenhum ser humano que, por si mesmo, consiga ser “bom diante de Deus” — razão pela qual precisamos de um salvador, Jesus Cristo. Em resumo, o alerta do Pregador é algo mais ou menos assim: “Se você quer ser sábio e bom diante de Deus e não um tolo que se entrega à sedução da loucura, tenha muito cuidado com os pecadores ao seu redor — e todos são pecadores —, mas tenha um cuidado adicional com a loucura da sedução”.

Isso foi dito três milênios atrás, do outro lado do mundo, em uma cultura diametralmente diferente da nossa. Ainda assim, não há palavras mais atuais que alguém possa dizer a outro a fim de alertá-lo sobre os riscos da tolice e sobre a necessidade de ser sábio aos olhos de Deus, segundo os valores do Senhor. O Pregador foi muito sábio ao nos expor tudo isso. Que sejamos sábios para ouvir!

Pr. Thomas Tronco

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[1] Wiersbe, W. W. Be Satisfied. “Be” Commentary Series. Wheaton: Victor Books, 1996, p. 92.

[2] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 7.24, nota 78].

[3] Keil, C. F.; Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament. Peabody: Hendrickson, 1996, vol. 6, p. 737.

[4] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). Ecclesiastes. The Pulpit Commentary. London: Funk & Wagnalls: 1909, p. 165.

[5] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 995.

[6] Merrill, Eugene. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd, 2009, p. 605.

[7] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 268.

[8] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 324.

[9] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 344.

[10] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 100.

[11] House, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida, 2005, p. 608.

[12] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 123.

[13] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 324.

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