Zacarias 1.18-21 - O Contra-ataque do Senhor
Nos seus dias de glória, Israel chegou a ser um modesto império, exercendo influencia e recebendo tributos de nações ao redor durante o reinado de Davi e Salomão. Entretanto, depois da divisão do reino em dois países – Israel ao norte e Judá ao sul –, o povo se viu muitas vezes oprimido por nações vizinhas. Porém, suas derrotas marcantes ocorreram quando a Assíria destruiu Samaria (722 a.C.), capital do reino do norte, exilando os israelitas em Hala, cidade localizada a nordeste de Nínive (2Rs 17.3-6), e quando os babilônicos destruíram Jerusalém (587 a.C.), capital do reino do sul, trasladando seus moradores para a Babilônia (2Cr 36.17-21). A segunda visão do profeta Zacarias traria à mente dos judeus esses tristes momentos da sua história, mas não para os desanimar. Ao contrário, a intenção da visão era produzir coragem e esperança, tendo como base a certeza da punição dos inimigos.
Ao que tudo indica, a visão tem lugar logo após a anterior, dada a ausência de uma introdução que ofereça detalhes introdutórios ou a data. Zacarias simplesmente relata o que ocorreu (v.18): “Eu levantei os meus olhos e vi: Eis que havia quatro chifres”. É provável que a visão desses chifres envolva também os animais que os possuíam, como touros, os quais podem ser afugentados (v.21).[1] A menção específica aos chifres se deve ao uso metafórico desses que, interpretados em relação à situação real de vida naqueles dias, representava o poderio militar de um país.[2] Assim como o chifre é a poderosa e perigosa arma de um touro, os recursos militares de um rei e de uma nação constituíam o poder que tinham de abater e subjugar povos vizinhos. Por isso, uma invasão e destruição militar costumava, na época, ser representada pela figura de um touro ao “levantar o chifre” (v.21), movimento usado por esses animais para desferir seus golpes fortes e destroçadores. Há quem interprete a ação de levantar o chifre como um ato de arrogância assim como dos homens que levantam suas cabeças em posição de desafio, mas isso não condiz muito com a figura do touro que, de modo contrário, desafia os inimigos e demonstra poder abaixando a cabeça e ficando em posição de ataque.
A visão de Zacarias parece ser imóvel. Os chifres não estavam fazendo nada, de modo que o que intriga o profeta não é a função deles, mas sua identidade (v.19): “Então eu perguntei ao anjo que falava comigo: ‘O que é isso?’. E ele me respondeu: ‘Esses são os chifres que espalharam Judá, Israel e Jerusalém’”. A resposta aponta para uma ação passada dos chifres: o espalhamento do povo de Judá e de Israel e, em especial, a cidade de Jerusalém — local onde Zacarias está pronunciando sua mensagem. Quanto à identidade dos quatro chifres, algumas sugestões oferecidas pelos teólogos ao longo da história são “assírios, babilônicos, medos e persas” ou “assírios, egípcios, babilônicos e medos-persas” — se pensarmos nos povos que os haviam subjugado até aqueles dias —, ou ainda “babilônicos, medos-persas, gregos e romanos” — se pensarmos na interpretação usual a respeito do sonho de Nabucodonosor interpretado por Daniel (Dn 2). As primeiras possibilidades vislumbrariam o cumprimento da segunda visão de Zacarias imediatamente na forma de proteção contra os inimigos da reconstrução do templo,[3] enquanto a última possibilidade, o cumprimento escatológico que melhor condiz com o livro de Zacarias e com a ideia da própria visão de abatimento do poder das nações. Outra possibilidade seria a sucessão de impérios — sucessão já iniciada naqueles dias —, de modo que o mesmo reino em determinada ocasião seja um dos “artífices” dessa visão, tomando o lugar de outro, para depois ser um dos “chifres” a ser abatido pelo seu sucessor. Uma possibilidade adicional é a de os quatro chifres serem as nações vislumbradas por Daniel enquanto os quatro artífices sejam o próprio Messias, com a dificuldade de que as nações deveriam ser apenas aquelas que, até os dias de Zacarias, “espalharam Judá, Israel e Jerusalém”.
O fato é que nenhuma dessas possibilidades consegue ser completamente satisfatória ou suficientemente abrangente, mesmo porque o texto não avaliza nenhuma delas. Por isso mesmo, há que se considerar que o número dos chifres pode não querer apontar para nações agressoras específicas, mas para a totalidade dos inimigos do povo de Israel que se levantam para guerrear com eles e tentar frustrar o que Deus prometeu lhes fazer. Nesse sentido, não é impossível que número quatro seja entendido como uma referência à “completude” ou que represente os inimigos dispostos nas quatro direções (Norte, Sul, Leste e Oeste).[4] De qualquer modo, considerar a descrição com uma referência geral também nos isenta de ter de definir a identidade dos artífices (v.20) e a razão do seu número, entendendo simplesmente que eles são quatro, no texto, para se contrapor aos inimigos e os derrotar com um poder que lhes supera a força.
Apesar de já termos comentado sobre os contrapontos dos chifres, eles só surgem no versículo seguinte (v.20): “Em seguida, o Senhor me mostrou quatro artífices”. Muitas versões traduzem a palavra “artífice” (harash) como “ferreiro”. “Artífice” é a palavra genérica para um artesão sem lhe definir a especialidade, podendo ele trabalhar com madeira, pedra ou metal.[5] Desse modo, o próprio ferreiro é um artífice, sem, contudo, que todo artífice seja um ferreiro. Por isso, deve-se entender aqui que nem a palavra especifica um artífice de metais, nem a figura exige ou combina com a função. A única razão para se entender que os artífices aqui são ferreiros é interpretar que os chifres da visão são feitos de ferro, o que é extrapolar o texto. Isso talvez se faça a partir da comparação com Miquéias 4.13 que associa o chifre ao ferro, porém, em outra ocasião, com outra nação e com uma intenção de representar a durabilidade de Israel contrária à transitoriedade das nações inimigas presente no texto de Zacarias. Apesar de o ferro ser um fator fundamental na fabricação das armas de guerra daquele contexto, a figura da visão representa os exércitos inimigos de Israel como touros ferozes armados com seus próprios chifres — mesmo que os touros não sejam citados, a ideia do poder de um chifre é dependente do seu uso em um ataque. Sendo assim, o artífice em questão, capaz de produzir terror nos chifres (v.21), deve ser entendido como aquele que trabalha e esculpe cornos bovinos. O terror vem do fato de ser necessário que o touro seja abatido e o chifre extraído da sua cabeça para esse artesão efetue seu trabalho — uma ótima figura para a ideia de Deus abater as nações inimigas de Israel e Judá.
Dessa vez, Zacarias se preocupa menos com a identidade dos artífices que com sua função (v.21): “Então eu perguntei: ‘O que esses vieram fazer?’. Ele respondeu o seguinte: ‘Esses são os chifres que espalharam Judá de modo que homem algum levante sua cabeça. Mas vieram esses [artífices] para os aterrorizar e para expulsar os chifres das nações que levantaram o chifre contra a terra de Judá para a espalhar’”. A pergunta de Zacarias é intrigante, pois demonstra uma percepção de que algo ocorreria. Se os chifres representavam ações passadas, o profeta percebe que os artífices estavam ali para executar algo iminente.[6] A resposta demonstra que o abatimento poderoso das nações inimigas não era gratuito. Quando essas nações “espalharam” os moradores de Judá — e de Israel (v.19) —, o resultado foi que homem algum pôde levantar a cabeça. Isso tanto aponta para a impossibilidade que o povo teve de resistir os inimigos como para a condição humilhante a que foram sujeitados. O texto deixa transparecer uma força excessiva e um tratamento cruel desnecessários em uma conquista militar que, na verdade, acabou por agravar a ira do Senhor contra os dominadores (Zc 1.15). Assim, quando o Senhor repete (cf. v.19) o que os inimigos fizeram a Judá, essa declaração tem o tom de uma sentença judicial.
A ideia final é que, como resposta ao domínio estrangeiro cruel e como ação defensiva em relação ao seu povo, o Senhor enviaria seus artífices para “aterrorizar e para expulsar os chifres das nações”. Nenhum dos inimigos de Israel, cujas ações lhe trouxe sofrimento e humilhação, jamais foi fraco ou covarde. Entretanto, a ação prevista por Deus nessa visão pinta o quadro de uma retaliação com poder tal que mesmo os mais poderosos inimigos seriam tomados de pavor e inexoravelmente vencidos. O caráter permanente da expulsão dessas nações não é declarado, mas tal declaração nem é necessária. Está claro que o abatimento seria definitivo, o que volta novamente os nossos olhos para o futuro e para o resultado dessa ação na forma de Israel e Judá não apenas vindicados pelo mal que receberam, mas plenamente restabelecidos (Jr 30.3; Ez 36.23-36). Nem é preciso argumentar a respeito dos efeitos dessa mensagem sobre a coragem, o ânimo e a esperança dos judeus diante da tarefa tão árdua que tinham de realizar e diante de ameaças tão temíveis que tinham diante de si.
Essa visão nos lembra de verdades que nos são úteis ainda hoje. Nós também, como povo de Deus separado para sua glória e que luta para se santificar e agir de modo a honrar e anunciar a mensagem do nosso Senhor, sofremos ao ver um mundo imerso nas trevas, na devassidão e na injustiça. Assim como o escritor do Salmo 73, nós também ficamos estupefatos com a maldade crescente e principalmente com a impunidade dos injustos. Como aquele salmista, também corremos o risco de desanimar e de achar que os maus nunca serão punidos pelo dolo das suas ações. Entretanto, a visão de Zacarias nos lembra que o Senhor é Deus sobre justos e injustos. Aos justificados pela fé em Cristo, ele tem reservado promessas de cuidado e de bênçãos futuras que nem podemos compreender totalmente por enquanto. Mas aos injustos, o Deus da justiça reserva suas sentenças condenatórias a serem cumpridas temporalmente, por meio de eventuais inversões das condições de vida, e eternamente, por meio da condenação definitiva do pecado dos incrédulos. Saber disso não diminui nosso sofrimento quando somos perseguidos e injustiçados por servir o Senhor Jesus Cristo, mas certamente nos consola por sabermos que temos um protetor que nos ama, nos encoraja a continuarmos firmes e nos enche de esperança de um dia, glorificados, habitarmos para sempre com aquele que nos preparou morada aos seu lado.
Pr. Thomas Tronco
[1] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, 82.
[2] Barker, Kenneth L. “Zechariah” In The Expositor's Bible Commentary: Volume 7. Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1985, p. .
[3] Um dificuldade óbvia dessa interpretação é a visão ter o caráter de uma promessa a ser cumprida quando, na verdade, parte dela já não poderia mais ser levada a cabo dado o fato de que a Assíria já fora abatida pela Babilônia e a Babilônia, pela Medo-Pérsia. Outra dificuldade é que nem todos os impérios que se sucederam são marcados pela ação de “espalhar” ou exilar os israelitas, ação historicamente marcante dos assírios, babilônicos e romanos, mas não dos medos-persas ou dos gregos.
[4] Spence-Jones, H. D. M. (ed.). Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 4.
[5] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1552.
[6] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Zechariah. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 101.