Zacarias 11.15-17 - A Ação Tola dos Pastores Insensatos
Os últimos três versículos de Zacarias 11 não são independentes do capítulo, mas consequência da rejeição divina em relação ao povo rebelde e sua decisão de não mais pastorear aquele rebanho obstinado (v.9). Entretanto, a representação do oposto a tudo que Deus é como pastor e a pontualidade da aplicação desse parágrafo favorecem um estudo desse trecho isoladamente, sem, contudo, desatrelá-lo do contexto e da mensagem geral do capítulo. Assim, no vácuo do pastoreio divino, o próprio Senhor prevê sua ação de levantar para o povo tolo um pastor insensato como eles, como se lhes aplicasse um pouco do próprio veneno.
Mais uma vez, Deus se dirige ao profeta e lhe dá a ordem de transmitir cenicamente, assim como no v.13, a mensagem dirigida a Israel (v.15): “O Senhor disse a mim novamente: ‘Toma para ti os utensílios de um pastor insensato’”. A maioria das traduções, em lugar de associar o advérbio “novamente” à fala divina, o faz em relação ao ato de Zacarias “tomar para si os utensílios”. Apesar de isso não criar um problema fundamental, o fato é que Zacarias, ao representar um pastor insensato, não estava repetindo nenhuma representação anterior desse tipo — a única representação, além dessa exigida do profeta nesse capítulo, é jogar trinta moedas de prata no templo (v.13), figuração que diverge bastante dessa. Assim, a única coisa que se repete é Deus se dirigir a ele a fim de orientá-lo em sua função profética.
Algo obscuro é o que é descrito como “os utensílios de um pastor insensato”. Os utensílios de um pastor incluíam ferramentas que lhe possibilitassem conduzir em segurança o rebanho. Cajado, vara, ervas medicinais e ataduras deviam ser itens padrão na bagagem de um pastor sábio e responsável. Como o pastor insensato é alguém que se preocupa consigo mesmo e não com o rebanho — segundo o versículo seguinte —, Zacarias deve ter tomado alguns itens que o identificavam como pastor, mas que eram incompatíveis com quem traria de volta o rebanho intacto, talvez levando consigo facas e instrumentos para tosquiar, dissecar e curtir a carne e o couro de ovelhas, dando a ideia de que consumiria o rebanho em lugar de lhe proteger e alimentar.
A razão do teatro que deveria ser protagonizado pelo profeta era o prenúncio de que Deus mesmo, em disciplina à nação rebelde, lhes daria um pastor como aquele representado por Zacarias (v.16a): “Pois eis que eu levantarei um pastor na terra”. Uma interpretação corrente desse texto é que, após a rejeição do Pastor messiânico, o anticristo cumpriria a função desse pastor insensato a quem Israel preferiria em lugar de Jesus.[1] Contudo, assim como no capítulo todo, as identificações são possibilidades inexatas. O Senhor bem pode estar se referindo aqui aos líderes, ou a algum deles em especial, que liderariam a nação até a morte de Jesus ou à destruição de Jerusalém no ano 70. Há também quem sugira se tratar dos romanos que dariam cabo de Jerusalém, mas essa associação não faria jus ao alerta do v.17, o qual parece se dirigir aos líderes dentre o próprio povo. [2] Se não é possível identificar esse pastor a quem o Senhor levantaria — um pastor insensato, segundo a sequência do texto —, o fato é que essa não seria a primeira vez que o Senhor dá ao povo de Israel o tipo de liderança que eles, em seu endurecimento, desejavam. O rei Saul foi levantado sobre o trono israelita em circunstâncias parecidas.
O rei Davi, sucessor de Saul, foi descrito por Deus como “homem segundo o meu coração” (At 13.22), o que quer dizer que Davi era o rei escolhido pelo Senhor segundo as indicações divinas cerca de oito séculos antes de sua entronização, as quais apontavam a tribo de Judá como fonte da casa real de Israel (Gn 49.9,10). Mas, em lugar de Israel esperar que se levantasse o rei segundo o coração de Deus, forçou Samuel a entronizar um rei segundo o coração do povo, um rei que fosse como os reis das outras nações (1Sm 8.5). Já naquela ocasião, o Senhor alertou que tal rei se aproveitaria do povo sem lhes dar a devida contrapartida de um bom rei (1Sm 8.10-18), razão pela qual o anúncio de Zacarias aqui faz parecer que Deus se refere aos maus reis que eles teriam de bom grado ao passo que rejeitariam o Bom Pastor.
A figura do pastor normalmente está associada ao bom pastoreio. Mas não nesse caso (v.16b): “Ele não cuidará das [ovelhas] extraviadas. Não procurará aquelas que fogem. Não tratará as feridas nem alimentará as saudáveis”. Ao contrário do que fazem os bons pastores que defendem com sua vida a segurança do rebanho — algo visualizado no pastoreio literal de Davi, enfrentando animais ferozes que queriam atacar suas ovelhas (1Sm 17.34-36) e em Jesus, o Bom Pastor que dá a vida por suas ovelhas (Jo 10.11,15) —, o pastor insensato não se importaria com aqueles sob sua guarda. Na verdade, esse falso pastor faltaria totalmente com suas responsabilidades, buscando apenas o cuidado de si mesmo e seus próprios interesses.
Como se isso não bastasse, passaria a explorar as ovelhas em lugar de protegê-las (v.16c): “Antes, comerá a carne das [ovelhas] gordas e despedaçará seus cascos”. A ideia é de consumi-las por completo, quebrando seus ossos para devorar sua carne, chegando até mesmo a lhes arrancar as unhas[3] a fim de aproveitar tudo que é possível. A insensatez desse pastor se mostra aqui em sua forma máxima, já que as ovelhas, diferentes de animais exclusivamente de corte, dão mais lucro vivas que mortas. A lã das ovelhas era basicamente a razão de sua criação. O pastor fazia a tosquia e continuava cuidando da ovelha para que desse outra porção de lã algum tempo depois. Esse pastor mostra sua insensatez aplacando sua fome com a fonte de seus lucros futuros.[4] Aplicando essa figura à vida política de Israel, isso significa que a exploração de trabalho, impostos e recursos dos judeus teria lugar em um tipo de ditadura opressiva, algo inaceitável a um bom líder, mas merecido por uma nação que rejeita o bem e escolhe o mal.
A punição da nação por meio dos próprios pastores que escolheu, rejeitando a direção proposta pelo Senhor, fica clara no v.16. Na sequência, Deus se dirige aos pastores maus e lhes dá um temeroso alerta (v.17a): “Ai do pastor inútil que descuida do rebanho”. A ameaça é forte e é expressa na interjeição “ai”. Assim como em Habacuque 2.6-20, o Senhor se vale dessa linguagem para anunciar um severo juízo a ser lavrado e executado por ele mesmo. Embora Habacuque liste vários tipos de pecador que serão julgados, aqui a ameaça se dirige aos líderes insensatos, irresponsáveis, egoístas e opressores do povo, ou seja, àquele pastor que “descuida do rebanho”. Apesar de o parágrafo falar de um pastor ou pastores possivelmente específicos, o alerta serve de modo generalizado não apenas a eles, mas a outras pessoas que exerçam funções similares. David Clark e Howard Hatton fazem uma associação de textos bem interessante que ilustra o crime desses pastores e a razão pela qual eles seriam punidos com severidade, comparando esse texto com Ezequiel 34.5,6 em contraste com João 10.10-15.[5] Com isso, o crime acusado e previsto para punição é a “negligência”. A punição em si é assim descrita (v.17b): “A espada virá sobre seu braço e sobre seu olho direito. Seu braço ficará totalmente seco e seu olho direito ficará completamente cego”. Mesmo sendo essa uma figura, é possível perceber, por sua gravidade, o tamanho do furor de Deus contra o pastor inútil e o nível do temor que deve acompanhar a função do líder.
O texto contém duas aplicações pastorais contemporâneas, uma direcionada às ovelhas e outra voltada aos pastores. Às ovelhas, fica a lição de que a busca por pastores relapsos que façam a vontade do rebanho e não do Senhor gera sofrimento para elas mesmas. Paulo alertou Timóteo de que isso aconteceria de modo crescente (2Tm 4.3). Por isso, as ovelhas que querem ser cuidadas e alimentadas como precisam devem urgentemente procurar pastores que usem os utensílios corretos e que pensem mais no rebanho que em si mesmos. Aos pastores, fica o alerta de que Deus leva muito a sério a função que eles realizam e que pedirá contas do que fizeram com o rebanho que lhe pertence (Hb 13.17). Nesse caso, Pedro previu uma lastimável desvirtuação do cargo na mão de falsos mestres que surgiriam no futuro (2Pe 2.1-3). Por isso, os pastores verdadeiros devem ser sábios, fiéis, temerosos e incansáveis até o dia em que pastores e ovelhas irão descansar eternamente no aprisco celestial.
Pr. Thomas Tronco
[1] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1566.
[2] Spence-Jones, H. D. M. (ed.) Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 121.
[3] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 156.
[4] Matthews, V. H.; Chavalas, M. W.; Walton, J. H. The IVP Bible Background Commentary: Old Testament (electronic ed.). Downers Grove: InterVarsity Press, 2000 [Zc 11.16].
[5] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Zechariah. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 305.