Zacarias 14.16-21 – A Adoração Mundial ao Grande Rei
Após o final da guerra fulminante contra os exércitos inimigos do Senhor, o profeta fala a respeito daqueles que não integravam as forças militares (v.16): “Então, as pessoas que restarem de todas as nações que atacaram Jerusalém subirão anualmente para adorar o rei, o Senhor dos exércitos, e para celebrar a festa das Cabanas”. Imediatamente, é possível perceber que Zacarias fala de modo resumido de uma série de acontecimentos bem mais complexos, causando alguma confusão nos leitores. Entretanto, as perguntas criadas pela brevidade das palavras do profeta não ficam sem resposta ao longo das Escrituras. A primeira das duas grandes questões levantadas nesse versículo é a identidade das “pessoas que restarem de todas as nações que atacaram Jerusalém”. Os versículos anteriores são claros ao explicar que a ira do Senhor recairá no momento da sua vinda sobre as forças militares mundiais que invadiram Israel e que se reuniram para exterminar o povo de Deus. Entretanto, o texto não diz que esse juízo se espalharia por todo o mundo, deixando aberto para que Zacarias fale dos gentios que, por não integrarem os exércitos inimigos de Jerusalém, não foram mortos na segunda vinda de Jesus.
O que Zacarias não fala, entretanto, é quem exatamente integra o grupo desses sobreviventes que adentrarão o período do reino milenar, de modo que, à primeira vista, parecem ser todos os civis gentios do mundo. Entretanto, Jesus preenche essa lacuna quando fala do futuro escatológico, conforme registrado em Mateus. Ele disse: “Quando vier o Filho do Homem na sua majestade e todos os anjos com ele, então, se assentará no trono da sua glória; e todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa dos cabritos as ovelhas” (Mt 25.31,32). “Cabritos” e “ovelhas” aqui são referências aos incrédulos e aos crentes, respectivamente, dos dias da Grande Tribulação que permanecerem vivos até a volta do Senhor. O rei os reunirá diante de um tribunal presidido por ele mesmo e os separará uns dos outros. Àqueles que, por sua fé, demonstraram uma vida transformada, ele dirá: “Vinde, benditos de meu Pai! Entrai na posse do reino que vos está preparado desde a fundação do mundo” (Mt 25.34b). Isso quer dizer que tais crentes continuarão vivos e serão súditos do reino milenar do Messias.[1]
Mas aos incrédulos, ele dirá: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” (Mt 25.41b). Essa declaração representa uma sentença de morte, a qual será cumprida imediatamente e impedirá que quem rejeitou a salvação pela fé em Jesus Cristo durante os sete anos da Tribulação entre no período do seu reinado terreno. Sendo assim, o grupo a que o v.16 se refere não é tão amplo quanto pode parecer a princípio, mas engloba apenas os gentios sobreviventes da Tribulação que creram em Cristo. É claro que um grande número de israelitas também se converterá naqueles dias e entrará no reino de Cristo, mas eles não são citados no v.16 porque já estarão habitando na terra de Israel (Jr 30.3; 31.8; 32.37; Ez 36.24) e não no restante do mundo, como os demais.[2]
A segunda questão levantada durante a análise do v.16 é a respeito da celebração “da festa das Cabanas” e da razão pela qual será necessário que os gentios do mundo todo tenham de comemorá-la. Uma dúvida, dentro disso, é se a aliança mosaica, a qual prescreve a referida festa, continuará vigente. Jeremias responde a isso no anúncio de uma nova aliança de Deus com Israel, dizendo: “Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam a minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor” (Jr 31.31,32). Ao dizer “não conforme a aliança que fiz com seus pais”, ele anuncia o término do antigo concerto que, em vez de trazer bênçãos maravilhosas a Israel, trouxe castigos por causa da sua desobediência e incredulidade. No reino milenar, uma aliança diferente e nova será celebrada com Israel, envolvendo um novo trato e a conversão do povo pelo próprio Deus: “Porque esta é a aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: Na mente, lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jr 31.33).
Contudo, essa nova lei, dentro do modo renovado de o Senhor tratar seu povo, manterá algumas características semelhantes à lei mosaica, juntamente com aspectos novos. Exemplo disso é a descrição do templo que será construído naqueles dias e das práticas e adoração que serão ali celebradas, inegavelmente semelhantes em certos pontos, mas completamente distintos em outros em relação às prescrições da aliança mosaica dada no Sinai (Ez 40—48). Assim, em Zacarias 14.16, percebemos a manutenção da antiga “festa das Cabanas” ao mesmo tempo que notamos algumas diferenças marcantes na sua prática. A festa das Cabanas sempre foi uma festa especial para Israel, primeiro por abranger toda a população com suas famílias (Dt 16.14), e, depois, por ser um tempo de sete dias reservado exclusivamente para adoração e meditação na lei — note-se em Lv 23.33-36 a ênfase da ordem “nenhum trabalho servil fareis”. Além do mais, essa festa era uma ocasião especial para os primeiros ouvintes de Zacarias, pois, além de o povo voltar a celebrar com gratidão ao seu Deus provedor, foi também a oportunidade de o povo ouvir a leitura da lei pelo profeta Esdras (Ne 8.14-18), tornando esse um tempo de renovação da aliança.[3]
Outra dúvida que surge nesse ponto é sobre o que os gentios terão a ver com essa lei, visto que a primeira versão dela era de competência exclusiva de Israel. Ainda que com novos contornos, o novo trato será estabelecido “com a casa de Israel e com a casa de Judá” (Jr 31.31). Entretanto, durante o reinado do Messias na terra, os povos também se submeterão ao seu ensino e à sua justiça, de modo que “para ele afluirão todos os povos. Irão muitas nações e dirão: Vinde, e subamos ao monte do Senhor e à casa do Deus de Jacó, para que nos ensine os seus caminhos, e andemos pelas suas veredas; porque de Sião sairá a lei, e a palavra do Senhor, de Jerusalém” (Is 2.2b,3 — ver também Mq 4.1-3). É exatamente por isso que as nações, mesmo sendo gentílicas, tomarão parte anualmente na adoração ao rei divino na festa das Cabanas.
Apesar da voluntariedade dos povos em buscar e servir o rei divino que governará de Sião, o versículo seguinte faz uma afirmação que causa alguma perplexidade (v.17): “Se alguma das famílias da Terra não subir a Jerusalém para adorar o rei, o Senhor dos exércitos, não haverá chuva para ela”. O que causa estranheza, a princípio, é o tom de obrigatoriedade dessa adoração e as sanções que serão impostas a quem não cumprir tal requisito, visto que esse impulso, expresso em Isaias 2 e Miqueias 4, parece ser voluntário. Além do mais, todos os súditos do recém-formado reino serão convertidos ao Senhor. Por que, então, eles precisariam ser obrigados a adorá-lo sob pena de castigo? A verdade é que, apesar de a primeira geração de sobreviventes a viver sob o reino milenar do Messias ser formada apenas por crentes, seus descendentes, assim como os de hoje, nascerão pecadores e precisarão crer no salvador, sujeitando-se a ele.
Porém, a exemplo de hoje, parece que nem todos crerão no Senhor, mesmo que o possam ver e que o diabo não atue entre eles (Ap 20.1,2). É por isso mesmo que, quando Satanás for liberto da sua prisão de mil anos, conseguirá reunir um grande exército para lutar contra o rei Jesus e seus súditos fiéis (Ap 20.7-9). Portanto, convivendo com a fraqueza do pecado, as nações serão obrigadas a ir a Jerusalém por ocasião da festa das Cabanas,[4] algo que alguns farão voluntaria e prazerosamente, enquanto outros o farão pela ameaça de não chover sobre suas terras. Tal requisito terá influência e importância para todas as nações, incluindo aquelas que aparentemente não dependem tanto da chuva como o Egito, razão pela qual o texto se dirige a esse país nominalmente (v.18): “Se os egípcios não subirem, não haverá chuva para eles, mas sim a praga com a qual o Senhor ferirá as nações que não subirem para celebrar a festa das Cabanas”. Alguns intérpretes imaginam que a falta de chuva não seria uma punição real para o Egito, já que ele depende principalmente das cheias do Nilo, mas tanto os ouvintes de Zacarias como os próprios egípcios teriam facilidade em compreender que a cheia do rio se deve às chuvas na região das cabeceiras do Nilo, de modo que o anúncio de punição pela seca é real também para o Egito.[5]
O profeta parece querer chocar os egípcios de um modo singular, pois o anúncio do castigo de não adorar o Senhor anualmente é feito com uso da palavra “praga” — a mesma palavra hebraica utilizada, por exemplo, em Êx 9.14 —, a qual remete a dias terríveis vividos pelo país quando esse se negou a atender a ordem divina de libertar Israel para que servisse seu Deus. Sendo assim, não importa que parte do mundo seja, haverá sofrimento para quem não adorar o rei messiânico nos dias do seu reinado, pelo que o profeta reafirma (v.19): “Este será o castigo do Egito e de todas as nações que não subirem para celebrar a festa das Cabanas”. Assim, todas as nações do mundo servirão ao Messias. Deve-se ressaltar que não se trata apenas de uma participação mecânica em uma festa religiosa, mas da sujeição ao governo desse rei e do reconhecimento da sua divindade.
Outra característica singular daqueles dias será a consagração de tudo a Deus e à adoração do Messias (v.20): “Naquele dia, estará escrito nos sinos dos cavalos: ‘Santo ao Senhor’. E todas as panelas da casa do Senhor serão como as vasilhas que ficam diante do altar”. Esses “sinos” ou “placas” mencionados aqui faziam parte do ornamento dos arreios dos cavalos, sendo que provavelmente havia inscrito nos tais o nome do proprietário do cavalo.[6] Ao gravar o nome do Senhor nesses sinos ou placas e não mais o nome do proprietário, o significado é que o Messias será o dono de tudo e que todas as coisas serão separadas para seu uso e seu culto, assim como o próprio sumo sacerdote era, no passado, especialmente designado para seu serviço (Êx 28.36; 39.30).[7] Outra característica enfatizada por tal inscrição é a pureza de Jerusalém nesse tempo, a qual será tão pura que até os sinos dos cavalos e as panelas (v.21) trarão inscrições que lembrem que tudo ali é santo e adequado ao serviço do Senhor.[8]
Por isso, as panelas utilizadas no cozimento da carne dos sacrifícios usufruirão do mesmo estado de santidade que os utensílios que são usados diretamente no trabalho do templo, integrando todos os participantes em um grande ritual sagrado de adoração a Deus. E isso não ocorrerá apenas com as panelas do templo, mas com todas as panelas do país (v.21a): “E todas as panelas em Jerusalém e em Judá serão santas ao Senhor dos exércitos. Desse modo, todos os que oferecem sacrifícios virão e as usarão para cozinhar nelas”. Isso significa que não haverá distinção entre sagrado e secular,[9] pois o caráter santo de Cristo invadirá todos os aspectos que chamamos de seculares. A relevância dessa menção se estende a todas as áreas da vida humana daqueles dias, influenciando os hábitos, os procedimentos, os objetivos e o sentido da vida das pessoas ao redor de todo o mundo. No que tange especificamente ao culto que será realizado pelos cidadãos de toda a Terra em Jerusalém durante a festa das Cabanas, significa que não haverá falta de utensílios que sirvam ao culto do Senhor, transmitindo aos leitores a ideia da proporção gigantesca dessa festa anual, envolvendo adoradores do mundo todo, os quais sacrificarão, celebrarão e comerão juntos em honra e adoração do rei divino.
Zacarias encerra seu livro garantindo a inexistência de um sério problema que foi visto nos dias de Neemias, nos dias de Jesus e que se tornou uma tônica do falso cristianismo dos dias de hoje (v.21b): “E naquele dia, não haverá mais comerciantes na casa do Senhor dos exércitos”. A palavra traduzida aqui como “comerciantes” é, literalmente, o termo “cananita”. Entretanto, o contexto demonstra que tal uso reflete uma figura que tradicionalmente fazia referência aos comerciantes cananitas, especialmente da região do Líbano, os quais frequentemente faziam comércio não apenas na Palestina como também no próprio templo. Chamar os comerciantes do templo de “cananitas” é um recurso de linguagem semelhante ao que nós utilizamos quando nos referimos a estabelecimentos que vendem bacalhau como “portugueses” e restaurantes de massas como “italianos”, sem que isso represente qualquer tipo de preconceito. Desse modo, os dizeres do profeta garantem que intenções espúrias e gananciosas nunca mais terão parte nos ajuntamentos cultuais. A pureza do culto será plena, como plena é a glória daquele que será adorado em pessoa no meio de Israel e cujo poder será sobre todos os homens de todas as nações. Esse reinado e essa adoração perdurarão por todo o milênio, até que o Senhor faça seu último julgamento e dê início à eternidade.
Essa visão futura, ainda que breve, resume nossas maiores esperanças: a presença do Senhor Jesus, a justiça promovida em todo o mundo, a pureza e alegria do culto e o reconhecimento e sujeição mundial ao senhorio divino. Em vez de ficarmos tristes e desanimados por não termos plenamente tais coisas agora, devemos olhar para mensagens escatológicas como essa a fim de firmar nossa fé, purificar nossos caminhos e perseverar no serviço do Senhor com a certeza de que aquilo que agora é esperança será totalmente real no futuro. Portanto, que nossa adoração, devoção e sujeição sejam bastante reais no presente para a glória daquele que merece plena adoração em todos os lugares e em todas as eras!
Pr. Thomas Tronco
[1] Pentecost, J. Dwight. Manual de Escatologia. São Paulo: Vida, 2002, p. 425.
[2] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1571.
[3] Merrill, Eugene. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 538.
[4] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 793.
[5] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Zechariah. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 364-365.
[6] Spence-Jones, H. D. M. (ed.). Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 160.
[7] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 461.
[8] Waltke, Bruce; Yu, Charles. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2015, p. 944.
[9] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 175.