Zacarias 6.1-8 - O Poder de Deus que Percorre a Terra
A oitava e última visão de Zacarias, certamente uma das mais complexas dentre as oito, tem estreita ligação com a primeira, tanto por causa da figura dos cavalos como pelo fato de eles partirem pelo mundo como portadores do poder de Deus e veículos da sua soberania sobre a Terra.[1] É possível fazer uma relação mais detalhada entre as visões no que tange à cor dos cavalos — há ainda quem faça a associação entre as cores dos cavalos de Zacarias e as funções dos cavalos de cada cor em Apocalipse (Ap 6)[2] —, mas isso não é necessário e pode ultrapassar a intenção do texto e ser até um ponto de desvio da mensagem central da visão. Apesar das semelhanças entre a primeira e a última visão do profeta, elas abarcam momentos diferentes da administração divina da história e do cuidado do seu povo. Enquanto a primeira visão demonstra que Deus mantinha pleno conhecimento e controle das nações, garantindo com isso a reconstrução do templo pelos judeus,[3] a última aponta para o tempo futuro em que o Senhor vindicará seu povo, abatendo as nações inimigas e trazendo, subsequentemente, o rei prometido para governar o povo da aliança (Zc 6.9-15).
A última visão se inicia com a visualização de uma nova cena diante dos olhos do profeta (v.1): “Novamente, levantei meus olhos e vi: Eis que saíam quatro carros do meio de dois montes, montes que eram de bronze”. Apesar de haver cavalos como na primeira visão, aqui é introduzida a figura de carros ou carruagens. É certo que, ao longo da história dos últimos séculos, as carruagens se tornaram ícones do luxo, da pompa e da riqueza. Entretanto, na época em que Zacarias profetizou, tais carros puxados por cavalos tinham uma marcante função militar, fazendo pender o resultado de muitas batalhas a favor de quem os possuísse em bom número e soubesse manejá-los bem. Enviados como um tipo de esquadrão de elite de grande poder, eles causavam danos nas linhas inimigas assim como tanques de guerra o fazem diante de soldados de infantaria. A figura militar dos carros é adornada pela menção de dois “montes de bronze”. Muitas são as propostas sobre o significado do bronze em tais montes, mas a que parece prevalecer e condizer com a ideia geral e com a presença de carros de guerra é seu uso militar. Assim como o ferro, o bronze era usado nos aparatos militares e promovia uma boa proteção aos soldados. Desse modo, levando em conta que os cavalos vêm da presença de Deus (v.5), a intenção parece ser afirmar o poder e a invencibilidade do Senhor, como se as montanhas fossem os próprios portões dos céus por onde passam seus enviados a fim de conquistar as nações.[4]
A primeira cena é, então, aproximada e não apenas os carros são identificados, mas também seus cavalos, formando um paralelo inegável com a primeira visão (vv.2,3): “No primeiro carro havia cavalos marrons, no segundo carro havia cavalos pretos, no terceiro carro havia cavalos brancos e no quarto carro havia cavalos malhados — todos eles fortes”. Esse texto deixa claro que a associação dessa visão à primeira é limitada e não deve ser superexplorada, principalmente com relação a sentidos ocultos nas cores dos cavalos. A razão para isso é o fato de, em primeiro lugar, os cavalos pretos aqui citados não figurarem entre os cavalos da primeira visão, nem coincidirem as descrições entre os cavalos “malhados” desta com os “baios” daquela — em Apocalipse 6.8, a menção a um cavalo “amarelo” ou “pálido” se aproxima mais dos “baios” de Zacarias 1.8 que dos “malhados” ou “manchados” de 6.3, tornando forçada a identificação dos cavalos dessa visão com os de Apocalipse. Logo, o texto não parece elevar a importância das cores, mas sua função de cavalos como enviados de Deus a terras distantes, rendendo às cores o simples papel de auxiliar o leitor na visualização das comitivas partindo rumo aos destinos ordenados pelo Senhor. Algo notável, ainda no v.3, é o adjetivo “fortes” no final da frase, o qual parece designar não apenas os cavalos malhados, mas todo o grupo, qualificando-os como animais de primeira escolha para uso militar. Essa figura favorece os conceitos da soberania e do poder de Deus e da subjugação das nações inimigas de Israel pelas forças enviadas pelo Senhor — o mesmo termo é usado no v.7 para se referir a esse grupo de cavalos.
Assim como em outras visões, o quadro intriga o profeta e faz com que ele peça explicações que o façam entender o sentido do que vê (v.4): “Então, eu perguntei ao anjo que falava comigo: ‘Que é isso, meu senhor?’”. O anjo intérprete cumpre sua função e dá uma resposta que, apesar de sucinta, é bem abrangente e elimina a necessidade de novos questionamentos (v.5): “E o anjo respondeu a mim: ‘Esses são quatro espíritos dos céus que saem do lugar onde estavam presentes ante o Senhor de toda a Terra’”. Pelo menos três informações importantes são derivadas dessa resposta. Em primeiro lugar, a identificação dos conjuntos de carros e cavalos com “espíritos dos céus”. Apesar de a mesma expressão poder ser traduzida como “ventos dos céus”, o papel deles no texto acaba por lhes render certa personalidade, pelo que é preferível compreendê-los como espíritos, ou anjos que levam juízo às nações — além do mais, a figura de quatro ventos indo pelo mundo dispensaria a visão de carros e cavalos. Em segundo lugar, a origem da sua jornada descrita como “o lugar onde estavam presentes ante o Senhor”, além de reforçar a tese de serem seres angelicais (cf. Jó 1.6; Mt 18.10), transmite a ideia de eles serem comissionados diretamente por Deus para realizarem sua missão. Por fim, ao dizer “Senhor de toda a Terra”, o texto nos exibe a soberania de Deus que, para os judeus dos dias de Zacarias e para os servos do Senhor de todas as eras, constitui a razão da esperança futura de vindicação em relação às perseguições do mundo e de estabelecimento permanente em paz.
A seguir, o itinerário das comitivas é dado pelo profeta (v.6): “[O carro] em que estavam os cavalos pretos saiu para a região do Norte. Os brancos seguiram após eles. Os malhados saíram para o Sul”. O v.6 sofreu certa corrupção nos manuscritos antigos de modo a chegar a nós com uma lacuna a ser preenchida, aqui apresentada entre chaves. Ela se deve ao fato de o versículo começar iniciando com a partícula “que” (’asher), demonstrando que esse não é o início original da frase. O que não se sabe é quanto do texto foi perdido. Uma opção, seguida aqui, é completar a frase com “o carro” a que estavam ligados os cavalos pretos. Outra opção, mais ousada, é entender que um trecho bem maior se perdeu no qual estariam a presença e o itinerário dos cavalos marrons, ausentes nesse texto. Essa não é uma opção nada absurda, porém, é, em boa medida, arbitrária. Em primeiro lugar porque, apesar de haver muito sentido na presença dos primeiros cavalos da lista, ainda assim é preciso supor sua presença e adivinhar o itinerário que eles seguiram. Quem opta por isso, acaba por traduzir o rumo dos cavalos brancos como “Oeste” (lit. “para o mar”, sugerindo o mar Mediterrâneo, limite oeste de Israel), quando nem a Septuaginta, nem a Vulgata Latina — traduções do Antigo Testamento bem mais antigas que o texto hebraico que possuímos — dão margem para tal emenda. A necessidade do rumo oeste é supor que, tendo a partir disso três pontos cardeais — norte (cavalos pretos), oeste (cavalos brancos) e sul (cavalos malhados) —, os cavalos marrons devem ter seguido rumo ao leste. Essa é uma opção arriscada que não faz jus ao método adequado de se tratar as Escrituras, razão pela qual a primeira opção é preferível.
Além do mais, não há nada de errado em dois carros seguirem rumo ao norte, dada a extensão de terra e número de povos localizados naquela direção. Também não é surpreendente faltarem os pontos cardeais leste e oeste, já que a oeste de Israel não há nenhum país, mas sim o mar, e a leste há um grande deserto que divide Israel dos países orientais, razão pela qual raras comitivas se arriscavam a trafegar por ali. Na verdade, para se viajar para o oriente era necessário seguir primeiro rumo ao norte. Desse modo, os cavalos pretos e brancos da visão de Zacarias, seguindo inicialmente o mesmo rumo, poderiam posteriormente se separar e seguirem, já em terras mesopotâmicas, destinos diferentes abrangendo povos diversos — deve-se lembrar que os impérios do Oriente, como Assíria e Babilônia, ao atacarem Israel, vinham com seus exércitos pelo norte.[5] O fato é que a corrupção do texto do v.6 não corrompe a ideia de Deus enviar seus carros de batalha pelo mundo (v.7), sobre os povos aos quais Israel temia. A proclamação da soberania de Deus sobre as nações, assim como na primeira visão do profeta (Zc 1.7-17), permanece intacta.
O texto seguinte reforça a mensagem já exposta, mas não deixa de fornecer novos detalhes (v.7): “Assim, os fortes saíram, ansiosos para seguir, a fim de percorrer a Terra. Então, o Senhor lhes disse: ‘Percorrei a Terra’. E eles percorreram a Terra”. Os conjuntos de cavalos com seus carros de guerra, aqui simplesmente nomeados como “fortes”, partem aos seus destinos demonstrando grande determinação. A figura de cavalos ansiosos para sair nos remete à imagem de cavalos que, além de fortes, são também valentes, acostumados com as batalhas e preparados para sair a qualquer instante. Associado à menção de força, essa descrição transmite o senso de um grande poder destruidor. Por outro lado, se o comando de Deus era até agora implícito na menção ao ponto de partida da corrida dos cavalos, agora se torna explícito quando o Senhor ordena a missão e seus servos a cumprem cabalmente com obediência e determinação. Apesar de a palavra “Senhor” não constar no texto hebraico, a natureza da ordem e o resultado da missão (v.8) tornam clara a identificação de Deus como o interlocutor dos vv.7,8.
Dada a ordem aos cavalos, o Senhor se volta ao profeta e lhe dá um vislumbre do resultado da missão para a qual acabara de enviar seus servos (v.8): “Então, ele gritou a mim e me disse o seguinte: ‘Vê! Os que saem para a região do Norte fizeram assentar meu Espírito na terra do Norte’”. O fato de ele gritar pode significar que a mensagem que ele traz é algo que deve ser bradado e proclamado a todos (cf. Jn 3.7),[6] ou , simplesmente, como parte da cena, é dito por ele à distância, de onde estava comandando seus velozes e valentes cavalos. Não sendo exatamente esse o principal obstáculo à interpretação do versículo, podemos apontar três dificuldades que têm dado margem para um grande número de teses a respeito do sentido do texto. A primeira é onde exatamente é o ponto ao qual se faz referência como sendo a região do Norte. Muitos países são localizados ao norte de Israel, desde aqueles que no passado foram fontes de sofrimento para Israel, como Aram (atual Síria), mas que nos dias de Zacarias não eram tão significativos, até países futuros que desempenhariam um papel militar de destaque como inimigos de Israel (Ez 38.15,16; Jl 2.20).[7] Zacarias já havia se referido à terra do Norte apontando o juízo sobre os locais em que os israelitas foram exilados e de onde deviam fugir (Zc 2.6), tornando, obviamente, Babilônia como a nação que primeiro vinha à mente diante de uma mensagem como essa. Entretanto, levando em conta que o Senhor se refere a uma ação que fará no futuro, a Babilônia e as terras do Norte devem representar as nações que se tornam opositoras dos israelitas e que, lutando contra eles, serão abatidas poderosamente pelo Senhor (Ez 38–39).[8]
A segunda dificuldade é definir de quem é o “espírito”. Como dito anteriormente, a ordem dada aos cavalos demonstra autoridade e propósito compatíveis com a pessoa do Senhor, razão pela qual a tradução aqui foi feita com letra maiúscula, apontando para o “Espírito” de Deus. Possibilidades ligadas ao espírito do anjo intérprete ou de outras pessoas ou realidades fogem ao sentido do contexto. Por fim, a última e, talvez, a maior dificuldade, é interpretar o resultado da ação dos enviados rumo ao Norte. “Fizeram assentar meu Espírito” também pode ser traduzido como “deram paz ao meu Espírito”. A primeira possibilidade — assentar — produz a ideia de sucesso na conquista militar, revelando o poder, a soberania e o domínio do Senhor sobre o mundo. A segunda — dar paz — seria, entre outras propostas, o resultado de Deus ter executado completamente o juízo previsto para as nações ímpias, de modo que, ao se completar a tarefa, a ira do Senhor é apaziguada.[9] Na verdade, é muito provável que os dois sentidos sejam concomitantes no texto e devem encher de esperança aqueles que aguardam a restauração futura a ser promovida após o juízo divino. Para os judeus dos dias de Zacarias, significava que eles deviam manter a coragem e a esperança enquanto trabalhavam, mesmo diante da oposição, na reconstrução do templo e sabendo que eles ainda teriam de servir a um país estrangeiro sem poder desfrutar de soberania nacional. Para um povo com tantos percalços, a promessa de vindicação e de restauração agia como uma injeção de ânimo.
Felizmente, essa é uma esperança que é dada também à igreja de Cristo, afirmando que, nos dias finais, os inimigos perseguidores do povo de Deus, intitulados figuradamente como “Babilônia”, serão abatidos e seu mal será punido: “E um forte anjo levantou uma pedra como uma grande mó, e lançou-a no mar, dizendo: Com igual ímpeto será lançada Babilônia, aquela grande cidade, e não será jamais achada” (Ap 18.21). Se isso parece ter relação apenas com os maus, sem produzir qualquer fruto sobre aqueles que pertencem a Deus, basta notar a sequência escrita pelo apóstolo João: “E, depois destas coisas, ouvi no céu como que uma grande voz de uma grande multidão, que dizia: Aleluia! Salvação, e glória, e honra, e poder pertencem ao Senhor nosso Deus” (Ap 19.1). Essa não é apenas a nossa esperança. É também, pela graça do Senhor, o nosso futuro.
Pr. Thomas Tronco
[1] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1557.
[2] Unger, Merrill F. Zechariah. Grand Rapids: Zondervan, 1962, p. 102-103 In Barker, Kenneth L. “Zechariah” In The Expositor's Bible Commentary: Volume 7. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1985, p. 637.
[3] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 787.
[4] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 106.
[5] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Haggai. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 164.
[6] Perowne, T. T. Haggai and Zachariah with Notes and Introduction. Cambridge: University Press, 1890, p. 95.
[7] Joel 2.20 pode ser uma referência a um ataque futuro assim como, mais provavelmente, um menção à Assíria ou à Babilônia como instrumentos de punição divina (722 e 587 a.C., respectivamente).
[8] Uma análise geográfica dos locais citados por Ezequiel (38.1-6) como agressores futuros de Israel em um ataque frustrado pelo Senhor localiza a maioria dos países alistados justamente ao norte de Israel: Rússia (Gogue e Magogue), Irã (Pérsia), Sudão (Etiópia), Líbia (Pute), Ucrânia (Gômer), Turquia e Síria (Togarma). O fato de nem todos ficarem ao norte (Sudão e Líbia ficam na África e vêm à Israel pelo sul), não impede, dado que a maioria e/ou a liderança pertencem a países setentrionais, que essa coligação de nações seja chamada de terra do Norte.
[9] Spence-Jones, H. D. M. (ed.). Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 58.