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Zacarias 1.7-17 - O Zelo de Deus por Seu Povo

 

Esse texto contém a primeira das oito visões de Zacarias, a qual tem como cerne a figura de vários cavalos e o relatório que prestam sobre as nações, com a finalidade de garantir que Deus estava no pleno controle dos acontecimentos e do destino das nações.[1] As oito visões de Zacarias, a maioria delas acrescidas de oráculos que explicam seu sentido, estão assim divididas: 1.7-17(primeira), 1.18-21(segunda), 2.1-13 (terceira), 3.1-10 (quarta), 4.1-14 (quinta), 5.1-4 (sexta), 5.5-11 (sétima) e 6.1-15 (oitava). Elas têm como função encorajar os judeus na tarefa de reconstrução do templo, garantindo a eles as bênçãos de Deus para o seu presente e para o futuro. Essa seção é iniciada com a ocasião em que o profeta teve tais visões (v.7): “No vigésimo quarto dia do décimo primeiro mês — o mês chamado Sebate — do segundo ano de Dario, veio a palavra do Senhor ao profeta Zacarias, filho de Berequias, filho de Ido, nestes termos”. “Sebate” é o nome babilônico do décimo primeiro mês do calendário usado entre eles,[2] de modo que o dia em questão corresponde a 15 de fevereiro de 519 a.C., três meses após a primeira mensagem de Zacarias (Zc 1.1-6) e dois meses após o último pronunciamento de Ageu. Essa parece ser a data em que o profeta teve todas as oito visões, sendo suprido, assim, de material suficiente para incentivar e encorajar o povo nos quatro anos que ainda restavam para se concluir a obra do templo.

Durante a noite, mas não dormindo, Zacarias tem a visão que relata no livro (v.8): “Tive uma visão durante a noite. Eis que um homem estava montado sobre um cavalo marrom. Ele estava parado entre as murteiras que havia no vale. Atrás dele havia cavalos marrons, baios[3] e brancos”. Muitas versões trazem a descrição da cor do primeiro cavalo como “vermelha”. Apesar de a mesma palavra hebraica também significar “marrom”, “castanho” ou “pardo”,[4] a tradução possível usando o vermelho não deve nos fazer imaginar um quadro surreal, fora da realidade que conhecemos, mas uma referência que ainda é usada nos nossos dias aos animais amarronzados. Desse modo, a visão evoca um cavaleiro em condições normais. O que o torna singular, no decorrer do texto, é sua identidade descrita como “anjo do Senhor” (vv.10,11). A respeito das “murteiras”, trata-se de arbustos típicos de beiras de rios, muitos dos quais atravessam as partes mais baixas de um “vale”. Apesar de haver muitas sugestões sobre o significado desse vale como sendo aquele defronte a Jerusalém ou uma referência a um mito antigo no qual a casa dos deuses era localizada em um vale, a ausência de explicação e aplicação para o local aqui descrito parece indicar apenas um ponto natural de encontro e de descanso de uma comitiva. Quanto às diversas cores dos cavalos junto ao cavaleiro principal, elas produzem a ideia, na mente do leitor, de um grupo grande e não de uns poucos animais. Dado que eles prestaram esclarecimentos sobre sua missão (v.11), é possível — mas não obrigatório — que tais animais estivessem sendo montados por outros cavaleiros, os quais seriam os reais autores do relatório.[5]

Zacarias, então, entra em cena (v.9): “Então, perguntei: ‘Quem são esses, meu senhor?’. E o anjo que falava comigo me respondeu: ‘Eu te mostrarei quem são esses’”. Esse “anjo que falava comigo” não é a mesma pessoa montada no cavalo marrom, mas é um mensageiro do Senhor a fim de ajudar Zacarias a compreender as visões (Zc 1.9,13,19; 2.3; 4.1,4,5; 5.5,10; 6.4). Dando seguimento, esse anjo parece fazer voltar novamente os olhos de Zacarias para a visão, onde a resposta é dada pelo cavaleiro principal (v.10): “Então, respondeu o homem que estava parado entre as murteiras, dizendo: ‘Esses são os que o Senhor enviou para percorrerem a Terra’”. A figura de cavalos enviados por todo o território era uma prática comum no controle de um reino ou um império. A busca por informações recentes garantia a supremacia real e militar de um soberano. Era também uma maneira de demonstrar por toda parte que o rei não estava desatento e que, mesmo de longe, dominava de fato todo seu território. Desse modo, parece que Deus quer lembrar seus servos da sua supremacia sobre o mundo, sobre as nações e sobre os rumos da história, ainda que eles vivessem dias difíceis que os faziam se esquecer de tais verdades e achar que o Senhor havia deixado de agir.

A explicação a Zacarias, registrada no v.10, parece exercer também a função de uma pergunta dirigida aos cavalos, já que eles a respondem (v.11): “Eles responderam ao anjo do Senhor que estava parado entre as murteiras, dizendo: ‘Nós percorremos a Terra e eis que toda a Terra está repousada e calma’”. Esse é o relatório dos emissários que percorreram a Terra, a qual pertence a Deus. O resultado era calmaria. Apesar de parecer uma boa notícia, o v.15 coloca esse fato sob uma óptica negativa devido às razões dessa paz. O fato é que a ausência de conflito não se devia a uma paz coletiva em benefício da humanidade, mas ao domínio inexorável do império Medo-Persa, o qual sujeitou as nações de toda aquela região e tirava vantagem da situação, sem que ninguém lhe pudesse fazer oposição. Desse modo, a paz do império significava sujeição, vergonha e miséria em Judá.

Por causa da situação desfavorável do povo eleito de Israel, o texto seguinte contém um clamor pela nação (v.12): “Então, respondeu o anjo do Senhor, dizendo: ‘Ó Senhor dos exércitos, até quando tu não terás compaixão de Jerusalém e das cidades de Judá contra quem tu estás indignado neste [período] de setenta anos?’”. A identidade desse “anjo do Senhor” é difícil de determinar. É possível, contudo, distingui-lo claramente do “anjo que falava comigo” que aparece várias vezes nos seis primeiros capítulos de Zacarias. Quanto ao “anjo do Senhor”, ele só reaparece em Zc 3.1,2, onde ele é o próprio Senhor. O tom do clamor parece indicar o pedido de providências de um servo ao seu Senhor, pelo que, inclusive, utiliza o pronome pessoal “tu” (’attâ) para lhe dirigir o clamor, demonstrando se tratar de outra pessoa. Entretanto, é também possível que se trate de um caso, aclarado principalmente pela teologia do Novo Testamento, em que pessoas da trindade ocupem tanto o lugar do “anjo do Senhor” como do Senhor em pessoa a quem o primeiro se dirige. Uma proposta compatível com essa visão, talvez extemporânea, é a de uma cristofania, ou seja, uma aparição de Cristo na forma daquele cavaleiro.[6]

Sobre os “setenta anos”, uma conclusão apressada é associá-los à referência feita por Jeremias (Jr 25.11,12; 29.10), à qual descreve os setenta anos de existência e domínio do império Neobabilônico, desde 609 a.C., com o fim do trono assírio na queda de Aram,[7] até 539 a.C., com a queda da Babilônia diante de Ciro. Os setenta anos citados no v.12, pelo uso da palavra “este” (zeh), parece ser o período que estava para se completar, o qual teve início em 587 a.C. com a destruição de Jerusalém e do templo do Senhor e com traslado dos judeus para a Babilônia. Com isso, o anjo está clamando pela cidade com base no fato de que o juízo sobre ela tinha prazo para acabar.

Se o Senhor até agora havia se mostrado irado contra os pecados de Israel, passou então a demonstrar outra disposição com relação ao povo (v.13): “Mas o Senhor respondeu ao anjo que falava comigo dizendo palavras bondosas, palavras de conforto”. Não obstante, as palavras serem dirigidas ao anjo mensageiro, os beneficiários da bondade divina e do consolo eram os judeus que estavam afadigados pela obra que tinham diante de si em uma cidade de muros derrubados, recebendo oposição dos vizinhos e sob o fardo do domínio de outra nação. Imediatamente, o profeta foi imbuído da missão de repassar a mensagem bondosa aos seus compatriotas (v.14): “Então, o anjo que falava comigo me disse: ‘Proclama o seguinte: Assim diz o Senhor dos exércitos: Eu zelo grandemente por Jerusalém e por Sião’”. A ação traduzida como “zelar” também quer dizer “se enciumar”. Tirando todos os aspectos negativos do ciúmes humano — que envolvem orgulho, interesses pessoais e egoísmo —, é o que Deus afirma sentir pela cidade que escolheu e, obviamente, pelo seu povo que lá colocou para habitar. Isso implica não apenas um sentimento de posse e de proximidade como atitudes práticas que revelam um grande zelo pelo povo que lhe pertence. É como dizer que ele cuida pessoalmente do seu povo e do destino que planejou para aquela cidade. A menção de Sião ao lado de Jerusalém tanto pode ser um sinônimo como uma alusão ao trono de Davi, já que ele é frequentemente associado ao monte Sião devido ao fato de tê-lo conquistado na tomada da cidade (2Sm 5.9, “Cidade de Davi”) — tal conexão dentro da visão não é enfática, nem necessária, mas é complementar à ideia da restauração nacional.

O zelo divino por seu povo, a ser revelado em uma inversão mundial de poder, começaria a se manifestar sobre os inimigos (v.15): “E estou profundamente irado contra as nações arrogantes, pois eu estava um pouco irado, mas elas agravaram o mal”. “Nações arrogantes” é a ideia final produzida pela expressão literal “nações tranquilas” ou “nações que vivem tranquilamente”. Contudo, viver tranquilamente não é errado nem passível da ira de Deus, já que a própria Jerusalém terá tranquilidade no futuro (Is 32.18).[8] O que aconteceu às nações para exacerbar a ira de Deus é que sua tranquilidade se dava com prejuízo da tranquilidade do povo de Deus, a quem dominavam e desprezavam. Assim, a confiança em seus meios militares, os quais lhes garantiam a tranquilidade, transformava a favorável situação de paz em ocasião de arrogância e irreverência diante do Senhor e do seu povo. Desse modo, tais nações, instrumentos de Deus para a punição temporária de Israel, foram além da sua função e praticaram tanta maldade que atraíram maior ira do Senhor, tornando-se elas mesmas os alvos da punição divina prevista nas Escrituras.

O zelo de Deus sobre seu povo, metaforicamente descrito por sua capital política, também se faria ver (v.16): “Portanto, assim diz o Senhor: ‘Eu me voltei para Jerusalém com compaixão. Minha casa será nela construída — declara o Senhor dos exércitos — e uma fita métrica será estendida sobre Jerusalém’”. A primeira declaração expressa o apaziguamento de Deus e o fato de que suas promessas, feitas no passado, não ficariam esquecidas, nem infrutífero o relacionamento iniciado e prometido no chamado de Abraão. A primeira evidência disso seria o bom êxito na reconstrução do templo. Independente do esforço dos inimigos de Judá para paralisar as obras, ela seria completada. Em segundo lugar, a cidade seria reconstruída. A menção a uma fita métrica estendida sobre a cidade tem relação com os preparativos para uma grande edificação, marcando o território a ser ocupado[9] — como fez Neemias, quase oito décadas depois, ao circundar a muralha caída a fim de organizar a obra de reconstrução (Ne 2.11-15) —, ou com um tipo de conferência de uma obra recém-edificada e inaugurada (Ez 40.5; Ap 21.15).

A visão se encerra com uma proclamação de alto impacto nas esperanças daquele povo (v.17): “Proclama novamente, dizendo: ‘Assim diz o Senhor dos exércitos: A minha cidade transbordará outra vez de riquezas, o Senhor novamente consolará Sião e escolherá novamente Jerusalém’”. O primeiro fator a ser levado em conta, difícil de passar despercebido, é a repetição insistente da palavra “novamente” ou “outra vez” (‘ôd). O profeta é chamado a “novamente” pregar que o Senhor “novamente” beneficiará Jerusalém, o que é colocado de três modos diferentes, mas complementares. A ideia é que o tempo de juízo chegaria ao fim e as bênçãos do Senhor retornariam. Se Ageu havia prometido que Deus proveria o segundo templo das riquezas necessárias para seu término e de uma glória maior que a da primeira construção (Ag 2.6-9), Zacarias prevê o bem nacional, na figura da capital, a qual também seria provida de riquezas, seria resgatada do sofrimento e do desfavor pelo Senhor e voltaria a ser tratada como cidade escolhida do povo eleito. Deve-se notar que Deus não desistiu da sua escolha para depois escolher novamente, mas sim que ele voltaria a tratar o povo que escolheu sob os privilégios de um povo eleito.

Apesar de todas essas promessas terem um foco bastante localizado, tanto geográfica como etnicamente, ver o Senhor agir desse modo nos recorda que seu tratamento é bondoso, compassivo e consolador para com aqueles que lhe pertencem. Por isso, nossas esperanças de futuro se fundem com as esperanças do povo de Israel no sentido de aguardarmos a restauração mundial na qual nosso Deus punirá os pecadores arrogantes e não tementes a ele e beneficiará, pela graça, as pessoas a quem escolheu resgatar do pecado pela fé em Jesus. Isso deve também nos fazer acolher uma condição serena em vez de impulsos de revolta quando os ímpios parecem impunemente ajuntar maldades sobre maldades, sabendo que Deus, um dia, pedirá contas de tudo e derramará sua ira sobre os perversos. Se essa visão e as lições decorrentes dela trouxeram vigor a um grupo não muito grande de construtores para que terminassem o templo do Senhor em Jerusalém, o que fará a nós, cristãos, diante dos desafios que temos no sentido de proclamar o evangelho de Cristo e de viver para a glória de Deus em um mundo como o nosso?

Pr. Thomas Tronco


[1] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e Desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 787.

[2] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1549-1550.

[3] Gesenius, W. e Samuel P. Tregelles. Gesenius' Hebrew and Chaldee Lexicon to the Old Testament Scriptures. Bellingham: Logos Research Systems, 2003, p. 796.

[4] Schökel, Luiz Alonso. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus, 1997, p. 28.

[5] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 73.

[6] Spence-Jones, H. D. M. (ed.). Zechariah. The Pulpit Commentary. London; New York: Funk & Wagnalls, 1909, p. 3.

[7] Com a queda da capital assíria Nínive, em 612 a.C., a transferência do trono para Aram, sob a liderança do seu último rei, Assur-uballit (612-609 a.C.), foi a última tentativa consistente de manter o antigo império. Com a queda de Aram, o resto do povo seguiu até Carquemish, o domínio mais distante dos assírios, onde foram abatidos em 605 a.C. pelo então príncipe Nabucodonosor (Merrill, Eugene. História de Israel no Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p. 467-468). Entretanto, esses últimos anos de existência não caracterizaram a continuidade do império assírio, de modo que a queda de Aram, e não de Carquemish, deve servir de referência para a indiscutível transição dos impérios.

[8] Baldwin, J. G., p. 79.

[9] Keil, C. F.; Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament (electronic ed.), vol. 10. Peabody, MA: Hendrickson, 2002, p. 516.

 

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