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Zacarias 6.9-15 - O Reinado e o Sacerdócio do Messias

 

Logo após o profeta Zacarias ter sua oitava e última visão, Deus fala com ele acerca de uma tarefa bastante significativa, apesar de simbólica. O que divide os comentaristas é o papel desse trecho dentro das visões. Há quem considere os vv.9-15 como sequência da visão dos vv.1-8, ignorando a brusca mudança de linguagem, da figuração, da abrangência e da aplicação da mensagem, além de menosprezar a introdução (v.9) que marca uma nova seção. Por outro lado, há quem pareça simplesmente desligar os vv.9-15 das visões de Zacarias, deixando passar o fato de que ele trata de uma sequência natural de eventos, além do fato de que nada sugere ter havido grande intervalo de tempo entre as visões e a ordem divina de se coroar o sumo sacerdote Josué. Diante dessa dificuldade — e dos muitos obstáculos de tradução do trecho —, ao que tudo indica, a segunda parte do capítulo 6 de Zacarias age como uma conclusão para a mensagem construída passo a passo por meio das visões, servindo também de garantia de um “final feliz” para os servos de Deus devido à sua graça e seu poder.

Isso se inicia, como ocorre em outras partes do livro (Zc 1.1,7; 4.8; 7.1,4,8; 8.1,18), com o Senhor se dirigindo diretamente ao profeta (v.9): “Então, veio a mim a palavra do Senhor dizendo”. O que vem a seguir não mais contém seres, objetos ou pessoas misteriosas que necessitam de interpretação, mas homens reais, vindos do exílio, a quem o profeta devia se dirigir e com quem devia interagir (v.10): “Haja uma coleta dentre os exilados Heldai, Tobias e Jedaías, os quais chegaram da Babilônia, e vai tu, no mesmo dia, à casa de Josias, filho de Sofonias.”. Apesar de haver quem sugira que tais pessoas são apenas representações do culto e do relacionamento com Deus, dados os significados dos seus nomes ao longo do texto, o natural é vê-los como pessoas de destaque que possivelmente lideraram comitivas de retorno de judeus exilados na Babilônia de volta a Judá. Mesmo não havendo nenhum outro nome ou qualquer contagem de exilados, é difícil imaginar apenas três ou quatro homens fazendo uma viagem de retorno do exílio. Além disso, o fato de o profeta receber deles ouro e prata (v.11) indica que ou eles eram homens ricos, o que não é muito comum a exilados em terras estrangeiras, ou eram homens influentes que lideravam comitivas que, juntas, podiam trazer ofertas para o templo e atender ao pedido de Zacarias segundo a orientação de Deus. Além disso, o fato de Josias ser citado como “filho de Sofonias”, apesar de não termos certeza de quem se trata,[1] evidentemente é uma menção a alguém conhecido, respeitado e importante em seus dias.

Não obstante o v.10 conter apenas a ordem de o profeta “coletar” ou “receber”, não é dito o que se deveria coletar, fato esclarecido a seguir (v.11): “Coleta ouro e prata, faze uma coroa e põe-na na cabeça do sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque”. A coleta dos metais preciosos tinha uma função clara: confeccionar uma coroa. A palavra coroa se encontra aqui, em sua forma hebraica, no plural, enquanto no v.14 ela aparece no singular. Há uma discussão se isso se deve a alguma corrupção no texto ou se a coroa era formada por vários diademas colocados uns sobre os outros, mas tais possibilidades não mudam a ideia central de se fazer uma coroação. O que realmente surpreende, e por esse motivo há muitos que defendam que o coroado seria outra pessoa, é o sumo sacerdote receber a coroa feita pelo profeta. O sumo sacerdote Josué era o representante religioso da sociedade judaica daqueles dias, mas o representante político, descendente da linha real, era Zorobabel. Era bastante lógico e esperado que o coroado fosse o príncipe de Israel, descendente de Davi, e não o sumo sacerdote. Por isso, há quem diga que quem foi coroado de fato foi Zorobabel e também quem defenda que duas coroas foram confeccionadas, uma para Zorobabel e outra para Josué. Entretanto, essa discussão é inútil visto que a história nos desvenda que não apenas nenhum dos dois foi feito “de fato” rei, como Judá somente voltou a ter no século 2 a.C. a figura e o ofício de um monarca.

Essa questão recebe uma nova luz mediante a continuidade do texto (v.12): “Então, tu dirás a ele o seguinte: ‘Assim diz o Senhor dos exércitos: Eis o homem cujo nome é Renovo. Ele brotará do seu lugar e edificará o templo do Senhor’”. Tais dizeres expressariam que tipo de cerimônia de coroação seria aquela. Para tanto, é preciso observar o nome oferecido para identificar o rei: “Renovo”. Como dito no comentário de Zacarias 3.8, “renovo” é um broto de árvore e também um título messiânico utilizado por alguns profetas (Is 4.2; Jr 23.5; 33.15). Assim, não era a primeira vez que os israelitas ouviam o termo e já estavam habituados a associá-lo ao Messias prometido pelos profetas pré-exílicos, ao passo que em nenhum outro lugar o sumo sacerdote Josué é associado ao termo, nem é apelidado assim — em Zacarias 3.8 fica clara a distinção entre o sumo sacerdote e o Renovo divino. Além do mais, a sequência contém uma previsão futura que não se enquadrava com a realidade de Josué, em primeiro lugar porque ele já tinha um cargo elevado e não aguardava a oportunidade de uma elevação figuradamente descrita como “brotar”[2] e, em segundo, porque o templo já estava em construção e ele não era o responsável principal pela direção das obras, mas sim Zorobabel.

Apesar disso, é reafirmado que o coroado construiria o templo e deteria em suas mãos a soberania do seu trono, não sendo nem um tipo de “fantoche real” (v.13a): “Ele é aquele que edificará o templo do Senhor, aquele que será exaltado em majestade e se assentará e governará em seu trono”. Diante disso, não devemos olhar para Josué como o detentor das prerrogativas apontadas no texto, mas um representante de quem assumiria tanto a função como a glória do posto real. Nesse caso, longe de ser coroado de fato rei de Judá e assumir as prerrogativas previstas na ascensão do Renovo ao trono, Josué tipifica[3] o próprio Messias e o que ele fará no futuro. Sendo assim, devemos nos perguntar o que significa ser o Messias “aquele que edificará o templo do Senhor”. Para isso, precisamos olhar para as esperanças futuras daquela geração, a qual recebeu do profeta Ezequiel, que atuou na Babilônia entre os exilados, a promessa da construção de um templo e do estabelecimento do culto ao Senhor (Ez 40–48). Essa promessa cria problemas para os estudiosos do Antigo Testamento por ser impossível reconhecer o projeto arquitetônico e os ritos cultuais descritos por Ezequiel em qualquer templo ou tempo já vividos pelos israelitas. Se o povo dos dias de Zacarias visse os últimos capítulos de Ezequiel como algo que se cumpriria no seu tempo, certamente trabalhariam para reproduzir aquela planta, o que não ocorreu. Desse modo, ainda que estivessem em plena obra de construção, mantinham a esperança da vinda de um rei futuro que, além de restabelecer a soberania nacional e territorial, libertando Israel de todos os povos inimigos, também construiria um templo maravilhoso e, segundo esse mesmo versículo de Zacarias, assumiria um poder real e imbatível, cheio de esplendor e glória.

É claro que ainda não se explicou, já que se tratava de uma tipificação, porque não foi escolhido o príncipe Zorobabel para representar o futuro monarca. Porém, essa lacuna é preenchida com o que vem a seguir (v.13b): “E [também] será sacerdote em seu trono e haverá concordância entre os dois cargos”. O uso de Josué como tipo do Messias se devia ao fato de que o “Renovo” não seria apenas rei de Israel, mas também “sacerdote”. A ideia de um “rei sacerdote” já estava presente em Davi e em seus sucessores (Sl 2.2; 110.2,4), mas ela somente se cumpre de modo pleno em Jesus (Hb 5.1-10; 7.1-25).[4] Assim, o que Deus quer transmitir aos ouvintes do profeta é a esperança e a certeza da vinda do rei que não somente assumiria a frente do governo, mas também do culto. É claro que há quem defenda que Josué e Zorobabel seriam coroados e cooperariam entre si. Porém, os livros de Ageu e Zacarias desde o início já demonstram a realidade de tal cooperação. Assim, o que esse texto diz é que a mesma pessoa, o Renovo, seria tanto rei como sumo sacerdote em Israel e, em si, uniria perfeitamente as funções. Nesse sentido, a expressão hebraica aqui traduzida como “concordância”[5], que quer literalmente dizer “conselho de paz”[6], expressa a completa unidade dos cargos real e sacerdotal na pessoa do Messias prometido, de modo que iria reinar com justiça e ser o intermediário da comunhão com Deus.

Se o enfoque da mensagem era um evento futuro que deveria produzir esperança e ânimo no presente, o que dizer, então, da cerimônia em si da coroação de Josué? Segundo a indicação do versículo seguinte, ela agiria como uma ilustração do que ocorreria futuramente e, por meio da existência da coroa, seria também um constante e encorajador lembrete (v.14): “E a coroa será para Heldai, para Tobias, para Jedaías e para o formoso filho de Sofonias como um memorial no templo do Senhor”. O texto hebraico traz o nome “Helem” no lugar de Heldai, mas, dado o claro paralelismo entre os versículos 10 e 14, é de opinião geral que Helem é outro nome ou um apelido do próprio Heldai. Quanto a possíveis significados de “Helem”, caso fosse um apelido, a palavra pode querer dizer “força”[7] ou “sonho”.[8] Quanto a Josias, filho de Sofonias, é aqui chamado de “formoso” ou “gracioso”, talvez outro apelido, como o de Heldai, ou um adjetivo que o qualificava. De qualquer modo, os homens que contribuíram para a confecção da coroa, e obviamente o povo que eles lideravam, teriam um constante lembrete guardado no templo. Esse lembrete, um “memorial”, serviria para sustentar a fé e a coragem do povo no que tinham de fazer, como completar a obra de reconstrução do santuário, e no que tinham de suportar, como o domínio político de outros reinos, a oposição e zombaria de inimigos e o aguardo do tempo de restauração. A visualização da coroa os relembraria de que a monarquia israelita não estava morta e que Deus a revigoraria de modo esplêndido.

Junto com a esperança da vinda do rei, figurava a esperança de retorno do povo exilado e espalhado pelas nações por causa das consequências dos seus próprios pecados (v.15a): “Aqueles que estão distantes virão e trabalharão na obra do templo do Senhor e vós sabereis que o Senhor dos exércitos me enviou a vós”. Apesar de haver quem reconheça nesses dizeres uma indicação de que o templo seria construído por exilados recém-chegados da Babilônia, o fato de as obras estarem nesses dias em pleno desenvolvimento tira o sentido de tal interpretação. O mais provável é que essa obra do templo seja a mesma prevista nos vv.12,13 associadas à vinda e à atuação do Messias. Com isso, uma nova promessa é acrescentada à esperança judaica: o retorno dos espalhados pelo mundo por causa do pecado (cf. Lv 26.39; Dt 28.64-66). Na mente dos judeus dos dias de Zacarias já figurava a esperança, ligada à vinda do Messias, da repatriação dos exilados junto com a restauração espiritual da nação (Ez 36.24-38). O texto de Ezequiel, citado aqui como referência, contém promessas de perdão e purificação e, associado a isso, retorno do exílio, edificação e habitação das cidades abandonadas, prosperidade e abundância. Ao prever tudo isso, diz o Senhor: “Então eles saberão que eu sou o Senhor” (Ez 36.38b). O mesmo ocorre em Zacarias, visto que as ações benéficas previstas para se cumprirem na vinda do Renovo serviriam também de comprovação irrefutável de que ele é o rei divino, pelo que diz “e vós sabereis que o Senhor dos exércitos me enviou a vós”. O pacote é completo: o Messias será rei e sacerdote, purificará e restaurará Israel, trará os exilados de todas as partes do mundo de volta à terra da promessa, edificará um novo templo, reerguerá as cidades destruídas e o povo, então crente, habitará em paz e justiça desfrutando de prosperidade e abundância. Só Deus mesmo para produzir tudo isso.

Contudo, o Senhor não dá tal garantia sem lembrar àqueles homens da aliança a que estavam atrelados e da responsabilidade que tinham diante dela (v.15b): “Isso acontecerá quando vós déreis ouvidos à voz do Senhor, vosso Deus”. A preposição aqui traduzida como “quando” também pode significar “se”. Desse modo, a promessa de restauração seria condicionada à obediência e poderia nem ocorrer. Esse não é o sentido do texto como um todo, nem uma ideia compatível com o caráter fiel de Deus. Na verdade, as palavras do Senhor, ilustradas pela cerimônia de coroação de Josué, eram a garantia segura de que ele enviaria o rei eterno para guiar Israel. Porém, isso não aconteceria sem que trabalhasse no coração do seu povo (Jr 31.31-34). Por isso, uma atitude de duplo impulso deveria ser cultivada entre aqueles homens. A atitude deveria ser de obediência a Deus e os impulsos que a sustentariam seriam de assumirem a responsabilidade de serem bons servos, por um lado, e de dependerem do Senhor para a realização da sua tarefa, por outro. O fato é que Deus não faria nada pela metade e não aceitaria meio compromisso dos seus seguidores.

Não é possível conter uma esperança desse tamanho apenas em uma época e somente dentro de um grupo. A vinda do Renovo terá abrangência mundial sobre pessoas de todas as nações. Sua promessa de retorno para reinar enche também de esperança e consolo todos os que agora o buscam e creem nele. E assim como para os reconstrutores do templo, a esperança futura nos leva ao consolo e ao compromisso presentes por meio da fé no sacerdote real que nos ama e nos sustenta nas dificuldades até ao dia em que nos receberá eternamente para si: “Portanto, visto que temos um grande sumo sacerdote que adentrou os céus, Jesus, o Filho de Deus, apeguemo-nos com toda a firmeza à fé que professamos, pois não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado. Assim sendo, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade” (Hb 4.14-16).

Pr. Thomas Tronco

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[1] Se é o mesmo profeta Sofonias, então Josias, seu “filho” — o que pode querer dizer também “neto” ou simplesmente um “descendente” —, fazia parte da nobreza judaica, já que Sofonias, além de profeta, era de uma linhagem que tinha parentesco com Ezequias, rei de Judá [Wood. D. R. W.; Marshall, I. H.; Millard, A. R.; Packer, J. I.; Wiseman; D. J. (Eds.). New Bible dictionary (3ª ed.) Leicester: InterVarsity Press, 1962, p. 1268].

[2] Dizer que “ele brotará do seu lugar” é, segundo Joyce Baldwin, um trocadilho — lit. “o broto brotará de baixo” — que aponta para o fato inesperado de ele vir de onde não se espera uma vida nova ou uma restauração (cf. Is 53.2) [Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 110].

[3] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 788.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Zc 6.13, nota 12].

[5] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 512, § 4.

[6] Brown, F.; Driver, S. R.; Briggs, C. A. Enhanced Brown-Driver-Briggs Hebrew and English Lexicon (electronic ed.). Oak Harbor, WA: Logos Research Systems, 2000, p. 420.

[7] Thomas, R. L. New American Standard Hebrew-Aramaic and Greek Dictionaries (Updated Edition). Anaheim: Foundation Publications, Inc., 1998, § 2494.

[8] Harris, R. L.; Archer Jr., G. L.; Waltke, B. K. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2005, § 2730, p. 1020.

 

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