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Eclesiastes 7.15-22 – O Erro de se Viver nos Extremos

 

O Pregador falou, no versículo 7, sobre o risco de a “opressão” transtornar o sábio e o tirar do caminho que deve trilhar, passando a agir como qualquer outro tolo. Ele desenvolve essa ideia na sequência do texto e, aqui, prossegue construindo um conceito mais vívido das dificuldades que deixam o homem perplexo, uma visão não mais bonita que a anterior.

A pequena transição só pode ser percebida pelo modo como o autor fala mais uma vez daquilo que viu e observou na vida dos homens (v.15): “Observei em todos os dias da minha vida de fútil que há justo que perece em sua justiça e que há ímpio que prospera em sua impiedade”. Apesar de a introdução da frase servir de transição para um pensamento semelhante, mas com tonalidades próprias, informar que tal observação se deu ao longo de “todos os dias” da sua vida é ressaltar que não se trata de um problema isolado ou momentâneo, mas de algo que faz parte da experiência humana na sociedade. E o problema é fácil de detectar, pois ele o apresenta claramente como sendo a dificuldade de compreensão que temos em face das injustiças do mundo e do modo misterioso de Deus retribuir o bem e o mal nessa vida.

O trecho em que o escritor diz “há justo que perece em sua justiça” pode ser entendido, nesse contexto, como “apesar da sua justiça”. Gramaticalmente, seria até possível se pensar em algo como “por causa da sua justiça”, mas o autor não parece estar pintando a figura de um mártir, mas de alguém que, apesar de ter feito tudo certo, viu suas expectativas frustradas. O trecho que diz que “há ímpio que prospera em sua impiedade” também pode ser traduzido como “que prolonga sua vida em sua impiedade”. Porém, não é o caso de o exegeta ter de escolher entre um ou outro sentido, mas de somar os dois. Assim, o verbo escolhido para a tradução — prosperar[1] — tem em vista que, mesmo com toda injustiça do ímpio e sua merecida punição, o que ocorre é que ele vê suas empreitadas darem certo e desfruta de uma vida longa e próspera.

Quando se olha para um quadro como esse, o perigo é o homem perder a fé na justiça, assim como ocorreu a Asafe, que disse que “pouco faltou para que se desviassem os meus passos, pois eu invejava os arrogantes, ao ver a prosperidade dos perversos” (Sl 73.2b-3). Na verdade, ele ficou tão decepcionado com a visão que teve da sociedade que passou a nutrir noções equivocadas da realidade, nas quais ele tinha a impressão de que os injustos nem sequer se cansavam, tinham preocupações ou ficavam doentes (cf. Sl 73.4-5). Sua revolta chegou ao ponto de ele pensar que “inutilmente conservei puro o coração e lavei as mãos na inocência, pois de contínuo sou afligido e cada manhã, castigado” (Sl 73.13-14). Sua postura só mudou quando, conforme disse, “entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles” (Sl 73.17). Assim, olhando a vida e a morte da perspectiva correta, ele interpretou acertadamente o que via e aquilo que ainda não via, como o juízo de Deus. Ainda assim, é desconcertante ver um servo de Deus, como Asafe, transtornado diante das contradições e injustiças da vida.

Desse modo, o escritor vai direto ao ponto e dá seu primeiro alerta (v.16): “Por isso, não seja extremamente justo, nem excessivamente sábio. Por que você poria sua vida a perder?”. À primeira vista, quase todos estranham o tom do texto, pois parece dizer que não é necessário primar pelo melhor patamar de justiça e de sabedoria, mas não é isso que o autor está dizendo. Algo que chama a atenção no versículo é que o termo que tem o sentido de “ser sábio” é exposto em um grau verbal hebraico não tão utilizado quanto outros — o mesmo grau do verbo, ao final da frase, que dá a ideia de “pôr a vida a perder”. No versículo seguinte, esse grau não é utilizado, mas sim formas verbais mais comuns. Assim, devemos nos perguntar se o escritor escolheu tais palavras por alguma razão especial. O grau verbal em questão (Hithpael) tem, como uma de suas características básicas, um sentido “reflexivo”, ou seja, um ato feito a si mesmo, além de um sentido “passivo”, ou seja, um ato recebido de outrem.[2] Nesse caso, o agente da ação é o próprio leitor, agindo de modo reflexivo, tentando ser sábio para si mesmo, ou aos seus próprios olhos. É certo que o verbo que tem o sentido de “ser justo” não usa esse grau verbal, mas, se usasse, produziria uma ideia diferente do contexto, que seria a de “justificar-se” em vez de “ser justo”.

Por isso, parece que o Pregador está produzindo, com suas palavras, a ideia de uma pessoa que se esforça para ser justa e sábia para si mesma em uma busca que costuma levar a extremos, nos quais a pessoa mantém práticas e condutas que ela considera mais justas e sábias que da sociedade em geral. Alguns resultados comuns dessa visão são o legalismo e o ascetismo. Legalismo é o sistema de vida guiado por regras, as quais, normalmente, a pessoa mesma inventa ou extrai de interpretações erradas ou extremas das Escrituras, e a faz crer que somente seguindo todas aquelas normas ela se torna justa e aceitável a Deus. O legalista acaba por se considerar superior aos outros por causa dessas coisas que faz. O ascetismo, por sua vez, é o modo de vida que considera a disciplina pessoal e o autocontrole, que promovem privações rigorosas tanto ao corpo como ao espírito, a única maneira de se atingir a virtude e a justiça, junto com a aprovação divina. O asceta considera a descontração e o divertimento falta de disciplina pessoal, pois acha que todos os momentos e esforços devem ser empregados em algo mais espiritual e produtivo.

Se, para o legalista, qualquer ato fora das suas regras de vida está errado, para o asceta, qualquer alegria ou prazer é mau. Não é de espantar que o escritor pergunte a quem busca tais coisas: “Por que você poria sua vida a perder?”, ou, em outras palavras, “por que você desperdiçaria sua vida?”. Com isso, o autor ressalta a inutilidade dessas posições exageradas, pois fazem o homem ignorar que há um Deus bom sobre ele que lhe dá presentes e relacionamentos aprazíveis para que os aproveite (cf. 3.13; 5.18; 9.9), mesmo num mundo cheio de futilidades.

Na sequência, Salomão alerta sobre outro perigo, diametralmente oposto ao primeiro (v.17): “Nem, tampouco, seja extremamente injusto ou insensato. Por que você morreria antes do tempo?”. Este versículo, quando isolado do seu contexto imediato, é motivo de ataques à inspiração e canonicidade do livro de Eclesiastes por parte de muitos estudiosos e até de alguns nomes famosos que marcaram a história da igreja cristã, como Martinho Lutero. Segundo dizem os críticos do livro, esse texto conteria um ensino heterodoxo que, supostamente, defenderia que um pouco de mal e de pecado, em quantidades ponderadas, não são reprováveis. Mas não é nada disso que o Pregador está ensinando. Desde o começo desse capítulo, ele alerta sobre os riscos à sabedoria daqueles que não querem viver as futilidades que ele apontou na primeira parte do livro. É isso que ele continua a fazer aqui e o risco em questão é motivado pela visão da injustiça (v.15), que foi também abordada em 4.1-3 e 5.8-9, e que pode desviar o sábio do seu caminho, levando-o a reações extremas.

Por isso, o uso do advérbio “extremamente” não deve ser visto, neste versículo, como permissividade para injustiça e insensatez em pequenas doses. Seu uso, ao contrário, deve-se ao paralelismo com o versículo anterior,[3] que, em conjunto, aponta as reações extremas e equivocadas que alguém pode adotar diante da observação da injustiça no mundo. O extremo, nesse caso, é invejar o sucesso dos ímpios e imitá-los em suas condutas. Em vez de se cercar de regrinhas, como os legalistas, estes abolem completamente qualquer norma moral e ética. Em lugar de evitar alegrias e distrações, como fazem os ascetas, estes mergulham de cabeça em todas as sensações e divertimento que o mundo pode lhes oferecer, não se importando se é certo ou errado, se é bom ou mal, se é justo ou injusto, se é moral ou imoral, se é honesto ou desonesto, se é sábio ou louco. Esses se entregam ao mal com todas as suas forças a fim de aproveitar tudo que puderem arrancar da vida. Aquilo que desejam, buscam sem nenhum filtro ou freio. Diante disso, o alerta, na forma de uma pergunta a respeito de morrer “antes do tempo”, é uma menção às consequências dos atos maus, ilegais e imorais, punidos frequentemente com a morte nos dias antigos.

Para mostrar que nenhum dos dois extremos é positivo ou mesmo aceitável, o Pregador fala de um modo curioso, mas eloquente (v.18a): “É bom que você agarre este conselho e que não largue aquele outro”. É como se alguém precisasse segurar com as duas mãos os pesos capazes de estabilizá-lo sobre uma corda bamba. Se soltar qualquer um dos dois, a queda é certa. A palavra “conselho” não aparece no texto hebraico, mas ajuda o leitor a entender a que o escritor se refere,[4] já que ele diz, literalmente, “agarre este e também não tire sua mão daquele”. O fato é que o Pregador fala que seu aprendiz deve viver sem ignorar o conselho do versículo 17, ao mesmo tempo que cuida de praticar o conselho do versículo 16. Caso contrário, não aproveitará coisas boas que ele deve aproveitar, ou aproveitará coisas na vida que ele não deve. Resumindo, é preciso evitar os dois extremos, frutos de uma visão equivocada a respeito das contradições e dificuldades da existência humana. A ideia fica completa quando é dito que o temor do Senhor é o que mantém tal equilíbrio (v.18b): “Pois aquele que teme a Deus evitará ambos os extremos”. O trecho traduzido como “evitará ambos os extremos” quer dizer, originalmente, “sairá de todos eles”. Deve-se ter em mente que “todos eles”, aqui, é uma referência aos dois extremos desencorajados pelo escritor.

Tendo dito isso, o Pregador oferece ao seu argumento duas fortes razões para que o homem evite reações e posturas extremas diante do problema do mal no mundo, mas busque viver com sabedoria. A primeira razão é que, de posse do “temor do Senhor” (cf. Pv 1.7), a sabedoria encontra espaço e fortalece o homem por mais simples que seja (v.19): “A sabedoria torna o sábio mais poderoso que dez governadores de uma cidade”. O trecho “dez governadores de uma cidade” — ou “dez poderosos de uma cidade” — encontra-se originalmente na forma de “dez governadores que há na cidade”, suscitando uma questão sobre se essa é uma referência a uma instituição específica de administração que o escritor tinha em mente ou se é simplesmente um elemento que segue o estilo proverbial no texto.[5] Independente dessa resposta, o que o Pregador quer enfatizar é a capacidade que a sabedoria dá a quem dela se apropria. Um bom exemplo do que pode um sábio acima dos homens poderosos e influentes é dado em 9.13-18, em que uma cidade é sitiada por inimigos, mas um homem pobre, porém sábio, consegue livrá-la. Apesar de ele não ser lembrado depois do ocorrido, nem para receber agradecimentos, o texto não lamenta a condição daquele homem, mas afirma a efetividade da sabedoria ao dizer que ela é melhor que armas de guerra.

O próximo versículo explica o anterior, mesmo porque o versículo 19, à primeira vista, pode parecer isolado da argumentação anterior. Mas, então, o escritor explica (v.20): “Pois não há um homem justo na Terra que faça o bem e que não peque”. Ao ler esse texto, o leitor quase imediatamente remete sua mente a Romanos 3.23, que diz que “todos pecaram e carecem da glória de Deus”. Outros trechos do mesmo capítulo também vêm à memória, como “não há justo, nem um sequer” (Rm 3.10b) e “não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.12b). De fato, Salomão faz uma boa avaliação da condição da raça humana depois da queda, errando por não fazer o que devia (“que faça o bem”) e por fazer o que não devia (“que não peque”). O homem é injusto tanto por não obedecer as ordens de Deus como por fazer o que ele proíbe. Ao dizer que “não há um homem justo na Terra”, o autor iguala a condição caída de toda a humanidade, assim como Paulo o faz em Romanos 3. Mas a conjunção “pois”, que inicia a frase, demonstra que ela é a explicação do texto anterior. Nesse sentido, o “sábio” é mais poderoso que “dez governadores de uma cidade” justamente porque todos são pecadores,[6] maculados pelo erro, engano, tolice, cobiça e rebeldia. Isso faz com que homens, ainda que sejam poderosos, ajam com insensatez, motivados e guiados por valores distorcidos. Por isso, eles necessitam da sabedoria que vem daqueles que temem a Deus.

A segunda razão é introduzida na forma de uma orientação (v.21): “Não dê atenção a tudo que as pessoas dizem, ou acabará ouvindo seu servo falar mal de você”. O ato traduzido aqui como “falar mal” pode carregar consigo uma conotação mais leve, como “insultar”, ou bem mais pesada, como “amaldiçoar” — uma prática mais comum naqueles dias. Nos dias atuais, em que amaldiçoar não é algo costumeiro, seria como se alguém proferisse graves insultos ou falasse muito mal de outra pessoa. Curiosamente, em um assunto tão sensível — ter um servo maldizendo seu patrão pelas costas —, o autor ensina a não se importar com tais palavras. Ao falar sobre dar “atenção a tudo que as pessoas dizem”, ele certamente está pensando nas mais variadas conversas, mas tem apenas uma delas em mente como alvo do seu argumento. Nessa conversa específica, seu leitor não apenas fica sabendo que não há homem “que não peque” (v.20), como se torna pessoalmente alvo de um pecado alheio que o fere. Em uma situação assim, o primeiro impulso que um patrão agredido pelas palavras do seu servo tem é a de puni-lo duramente, com todos os recursos que lhe estiverem ao alcance. O leitor pode se perguntar, nesse ponto, o que isso tem a ver com o argumento do escritor, mas essa questão é respondida logo a seguir.

Assim como no caso anterior, a razão para evitar os extremos é explicada pelo versículo seguinte, introduzido pela conjunção “pois” (v.22): “Pois você sabe em seu coração que, muitas vezes, você também falou mal dos outros”. Com isso, o leitor é chamado a consultar seu íntimo, onde não é possível que ele minta ou esconda fatos que sabe serem verdadeiros. Dentro do “seu coração” está a certeza, ainda que se negue diante dos outros, de que “muitas vezes” ele fez a mesma coisa que reprovou no outro. O ato aqui é o mesmo: amaldiçoar alguém. Só que, nesse caso, o agente da ação é o próprio leitor. É claro que todos se sentem feridos por críticas ou pelo que as pessoas dizem a seu respeito, mas o escritor diz que não se pode levar isso tão a sério, pois todos agem de modo reprovável.[7] Isso acontece pelo simples fato de que não há pessoa alguma “que não peque” e a amplitude e profundidade do pecado que se instalou na humanidade deixa todos expostos a ações censuráveis, sendo que nem mesmo o sábio está isento de comportamentos extremados em situações contrárias.[8] Ainda assim, só a sabedoria pode conter um pouco do desvio que acomete aos homens, mantendo-os equilibrados, pelo temor do Senhor, em uma posição mais serena e condizente com quem confia, depende e é guiado por Deus.

A que conclusões podemos chegar ao final desse trecho? Podemos enumerar algumas: 1) Temos de nos conformar com a situação de vida em que estamos inseridos, na qual há e sempre haverá injustiças e contradições; 2) Precisamos entender e crer que Deus tem propósitos e modos misteriosos de lidar com a humanidade caída, incluindo seus servos, e devemos nos submeter a ele assim mesmo, sem impor condições à sujeição; 3) Devemos afirmar os conceitos e aplicações de certo e errado, segundo as Escrituras, mas temos de conviver com o pecado, nosso e alheio, sem ser indulgentes com o mal, nem assumir condutas extremas, como legalismo e ascetismo ou como liberalismo e antinomismo; 4) Precisamos evitar circunstâncias que nos impulsionam a reações negativas e exageradas, mas também temos de aprender a lidar com elas, sem supervalorizar os erros alheios ou os nossos sentimentos; 5) Temos de buscar a verdadeira sabedoria, fruto do temor do Senhor, a fim de manter a estabilidade interior e exterior diante das contradições da vida, dos problemas sociais e das intemperanças nos relacionamentos.

Afinal, a vida é cheia de altos e baixos e somente Deus tem a capacidade de nos fortalecer em nossa instabilidade, ignorância e insensatez, dando-nos sabedoria e uma perspectiva correta da nossa existência: “Então, ele me disse: A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza. De boa vontade, pois, mais me gloriarei nas fraquezas, para que sobre mim repouse o poder de Cristo. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando sou fraco, então, é que sou forte” (2Co 12.9-10).

Pr. Thomas Tronco

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[1] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 77.

[2] Waltke, Bruce K.; Yu, Charles. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 424-426.

[3] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 121.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 7.18, nota 62].

[5] Koehler, Ludwig; Baumgartner, Walter. The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament. Leiden: Brill, 2000, p. 1524.

[6] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 324.

[7] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 98-99.

[8] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 574. 

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