Terça, 15 de Outubro de 2024
   
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Eclesiastes 5.8-9 – O Problema da Exploração Social

 

O texto de Eclesiastes 5.8-20, junto com o capítulo 6, aborda a questão das riquezas. Entretanto, os versículos 8 e 9, ainda que tratem de dinheiro e bens, têm uma nuança exclusiva. Desse modo, o trecho pode — e até deve — ser tratado como uma unidade que tem uma ideia completa a transmitir, dadas as pertinentes observações sobre as relações sociais em toda sua escala, desde o rei até o simples e pobre homem do campo. Assim, antes de falar sobre as sutilezas da riqueza na vida, nos desejos, nos objetivos e nos problemas da humanidade, o Pregador observa o modo como a sociedade é estabelecida, de cima a baixo, e como os bens passam de umas mãos a outras. O curioso — e triste — de se notar é que o escritor percebeu que a exploração e a corrupção, de que tanto se falam atualmente, já existiam nos seus dias. Esse trecho, portanto, formado por apenas dois versículos, traz uma mensagem sobre a qual há muito a se dizer.

Seguindo o mesmo estilo que marca o capítulo desde seu início, o autor se dirige ao leitor com conselhos a lhe dar (v.8a): “Se você vir exploração dos pobres e perversão do juízo e da justiça na província, não se espante com tal situação”. Apesar de a frase começar com uma partícula condicional, “se”, o autor não parece estar se referindo a algo incomum que talvez pudesse ocorrer, mas à constatação de algo rotineiro. Por isso, não seria errado traduzir ou compreender esse “se você vir” como “quando você vir”,[1] produzindo a ideia de que tal mal inevitavelmente seria testemunhado pelo leitor. Outra observação é que a palavra traduzida como “exploração” também significa “opressão”, mas “exploração” é preferível aqui porque o contexto desses dois versículos se concentra em oficiais corruptos do governo roubando das pessoas o fruto do seu trabalho por meio da extorsão e da perversão da justiça.[2] Aceitar suborno a fim de perverter a justiça, ou seja, tomar uma decisão oficial injusta em favor daquele que pagou o suborno, era proibido na lei mosaica (Êx 23.8; Dt 16.19; 27.25) e, nos dias de Salomão, em que muitos escritos sapienciais foram produzidos, esse conceito permanecia vigente (Pv 15.27; 17.8,23; 29.4).[3] Ainda assim, esse trecho mostra que a corrupção e a exploração estavam infiltradas na sociedade e causavam prejuízos e sofrimentos justamente aos “pobres”.

Quando o escritor diz “na província”, essa expressão retrata exatamente o que está escrito no texto hebraico, dando a impressão de que o escritor está se referindo a alguma comarca específica. Porém, algumas versões preferem traduzir essa expressão como “em alguma província”, já que Salomão dividiu administrativamente seu reino em doze províncias, sobre as quais ele estabeleceu prefeitos que tinham a função de cobrar impostos, em forma de mantimentos, a fim de suprir a casa do rei (1Rs 7-19). Desse modo, o texto alerta o leitor daqueles dias sobre a grande possibilidade de haver injustiça e corrupção em qualquer uma dessas províncias. Outra possibilidade real e concomitante é que qualquer leitor, de qualquer província, podia tomar quase como certo o fato de que iria testemunhar esse tipo de crime em sua própria região.

Qualquer estudante do Antigo Testamento sabe que as injustiças fizeram parte da história de Israel e foram tema da exortação de vários profetas. Mas o que surpreende aqui é o fato de o Pregador, depois de mencionar essa realidade terrível e inaceitável, aconselhar seu leitor a não se espantar “com tal situação”. A princípio, pode parecer cinismo ou aceitação por parte do escritor, mas é, na verdade, uma reação a algo que ele tristemente observou no mundo “debaixo do Sol”, conforme explicou antes: “Vi ainda, debaixo do Sol, que no lugar do juízo havia maldade. Sim, no lugar da justiça havia maldade” (3.16). As pessoas que eram alvo dessa maldade não tinham a quem recorrer, nem mesmo ao rei, provavelmente por ele ser incapaz de controlar toda a estrutura estatal da nação, pelo que também afirma: “Vi as lágrimas dos oprimidos e não havia quem os consolasse. Vi a violência das mãos dos seus opressores e não havia quem os aliviasse” (4.1b). Assim, talvez com uma ponta de resignação e decepção por não conseguir deter o mal, Salomão prepara seus leitores para o que eles veriam na sociedade.

A segunda metade do versículo é intrigante, pois o Pregador descreve o sistema estatal de cobranças de impostos como se ele tivesse acabado de dizer que o país vivia em plena justiça social (v.8b): “Pois uma autoridade é observada por outra autoridade acima dela e ainda há outras autoridades acima delas”. Essa relação de uma autoridade vigiar outra, levando em conta o verbo hebraico para “observar”, “guardar” ou “vigiar”, na forma do seu particípio, produz a ideia de um “supervisor” ou “intendente”,[4] ou seja, um funcionário superior a quem o outro obedece e presta contas. Trata-se de uma estrutura de funcionalismo público não muito diferente da que nós conhecemos e sob a qual vivemos. A princípio, é uma estrutura formada de modo a impedir a corrupção, já que cada funcionário tem seu intendente, acima dele, vigiando-o. Dizem que A. W. Tozer contou, certa vez, a história de um coletor de bilhetes, em uma estação ferroviária, que era meticuloso ao examinar o bilhete de todos antes de deixá-los acessar a plataforma. Isso, muitas vezes, fazia com que as pessoas perdessem seus trens. Quando os clientes reclamavam, ele apontava para a janela de um prédio com vista para a estação e dizia: “Meu chefe trabalha naquele escritório e eu nunca sei se ele está olhando para mim!”.[5] Essa é uma ótima ilustração de como esse sistema de intendência deveria funcionar bem e proteger o povo de ser explorado.

Contudo, a primeira parte do versículo não apenas assume a possibilidade de tal cadeia de comando não funcionar como deveria, como apresenta esse problema não era raro nem incomum no funcionalismo público dos dias do rei escritor, mostrando, da parte dele, certa resignação. O fato é que essa estrutura complexa, que faz os impostos passarem por muitas mãos, facilita a corrupção e aumenta a exploração. O rei certamente não aceitaria receber menos do que era estipulado, de modo que, para que os intermediários pudessem se apossar de uma pequena parte para si, fruto de corrupção, os montantes cobrados tinham de ir aumentando, de cima para baixo. Assim, em vez de haver um sistema de vigilância no sistema público de cobranças, havia, na verdade, um sistema de conivência.

No final da escala social estava o produtor pobre e indefeso, o qual acabava tendo a obrigação, sob penas severas, de sustentar tanto o Estado como esses desvios indevidos do patrimônio público. Talvez, isso explique um pouco do sofrimento que o homem sente com seu trabalho, conforme exposto antes pelo escritor: “Vi a tarefa que Deus pôs sobre os filhos dos homens para afligi-los com ela” (Ec 3.10). Por vários motivos, incluindo a corrupção e as injustiças que se apropriam indevidamente de parte do proveito do trabalhador, o trabalho se torna um fardo. O fato é que o trabalho pessoal é incapaz de trazer satisfação plena ao homem, não só por suas dificuldades e limitações, já antes discutidas, mas também pela corrupção das autoridades.[6]

Depois de explicar o problema da estrutura social corrompida, o Pregador relata o resultado final do funcionamento dessa cadeia de poder (v.9): “O produto da terra é para todos e até o rei é servido pelo que é produzido no campo”. A palavra hebraica vertida aqui como “produto” significa, literalmente, “proveito”, tendo sido traduzida desse modo em 2.11 e 3.9. Seria correto escrever aqui “o proveito da terra” — várias versões trazem essa forma —, mas essa expressão apontaria para a mesma coisa denominada como “o produto da terra”, porém, de um modo menos claro e fluente. É preciso ter em mente que, em Eclesiastes, a palavra “proveito” descreve o saldo positivo que o esforço humano pode gerar.[7] Quanto ao trecho em que se diz “servido pelo que é produzido no campo”, o texto original traz, literalmente, as palavras que significam “servido pelo campo”.

Diferente de hoje, não havia diferença entre as riquezas do reino e as do rei. O rei assumia todas as despesas públicas, mas também possuía e desfrutava de todas as posses do reino.[8] É claro que esse sistema de impostos, a fim de manter a máquina estatal funcionando, deveria trazer benefícios para a população pagante, como a proteção das fronteiras do país, o acesso a poços e outros recursos comuns que precisavam ser mantidos e regulamentados, a manutenção do bom estado de conservação de aquedutos e diques e o sustento de um exército permanente sempre a postos para deter invasões externas e rebeliões internas. Assim, é certo que a população precisava de um governo central bancado pelo povo para lhe garantir benefícios essenciais. Diante dessa visão, tanto da necessidade de um governo como da existência da corrupção do sistema público, alguns poderiam dizer que o governo pode ser mau, mas é um mal necessário.[9] Contudo, isso certamente não trazia muito consolo ao trabalhador explorado, mas o prendia ainda mais a um sistema que ele não podia evitar.

Além disso, o povo tinha de conviver com a ideia de que a parte que cabia ao rei era muito mais do que o necessário para manter o país funcionando e servia para garantir sua fortuna e seu estilo de vida real, com grande abundância de tudo. Na verdade, Deus alertou o povo, antes de eles terem um rei, o que lhes custaria manter seu monarca. Ele alistaria homens para seu exército e para sua escolta pessoal, instituiria lavradores e ferreiros a seu serviço, requereria mulheres para as tarefas do palácio, ficaria com a melhor parte das produções agrícolas e pecuárias, sustentaria seus oficiais à custa dos trabalhadores rurais e sujeitaria todo o povo como súditos de suas decisões e vontades (cf. 1Sm 8.18). Assim, o povo conhecia bem o sistema em que estava inserido e ainda tinha de enfrentar as injustiças promovidas por líderes corruptos. Essa era uma situação difícil, mas inevitável para aquele povo.

A esse ponto, alguém pode pensar em culpar o sistema monárquico por tais injustiças. Mas, ao longo da história, independente do regime vigente, sempre houve exploração dos fracos e enriquecimento, muitas vezes ilícito, dos poderosos. Nos dias do Império Romano, o Novo Testamento fala da corrupção entre cobradores de impostos (Lc 19.8) e autoridades (At 24.25-26). Quando o império caiu e a igreja romana se tornou um poder mais político que religioso, a ignorância do povo se tornou uma das maiores armas para sua exploração, seja pela obrigatoriedade dos dízimos, cobrados como se fossem impostos, seja pela venda de bênçãos, a exemplo das indulgências vendidas no início do século 16. Quando a monarquia na França extrapolou todos os limites da exploração social, a revolução francesa trouxe grandes esperanças de justiça, mas o que houve, mais uma vez, foi a opressão de um poder despótico que levou à guilhotina milhares de pessoas, a maior parte injustamente. As revoluções socialistas, em lugar de trazerem igualdade social, produziram a pobreza da camada indefesa em benefício de uma elite cada vez mais poderosa e privilegiada, acumulando milhões de mortos para a história. A democracia capitalista, apesar da sua propaganda bonita de poder do povo e de oportunidade para todos, é estruturada basicamente na exploração das classes mais baixas a fim de enriquecer as classes dominantes. Sem falar que todos esses sistemas conviveram com corrupções e injustiças.

A verdade é que, independente do sistema de governo ou de organização social, a exploração dos pobres sempre esteve presente, não por causa das estruturas políticas, mas por ser um dos efeitos da natureza pecaminosa que tomaram o homem depois da queda.[10] Sendo assim, esse é um texto que alerta sobre a necessidade de o homem contar com a providência de Deus ao longo da sua vida de trabalho e de aguardar o dia em que o supremo juiz e administrador divino virá e restaurará o mundo, instalando o bem e punindo o mal.[11] Por isso, os cristãos devem fazer sua parte na sociedade e tentar influenciá-la com seus conceitos bíblicos de justiça e com um testemunho de vida consistente com as Escrituras. Devem ser trabalhadores honestos (1Ts 4.11) que cooperam com os necessitados (Ef 4.28), começando por seus próprios irmãos (Gl 6.10). Devem se sujeitar às autoridades, mesmo conhecendo e sofrendo com suas injustiças (Rm 13.1-7; 1Pe 2.13-17), e orar por seus governantes a fim de que liderem bem e não oprimam o povo (1Tm 2.1-3).

Entretanto, os cristãos não devem colocar na sociedade, nos governos, nos sistemas político-econômicos e nas figuras públicas sua esperança de viver em justiça e paz social. Ao contrário, devem aguardar que Jesus, ao retornar, traga consigo o poder para transformar o mundo todo e mudar o modo de vida das nações, conforme previu o profeta Isaías: “Do tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo. Repousará sobre ele o Espírito do Senhor, o Espírito de sabedoria e de entendimento, o Espírito de conselho e de fortaleza, o Espírito de conhecimento e de temor do Senhor. Deleitar-se-á no temor do Senhor; não julgará segundo a vista dos seus olhos, nem repreenderá segundo o ouvir dos seus ouvidos; mas julgará com justiça os pobres e decidirá com equidade a favor dos mansos da terra; ferirá a terra com a vara de sua boca e com o sopro dos seus lábios matará o perverso. A justiça será o cinto dos seus lombos, e a fidelidade, o cinto dos seus rins” (Is 11.1-5). Por isso, vivamos agora em retidão enquanto aguardamos, todos os dias, o reino de justiça do nosso salvador, o Senhor Jesus Cristo.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 164.

[2] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 5.8 – nota 20].

[3] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 290.

[4] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 684.

[5] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 76.

[6] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 573.

[7] LaSor, William S., Hubbard, David A.; Bush, Frederic W. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2003, 555.

[8] de Vaux, Roland. Instituições de Israel no Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2004, p. 171.

[9] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 312.

[10] Zuck, Roy, opus cit., p. 325.

[11] Spence-Jones, H. D. M. (Ed.). Ecclesiastes. The Pulpit Commentary. London: Funk & Wagnalls: 1909, p. 114.

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