Sexta, 04 de Outubro de 2024
   
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Eclesiastes 2.18-26 – É Possível Trabalhar e Ser Feliz?

 

A próxima parada na jornada do Pregador é a reflexão sobre o trabalho. Deve-se lembrar que todo o livro deixa traços claros de que Salomão o escreveu já com certa idade, talvez até tendo chegado a avançada velhice. Desse modo, ele fala do trabalho e da busca pelos bens como alguém cuja experiência era vasta e que tinha passado a vida dedicando tempo e muito esforço não apenas a obras e construções, mas ao acúmulo de recursos financeiros. Não se trata de um sonhador que tem planos magníficos para o futuro, mas de alguém que já os atingiu e que provou de todos os sabores doces e amargos desse prato. Em segundo lugar, é preciso notar que o texto trata de realidades tão atuais que nos faz estranhar que alguém que viveu há 3 mil anos tenha tido tais experiências e percepções. Isso deve nos fazer concluir que o passado não está tão distante de nós como pensamos e que, deixando de lado a arrogância comum do nosso tempo, temos muito a aprender com os ensinos das Escrituras.

Tendo refletido sobre a morte, tanto dos sábios como dos tolos, no trecho anterior (vv.12-17), ele passa a pensar no seu presente, provavelmente diante da perspectiva do eventual fim da própria vida. Com essas lentes, ele se desgosta de tudo que já tinha produzido (v.18): “Então, passei a odiar todo o trabalho que executei debaixo do Sol, visto que o deixarei para o homem que virá depois de mim”. O termo usado para descrever aqui a atividade laboral se aplica tanto ao ato do trabalho em si mesmo como ao resultado do trabalho, ou seja, seus lucros. Apesar de não haver quem reclame de ter lucros, o desgosto do escritor se dá em função do acontecimento futuro inevitável que envolve deixar para outra pessoa tudo aquilo pelo qual se passou a vida toda trabalhando.[1] Quanto ao verbo utilizado para expressar seus sentimentos diante disso, embora versões empreguem termos mais brandos como “aborrecer”, trata-se de uma palavra forte que retrata o ódio por um inimigo ou a rejeição de algo ou alguém que lhe traz antipatia. Não há como abrandar o sentimento negativo do escritor nesse momento de sua reflexão. Não obstante ser fácil entender esse tipo de sentimento, não é tão fácil compreender sua razão, pois ele a explica pelo fato de ter de deixar tudo que produziu e ajuntou para outra pessoa depois da sua morte.

À primeira vista, não nos parece tão terrível que outras pessoas herdem os bens de alguém que faleceu. Mas o autor viveu em um tempo em que a história de uma pessoa se prolongava durante a vida de seus descendentes, preocupando tais homens com o que ocorreria depois de seu tempo. Entretanto, essa nem é a maior preocupação de Salomão nesse momento. O que parece abalar o escritor é o fato de que ele não usufruiria de tudo pelo que tanto trabalhou, mas outra pessoa que nenhuma parte tinha tido em tal labor e que ele não sabia como desfrutaria dos seus lucros (v.19): “E quem sabe se ele será sábio ou tolo? Entretanto, ele se apoderará de todo o resultado do meu trabalho que executei com sabedoria debaixo do Sol. Isso também é futilidade”. O texto diz, literalmente, que “ele se apoderará de todo o meu trabalho”. Entretanto, Salomão não está desiludido por alguém tomar seu lugar na função de trabalhar, mas por herdar tudo que ele fez sem ter executado nada, de modo que “todo o resultado do meu trabalho” é a expressão que melhor reflete a ideia do escritor.

Algo interessante de se ressaltar nesse ponto é o modo como o Pregador se refere àqueles que herdariam seus bens. A impressão de quem lê o texto pela primeira vez é que ele está pensando em uma pessoa estranha, fora do seu rol familiar — como se falasse, por exemplo, de alguém que se casasse com a viúva depois de sua morte. Entretanto, esse não é exatamente o caso. Na posição real que ele ocupava, era natural que já se preocupasse e estivesse preparando seu sucessor, o qual, normalmente, era o primeiro filho. Assim, seu herdeiro seria sangue do seu sangue, um filho a quem ele certamente amava. Portanto, por que ele veria isso de modo estranho? O desejo normal dos pais não é deixar herança para seus descendentes? As pessoas não se sentem felizes em poder garantir e facilitar o futuro dos seus?

Porém, a óptica pela qual o escritor está avaliando as coisas “debaixo do Sol” vê a pessoa como um ser individual com propósitos completos em si mesmo, ou seja, alguém que precisa encontrar o sentido da sua existência e fazê-la valer a pena para si mesmo. Desse modo, nem a proximidade e o amor que ligam os familiares fazem com que uma pessoa possa viver por meio de outra. Ao contrário, aquilo que experimenta, sente e aproveita ela o faz por si mesma e tudo isso acaba quando morre — essa, obviamente, é a óptica de quem vê, crê e deseja apenas as coisas visíveis e palpáveis “debaixo do Sol”. Quando o escritor olhou para a vida com essa perspectiva, o resultado foi a desilusão completa em relação ao trabalho e seus frutos. Ele percebeu que não era possível encontrar prazer e sentido em bens que não lhe pertenceriam permanentemente. Sob tal olhar, até o próprio filho é um estranho que herdará bens que não são seus.

A situação piora quando Salomão expõe suas dúvidas sobre o caráter e o modo como seu próprio filho agiria depois da sua partida. Seria um sábio ou um tolo? Será que aprenderia mesmo as lições do pai? Colocaria em prática o que aprendeu? Ou será que ele faria péssimas escolhas e colocaria para fora o pior de si? O fato é que esse futuro estava fora do controle do escritor e, ainda assim, esse herdeiro tomaria posse, para o bem ou para o mal, de tudo aquilo que o rei sábio passou a vida se esforçando para produzir e acumular. Isso seria inevitável — e continua sendo inevitável para a experiência de todos os seres humanos. Essa não foi uma percepção nada agradável a Salomão.

O impacto de tais pensamentos sobre o escritor foi muito grande. Em vez de olhar com alegria, prazer e sentimento de realização para tudo que produziu na vida, ele se deixa abater por um grande desânimo (v.20): “Então, eu desanimei de todo o trabalho que executei debaixo do Sol”. O início da frase, que aqui é traduzido como “então, eu desanimei”, é difícil de traduzir literalmente mantendo a ideia que pretende transmitir. A tradução literal seria “e eu me virei para o desespero do meu coração”. Talvez seja a imagem de alguém se virando na cama para o lado escuro do quarto a fim de dar lugar à sua aflição, ou a figura bastante depressiva de alguém que vira seu rosto para que ninguém o veja chorar. E a razão principal para essa visão pessimista sobre o trabalho não está ligada a ele em si ou aos seus bons resultados, mas à falta de garantia de que trabalhador venha, de fato, desfrutar dos seus lucros ou mantê-los.[2] É bem provável que, nem mesmo vivo, ele pudesse agora usufruir plenamente da sua fortuna e dos prazeres para os quais ela abriria as portas.

É claro que a Bíblia está cheia de alertas de que os pecadores são entregues por Deus ao sofrimento. Mas um modo como o Pregador observa a vida em Eclesiastes denota que o sábio também sofre os males pelos quais os ímpios padecem e, nesse caso, a morte tira não apenas a vida igualmente de sábios e tolos como lhes toma os bens e o dão a outros, exatamente como Salomão tem descrito. Por isso, ele pensa não apenas no trabalho do tolo, mas também do sábio (v.21a): “Pois uma pessoa pode executar seu trabalho com sabedoria, conhecimento e habilidade”. Ele mesmo afirmou que juntou sua fortuna por meio de trabalho feito “com sabedoria” (v.19). A ideia aqui de “habilidade” está menos ligada ao conhecimento necessário para tanto — qualidade exposta antes — que da exatidão e precisão como os projetos são executados, tendo bom êxito. É a descrição que se encaixaria na experiência do rei sábio ao longo dos anos de vigor do seu reinado, agindo e governando com a sabedoria concedida a ele por Deus. Mas nem alguém que vive de tal modo consegue se livrar da inevitável perda das coisas pelas quais tanto lutou (v.21b): “Contudo, ele deixará o fruto do seu trabalho a alguém que não trabalhou por ele. Isso também é futilidade e um grande mal”. O termo traduzido aqui como “o fruto do seu trabalho” quer literalmente dizer “sua porção” ou “sua herança”. Significa que, tão logo o homem faleça, toda sua porção deixa de ser “sua”. Segundo o escritor, isso faz parte das coisas fúteis e passageiras da vida.

A ideia central pretendida pelo Pregador fica clara quando ele chega no v.21, sendo desnecessário dizer mais. Mesmo assim, ele continua. É certo que oferece informações adicionais na sequência, mas os próximos dois versículos não parecem ter sido escritos a fim de informar verdades novas, mas colocar em relevo o que foi dito até aqui. Se a figura era apenas um rascunho em grafite, agora ela receberá as cores de uma tela para que o leitor consiga sentir um pouco do peso que encheu o coração do escritor. Para tanto, ele faz uma pergunta retórica (v.22): “Pois o que o homem obtém em todo o seu trabalho e nas preocupações do seu coração em que ele se afadiga debaixo do Sol?”. A resposta óbvia é “nada”, mas sua razão é um pouco misteriosa. É como se o homem nunca tivesse qualquer lucro ou benefício em seus afazeres e todas as suas preocupações fossem inúteis e infrutíferas. Mas será que o sustento de uma pessoa e de sua família não seria algo que se obtém do trabalho? É certo que sim, mas o escritor reserva um espaço adiante para abordar tais aspectos. Por ora, ele olha pelo prisma da incerteza da permanência dos seus bens e se pergunta se o trabalho realmente vale a pena. Ao que tudo indica, ele concluiu que a busca pelos frutos do labor conduzia simplesmente ao desgaste em meio a cansaço e sofrimento.[3]

Para enfatizar tal desgaste, ele lança mão de um versículo forte e emocional, carregado de dor pessoal que transborda de ponta a ponta (v.23): “Pois em todos os seus dias o seu trabalho lhe traz dor e irritação e nem à noite o seu coração descansa. Isso também é futilidade”. Esse é um versículo cuja tradução traz alguns desafios, mas que não afetam suas ideias principais. Uma possível tradução ligaria a “dor” à frequência de “todos os seus dias”, enquanto a “irritação” seria o resultado do “seu trabalho”. Mas o paralelismo do versículo favorece a ideia de que “dor e irritação” são ambos produtos do “trabalho”.[4] Outra tradução possível para os dois termos em questão seria “sofrimento e desgosto”, a descrição perfeita para a completa falta de paz e segurança. E se os dias são assim, à noite tal homem não consegue se desligar dos problemas, nem se sentir seguro de que conseguirá garantir seu futuro. Não há um botão que possa transformá-lo em outra pessoa ou que lhe faça esquecer o cansaço, desgosto e desilusão com coisas que ele não consegue mudar ou alcançar. Nesse ponto, o leitor talvez sinta seus olhos umedecidos como os do escritor.

Mas, então, o versículo seguinte faz o texto se voltar para o lado oposto no que tange à desilusão com os lucros da produção pessoal (v.24a): “Não há nada tão bom para o homem como comer, beber e fazer sua alma ver o fruto do seu trabalho”. Se a perspectiva anterior não via lucro algum no trabalho depois da morte, o Pregador fixa seu olhar no transcurso da vida, quando o trabalho é o meio de subsistência das pessoas. Porém, ele não vê apenas o alimento sobre a mesa, mas a alegria que se forma ao redor dela. A expressão traduzida aqui como “fruto do seu trabalho” quer literalmente dizer “o bem do seu trabalho”, ou seja, os bons resultados dos seus esforços laborais, ou aquilo que se pode aproveitar dele. É como se olhássemos para uma cena em que a família e amigos estão reunidos ao redor da mesa enquanto comem, bebem e conversam, deixando que a descontração, paz e alegria tomem conta deles. É uma cena simples, mas que o Pregador afirma não haver nada “tão bom” assim.

Seria este o segredo: aproveitar as coisas simples da vida? Não exatamente! O que muda a visão sobre o trabalho não é a atitude do trabalhador, mas a perspectiva que se tem da vida (v.24b): “Eu também observei isso e percebi que tais coisas vêm da mão de Deus”. Fica claro que a introdução de Deus na visão sobre a vida — e, nesse caso específico, sobre o trabalho — muda completamente os rumos da reflexão de Salomão e da experiência que engloba a humanidade. Nesse ponto não há uma mudança de situação, mas uma mudança das lentes utilizadas para ver a vida. Significa que, em vez de refletir apenas sobre as coisas “debaixo do Sol”, o escritor pensou também nas coisas “acima dos céus”. O trabalho continua sendo o mesmo, assim como o cansaço, os problemas e as incertezas. O que muda é que a pessoa não vive apenas para isso, mas desfruta, por meio do conhecimento de Deus e do relacionamento pessoal com ele, de uma gama de valores que não estão entre as coisas “debaixo do Sol”, mas que ajudam a viver debaixo dele. A conclusão é que, apesar de o trabalho durante a vida ter o poder de trazer desespero ao homem, ele também pode ser desfrutado quando visto como uma dádiva divina.[5]

Nessa perspectiva, não é o homem que precisa garantir a segurança que não está sob seu controle, nem trazer permanência para as coisas que inevitavelmente passarão. É Deus quem dá, pela sua graça, amor e cuidado, aquilo de que o homem precisa (Mt 6.25-34). É ele que o ajuda, encoraja e consola quando as labutas tiram o sossego e a alegria do trabalhador cansado (Jo 16.7,33). É o Senhor quem produz a paz que não provém das circunstâncias, mas que é fruto da sua ação sobre seus servos (Jo 14.27) e da segurança que se tem no seu amor (Jo 6.39,40) e não no amor do mundo, das posses e das garantias pessoais. Por isso, mais uma pergunta retórica, cheia de significado, é feita (v.25): “Afinal, quem poderá comer ou se alegrar à parte dele?”. A resposta é “ninguém”, pois somente Deus dá ao homem o que ele precisa, ainda que por meio do trabalho árduo. Deus é o provedor do homem. É nele que se deve confiar e não na força do próprio braço. Assim, mesmo diante do pessimismo ligado às realidades da vida e da experiência humana, vê-se claramente que há uma saída dessa vida fútil e sem sentido ao conhecer Deus, vivenciar sua sabedoria e desfrutar do relacionamento pessoal com ele.[6]

Se a perspectiva da vida “debaixo do Sol” vê o mesmo destino e sofrimentos tanto para os sábios como para os tolos, a perspectiva das coisas “acima dos céus” leva em conta não apenas o relacionamento do homem com Deus, mas o tratamento do Senhor dirigido distintamente a justos e ímpios (v.26a): “Pois ele dá sabedoria, conhecimento e alegria ao homem que é bom diante dele”. A ideia de ser “bom diante dele” não é a de ser perfeito, mas de agradar ao Senhor, algo que somente pela fé nele é possível fazer, razão pela qual o autor de Hebreus afirma que, “de fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (Hb 11.6). Por outro lado, aquele que insiste em viver sob os valores “debaixo do Sol” recebe a paga integral que o trabalho debaixo do Sol lhe pode dar (v.26b): “Mas ele dá ao pecador o trabalho de juntar e acumular a fim de entregar àquele que é bom diante de Deus”. Ao falar aqui sobre “trabalho”, o escritor usa a mesma palavra hebraica que utilizou no v.23, em que o descreveu como fonte de “dor e irritação”. Quando se muda de lentes, a desilusão do trabalho volta com toda sua força, sabendo que o que se ajuntou com esforço será dado a outro que não se esforçou por ele. O veredicto é, inevitavelmente, o mesmo que o das outras áreas de reflexão abordadas anteriormente por Salomão (v.26b): “Isso também é futilidade e correr atrás do vento”.

A que conclusão podemos chegar ao final desse trecho tão difícil e enigmático? Devemos abandonar o trabalho? De modo algum! Deus determinou que o homem vivesse pela dureza do trabalho (Gn 3.17-19). Além do mais, podemos nutrir o desejo de utilizar bem os lucros dos esforços a fim de cuidar dos nossos e fazer o bem aos outros. Contudo, mesmo com as melhores intenções, devemos saber que o trabalho é doloroso e não é possível colocar nossas esperanças e alegrias nele. A grande dificuldade é dizer “basta” à busca pelos bens e voltar a atenção a coisas mais importantes, que são a adoração e o serviço a Deus, a dedicação de tempo com as pessoas próximas e o tão necessário descanso.[7] Mas isso só consegue fazer aquele que já se sente completo em Deus e que põe nele sua confiança, paz e alegria. Você tem essa paz e sente essa alegria ou tem sido esmagado debaixo do peso do mundo? Essa resposta o ajudará a perceber se você tem vivido pelos valores que estão “acima dos céus” ou “debaixo do Sol”. Deseje poder ser descrito pelo seu relacionamento com Deus e não pelos bens que juntou na vida.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 295.

[2] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 572.

[3] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 983.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 2.23 – nota 103].

[5] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 325.

[6] Merrill, Eugene. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd, 2009, p. 604.

[7] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 43.

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