Zacarias 7.8-14 - Antes Tratar as Causas que os Efeitos
A segunda metade do capítulo 7 parece ser a sequência natural da porção precedente, na qual o Senhor faz menção a ensinos transmitidos antes de Judá ser conduzido contra a vontade ao exílio (v.7), de modo que o que vem a seguir (vv.9,10) conteria o teor da pregação do passado. A grande dificuldade é interpretar a introdução do que vem a seguir (v.8): “Então, veio a seguinte palavra do Senhor a Zacarias”. Essa fórmula normalmente dá início a uma nova seção ou a um novo assunto. Entretanto, a ocasião é a mesma, já que não é oferecida outra data para as palavras de Deus daqui para frente — e o assunto também é o mesmo. Desse modo, apesar de os vv.8-14 terem uma mensagem completa, eles devem ser compreendidos como sequência natural da mensagem iniciada por Deus no v.4. Por fim, a intenção desse trecho é lembrar àquela geração as ordens divinas que seus pais desprezaram e as tristes consequências em termos de exílio e desolação advindas da rebeldia,[1] resultando na ação divina de espalhá-los pelas nações.[2]
Deste modo, o Senhor relata sua mensagem dada por meio dos profetas antigos (v.9): “Assim dissera o Senhor dos exércitos: ‘Julgai as causas retamente e agi com amor e compaixão, cada um ao seu irmão’”. O teor do ensino parece remeter à mensagem enfatizada pelos profetas dos séculos 9 e 8 a.C. (Is 1.17; Mq 6.8; Am 5.24), seguida pelos profetas do século 7 a.C., mais próximos da data do exílio (Jr 22.3,15,16; Sf 2.3). Entretanto, o assunto era antigo e estava presente na literatura poética e sapiencial no início do primeiro milênio antes de Cristo (Sl 82.3,4; Pv 31.9). A mesma ideia de se executar julgamentos verdadeiramente justos surge também no período exílico, sendo uma preparação do povo no cativeiro para quando voltasse à terra da promessa (Ez 18.5-9). Mesmo com tantos alertas e repreensões, o povo dos dias de Zacarias ainda não tinha aprendido a lição, visto que o Senhor toca exatamente nesse ponto (v.9), sem falar que Neemias, cerca de setenta anos depois, ainda tem de lidar com a exploração dos pobres pelos ricos (Ne 5). Por fim, é possível perceber que a frequência da pregação sobre a justiça social e as críticas contra a exploração dos fracos são mais frequentes que a exortação devido à idolatria do povo.
Se uma das ênfases do requerimento divino sempre foi a justiça, outra, de mãos dadas com a primeira, é o relacionamento marcado pela bondade e generosidade, aqui descrito como “amor e compaixão”. A primeira dessas palavras — do hebraico hesed — é uma atitude de amor e lealdade que marca relacionamentos dentro da família, do casamento, das amizades e das alianças humanas.[3] Assim, o que Deus exige dos seus servos é que eles se tratem de maneira autêntica e não superficial, além de fazê-lo por meio do amor e da bondade e não de interesses egoístas. A segunda palavra, por sua vez, aponta para a responsabilidade dada por Deus de se compadecerem dos aflitos a fim de ajudá-los e não se eximindo do socorro. No final das contas, era para o povo se tratar como se fosse uma grande e única família, o que personalizaria seu relacionamento e impediria explorações e injustiças.
Infelizmente, nem o povo do passado aprendeu essa lição, nem o daqueles dias, ao que tudo indica. Por isso, o Senhor deixa mais claro o resultado de se obedecer aos preceitos da justiça e do amor (v.10a): “Não oprimais a viúva, o órfão, o estrangeiro ou o pobre”. Viúvas e órfãos eram pessoas que, pela muita ou pouca idade e sem ter quem os sustentasse, tinham extrema dificuldade de levantar seu sustento e passavam grandes necessidades. Por mais absurdo que pareça, havia quem explorasse esses desvalidos. Quanto ao estrangeiro, sua grande dificuldade vinha de estar longe dos seus, daqueles que pudessem socorrê-lo, e em uma terra em que ele não era tratado como uma pessoa munida de muitos direitos. Ainda mais dentro de Israel, onde os estrangeiros não judeus eram considerados impuros. Era fácil se aproveitar de alguém que não tinha quem o apoiasse, nem juízes muito inclinados a fazer-lhe justiça. Essa última dificuldade era também sentida pelos pobres que, em demandas judiciais com os ricos influentes, costumavam ser derrotados, mesmo quando estavam com a razão. Assim, a ordem de praticar a justiça e tratar cada pessoa com amor, lealdade, compaixão e generosidade, impedia que pessoas facilmente exploradas fossem alvos da maldade e do egoísmo dos homens. Na verdade, o sentido disso era tão profundo que até as intenções dos judeus eram avaliadas por Deus, de modo que não era permitido que alguém ficasse tramando modos de levar vantagem sobre os outros ou causar-lhes algum dano (v.10b): “Também, não intenteis o mal em vosso coração, cada um ao seu irmão”. Sobre o que passava na mente das pessoas, as Escrituras mostram que até mesmo imaginar algo mau é condenado e proibido pelo Senhor (Mq 2.1).[4]
Apesar de um ensino não reto e rico, os israelitas simplesmente se recusaram a obedecer ao santo Deus que era a fonte de toda essa instrução (v.11): “Mas eles se recusaram a atender, viraram rebeldemente as costas e se fizeram de surdos para não ouvir”. Se os vv.9,10 continham o ensino do Senhor por meio dos profetas do passado, os vv.11,12 trazem a reação dos homens diante do ensino. Em primeiro lugar, eles não quiseram escutar, ou seja, se recusaram a atender ao que ouviram da parte de Deus. É como se fossem surdos, só que pior: eles podiam ouvir, mas agiam como se nada escutassem, tamanha a rebeldia deles. Outro modo de dizer que alguém “tampou seus ouvidos com a mão”, assim como crianças rebeldes fazem quando não querem ser ensinadas ou corrigidas. Na verdade, os israelitas rejeitaram as palavras de Senhor junto com o próprio Senhor ao lhe darem as costas — literalmente “ombros”. A imagem é muito forte, pois é como se deixassem Deus falando sozinho e fossem embora, dando de ombros para suas vontades e suas ordens.
A avaliação do pecado das gerações passadas continua e, dessa vez, a parte do corpo usada para descrever a insubordinação do povo é o coração (v.12a): “Assim, eles fizeram com que seu coração ficasse duro como um diamante para não ouvir a instrução e as palavras que o Senhor dos exércitos enviou pelo seu Espírito por meio dos antigos profetas”. Desde há muito, o diamante é reconhecido e notabilizado por sua dureza, capaz de ferir outros materiais sem sofrer danos em sua estrutura (cf. Jr 17.1). Apesar de essa rigidez servir como figura de situações positivas (Ez 3.9), nesse caso a menção é negativa ao representar a dureza de coração, apontando para a rebeldia, insensibilidade e falta de disposição do povo em obedecer às palavras do Senhor. Surpreendentemente, surge aqui um vislumbre de uma doutrina que fica clara somente no Novo Testamento: o fato de o Espírito Santo ser a fonte da inspiração da mensagem dos profetas e, consequentemente, dos escritos bíblicos (cf. 2Tm 3.16; 2Pe 1.21).[5] Isso tornava o pecado dos antepassados ainda pior, visto que as palavras que eles rejeitaram não eram de fontes humanas e dos profetas lhes falaram, mas do próprio Deus que moveu seus servos para transmitir o ensino de fonte divina.
A consequência foi inevitável (v.12b): “Por isso, eis que veio uma grande ira da parte do Senhor dos exércitos”. Apesar da paciência de Deus em enviar profeta após profeta para falar às gerações do passado, convidando-as ao arrependimento e à sujeição, chegou o momento em que o Senhor não reteve mais a sua ira contra o pecado. O primeiro modo de derramar seu furor foi, ironicamente, agir como os israelitas que se faziam de surdos (v.13): “Visto que eu clamei e eles não deram ouvidos, então eles clamaram e eu não dei ouvidos, diz o Senhor dos exércitos”. O texto não é claro ao dizer a ocasião do clamor dos israelitas rebeldes, mas isso não é nenhum mistério. Trata-se da ocasião em que os exércitos inimigos vieram contra as cidades de Israel e, apesar do clamor do povo para que Deus os protegesse e libertasse, a invasão inimiga teve sucesso, suas cidades foram invadidas e assoladas, muitos israelitas foram mortos e muitos levados cativos, sem que o Senhor fizesse nada para poupá-los.
O resultado final foi muito além das piores previsões que pudessem ter concebido (v.14): “Ao contrário, eu os dispersei por todas as nações que eles não conheceram e a terra ficou assolada por causa deles, de modo que ninguém passava por ela ou a ela retornava. Assim, eles tornaram a terra desejável em uma desolação”. Em primeiro lugar, os habitantes da terra da promessa foram levados a outras terras e espalhados por diversas nações. Isso ocorreu tanto com o reino do Norte, Israel (722 a.C.), como com o reino do Sul, Judá (587 a.C.). Os que não foram levados cativos acabaram tendo de procurar abrigo em terras distantes a fim de fugir da guerra e da fome, tornando o país que fora tão populoso em uma terra quase desabitada. Por outro lado, o próprio país sofreu com as invasões inimigas, de modo que muralhas, cidades, casas e plantações foram alvos da fúria dos exércitos invasores, tornando não apenas desabitada a terra, mas também sem condições de infraestrutura. O mesmo acontecia nos campos, visto que não havia mais quem os cultivasse.[6] O caos foi tão grande que nem mesmo viajantes faziam pousada nas antigas cidades e aqueles que partiam não tinham condições de retornar e se restabelecer na terra.
Dito isso, a questão do jejum exposta na primeira parte do capítulo perdia o sentido. O que o Senhor deixa claro àquele povo é que não estava preocupado com aqueles rituais de lamento e jejum que os homens haviam inventado. O que ele queria e sempre quis foi que o povo o obedecesse e agisse com justiça e retidão, para com Deus e uns com os outros, cumprindo a lei. Não adiantava nada jejuar e ser injusto. Não tinha valor algum lamentar a destruição do templo e não lamentar os próprios pecados. Eles não deviam jejuar pelos “efeitos” do juízo de Deus, mas tratar com seriedade as “causas” que levaram o Senhor a se enfurecer. E o alerta era inconfundível: como o Senhor puniu severamente as gerações passadas, faria o mesmo a essa geração caso não se arrependesse e não se voltasse de verdade ao Senhor e à sua Palavra.
Essa é uma lição que cai bem aos servos de Deus de todas as épocas, incluindo a nossa. As condições de vida mudaram, junto com os próprios parâmetros de se relacionar com Deus por meio da sua Palavra (Hb 7.12; 8.13). O que não mudou foram a santidade e a justiça do Senhor, assim como suas orientações aos servos para que sejam obedientes, justos, amorosos, generosos e santos. Por isso, podemos esperar ainda hoje ver a paciência e misericórdia de Deus, mas também sua pesada mão sobre aqueles que se rebelam contra suas palavras e sua direção na vida das pessoas. E essa não é uma mensagem apenas dirigida a incrédulos, mas também a seus servos, visto que não mais os condena ao inferno, mas não se furta em discipliná-los como filhos que são (Hb 12.6). Por isso, aprendamos a nos sujeitar ao controle e ao ensino de Deus. Caso contrário, podemos também sentir o peso da sua mão disciplinar: “Porque bem conhecemos aquele que disse: ‘Minha é a vingança, eu darei a recompensa, diz o Senhor’. E outra vez: ‘O Senhor julgará o seu povo’. Horrenda coisa é cair nas mãos do Deus vivo” (Hb 10.30,31).
Pr. Thomas Tronco
[1] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 791.
[2] Zuck, Roy. Teologia do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2009, p. 453.
[3] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 119.
[4] Spence-Jones, H. D. M. (ed.). Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 68.
[5] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1560.
[6] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Haggai. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 195.