Gálatas 5.16-26 - A Vida sob o Controle do Espírito
O remédio para os graves conflitos interpessoais que agitavam as igrejas da Galácia é apresentado por Paulo no v. 16. As palavras “por isso digo” (λέγω δέ indicam que o que está para ser dito é a solução para o problema descrito no v. 15. Assim, segundo Paulo, a única meio de superar aquela forte inimizade que havia entre os crentes galateus era a submissão à influência do Espírito Santo.
O Apóstolo descreve essa forma de viver como “andar no Espírito’ (πνεύματι περιπατεῖτε). O significado básico dessa expressão, conforme já sugerido, é um caminhar em que o indivíduo permite que o Espírito de Deus controle suas reações e guie a sua vontade (Veja tb. v.18).[1] O homem que se dispõe a isso diz “não” para suas inclinações pessoais (Lc 9.23) e “sim” para as orientações do Espírito de Deus (Rm 8.5).
Frise-se que só os cristãos podem dispor dessa maneira de viver, uma vez que somente neles o Espírito Santo habita, apontando-lhes o modo de proceder (Rm 8.9,14). Deve também ficar claro que andar no Espírito não é uma experiência mística, em que o crente tem sua personalidade anulada, vivendo como que num êxtase. Antes, trata-se de um estilo de vida a que o cristão se submete voluntária e conscientemente, sabendo que não existe outra maneira pela qual seja possível viver o cristianismo de modo real e satisfatório (Rm 8.8).
O que vem em decorrência do andar no Espírito é uma conduta em que a carne, ou seja, a inclinação pecaminosa do individuo, não é satisfeita, ou seja, tal tendência é como que mortificada (Rm 8.13). É claro que o Apóstolo não está dizendo aqui que o submeter-se ao controle de Deus levará o crente a uma vida sem pecado. A própria experiência de Paulo mostra que esse ideal é impossível neste mundo (Rm 7.15-25). Porém, é fora de discussão que o crente que se sujeita às orientações e influência do Espírito Santo não vive sob o domínio de suas inclinações naturais. Estas, é claro, não desaparecem num crente assim, mas também não são capazes de tomar as rédeas de sua vida e ditar-lhe a conduta. No cristão que vive pelo Espírito, o pecado mostra-se presente, perturbando-o, entristecendo-o e contrariando sua vontade, mas isso nunca até o ponto de estabelecer-se no centro de sua vida, reinando soberano (Rm 6.12-14).
Dando seguimento ao seu ensino, Paulo destaca que há no íntimo do cristão uma verdadeira batalha entre sua natureza pecaminosa e as orientações do Espírito Santo que nele habita. Conforme o ensino do Apóstolo, de um lado há as inclinações naturais tentando determinar a conduta do homem já regenerado, enquanto de outro lado há a atuação do Espírito que insiste em guiar a vida daqueles que pertencem a Deus (17). Paulo diz que essa batalha travada no âmbito da vontade faz com que as decisões morais dos crentes nunca sejam absolutamente livres. Antes, sempre resultam ou dos impulsos carnais ou da obra do Espírito de Deus.
Deve ficar claro que, com a frase “... de modo que vocês não fazem o que desejam” (NVI), Paulo não está dizendo que o crente não tem vontade própria. Antes, a frase aponta para o fato de que a vontade moral do cristão sempre sofre influências determinantes. Com isso o Apóstolo resvala num tema da teologia cristã que tem sido objeto de calorosos debates: a vontade livre. Ainda que esse assunto tenha inúmeras ramificações, à luz do texto em análise parece certo dizer que, no que diz respeito ao cristão, a vontade moral sempre reage aos impulsos de uma entre duas forças, isto é, ou o crente toma decisões induzido por suas paixões carnais, ou o faz sob a direção do Espírito. Em todo caso, sua vontade própria sempre se expressa no campo da ética respondendo a fatores que a contrariam, mas que fatalmente a conduzem nesta ou naquela direção (Rm 7.19; Fp 2.13). Assim, parece que a liberdade plena da vontade, nos termos como é geralmente entendida, não encontra suporte para sustentação no ensino paulino.
O fato é que, no crente, a vontade é um misto de bem e mal. Por isso, não importa o rumo que tome, seu querer sempre será contrariado. Se optar pelo mal, sentir-se-á frustrado, pois o bem que ele aprova e no qual tem prazer não será alcançado. Se, por outro lado, optar pelo bem, terá de fazê-lo dizendo “não” para si mesmo, ou seja, para aquilo que seu coração naturalmente deseja (Lc 9.23; 1Co 9.27). Assim, enquanto o pecado estiver em seus membros (Rm 7.23), o cristão jamais poderá dizer que desfruta de plena liberdade em suas decisões morais.
Paulo sabia que as discórdias existentes nas igrejas da Galácia (vv. 13-15) eram o resultado indesejado daquela batalha entre os impulsos da carne a que aqueles crentes estavam dando vazão, e as orientações do Espírito. Sobre eles recaía, portanto, o dever de administrar corretamente essas inclinações, refreando a natureza pecaminosa e submetendo seus desejos aos ensinos do Espírito.
Isso tudo conduz o Apóstolo a uma implicação óbvia: se era ao Espírito que os galateus deviam sujeição, isso significava também que, conforme argumenta em toda a carta, seu senhor não poderia ser a Lei (18). Nesse ponto, é como se o Apóstolo estivesse a dizer: “Essas brigas que há entre vocês são reflexos do domínio da carne em suas vidas e só poderão desaparecer se houver submissão às orientações do Espírito Santo. Esse Espírito, de fato, atua em vocês, opondo-se às suas inclinações carnais. Ora, se o Espírito de Deus quer controlar sua vida, é óbvio que sua obediência deve ser a ele e não às normas da Lei Mosaica, como os mestres judaicos têm lhes ensinado”.
De tudo isso se depreende o seguinte: há três influências sob as quais é possível que um crente se coloque. Essas três influências são: a Lei, a carne e o Espírito.[2] Sob as duas primeiras, o cristão jamais conseguirá agradar a Deus (Rm 7.9; 8.8) e, para desespero de Paulo, era exatamente a essas duas que os galateus se sujeitavam. Já a terceira influência, a do Espírito, esta permanece a única sob a qual o crente pode realmente fazer a vontade do Senhor (v.16). Debaixo dela, a força da carne é neutralizada e o cristão é capacitado sobrenaturalmente a cumprir as justas exigências da Lei, da forma como Deus requer (Rm 7.6; 8.4).
Nos vv. 19-21, o Apóstolo apresenta uma lista da qual constam quinze “obras da carne” específicas. Paulo pretende mostrar vividamente o modo como as inclinações na natureza pecaminosa se manifestam no dia-a-dia das pessoas que se deixam dominar por ela. Fica claro aqui, antes de tudo, que a carne induz à realização de certas obras e que essas obras são facilmente identificáveis. O termo traduzido na NVI como “manifestas” (φανερὰ) indica que tais obras são praticadas sem qualquer discrição, sendo expostas diante de todos numa chocante demonstração de ausência de escrúpulos.
A lista de obras da carne pode ser dividida em quatro grupos distintos de pecados. O primeiro deles abrange os pecados de natureza sexual. Estes são: imoralidade sexual, impureza e libertinagem (19). O termo traduzido por “imoralidade sexual” (πορνεία) abrange todos os tipos de relação sexual ilícita, desde a fornicação até a prostituição. Já a “impureza” (ἀκαθαρσία) sugere a idéia de podridão no íntimo, ou seja, as más intenções na área sexual ainda que também signifique imoralidade de um modo geral. Quanto à “libertinagem” (ἀσέλγεια) a palavra poderia ser traduzida como “lascívia” (cf. ARA) ou “sensualidade”. Porém, o termo pode denotar um comportamento realmente ousado, próprio daquele que se entrega à licenciosidade, assumindo um modo devasso, impudico e dissoluto de viver.
O segundo grupo de obras da carne mencionado pelo Apóstolo pode ser classificado como composto de pecados de natureza religiosa. Paulo menciona, no v. 20, a idolatria (εἰδωλολατρία) e a feitiçaria (φαρμακεία). A primeira é a adoração de ídolos ou imagens de falsos deuses.[3] Quanto à feitiçaria, a palavra sugere inicialmente a prática da magia que faz uso de drogas e poções (a partir do termo grego temos, em português, a palavra “farmácia”). Porém, num sentido amplo, “feitiçaria” é qualquer arte de bruxaria, magia ou encantamentos. A prática popular de “simpatias” insere-se perfeitamente no conceito que Paulo repugna aqui. Assim também o uso de drogas no preparo do indivíduo para exercícios mentais próprios das religiões orientais.
É curioso notar que a natureza pecaminosa também inclina o homem para a religião falsa e para a superstição. Assim, os atos cultuais realizados pelos adeptos de qualquer seita idólatra e as crendices populares não são meros frutos da ignorância, do costume ou da tradição. Antes, refletem o caráter reprovado de quem se envolve com elas; um caráter em que a natureza pecaminosa reina governando a mente e as ações do indivíduo. Essa é a “psicologia da religião” ensinada por Paulo!
Como é sabido, a sociedade pagã do primeiro século da Era Cristã era caracterizada tanto por um baixo nível moral como pelo desvio religioso e, sem dúvida, os leitores da epístola estavam familiarizados com as formas de comportamento referidas pelo Apóstolo. Portanto, não há dúvida que, nesse ponto, seu ensino assume um caráter vívido, pois no contexto em que viviam os galateus, não faltavam exemplos das coisas até aqui mencionadas. Assim, ao definir toda essa conduta como carnal, Paulo incita seus leitores a não adotarem o comportamento próprio da sociedade que os cercava.
Depois de listar os pecados na área da religião, Paulo prossegue enumerando os pecados de natureza relacional, isto é, aqueles que normalmente se insinuam no âmbito do convívio social, destruindo os relacionamentos interpessoais. Esse grupo concentra o maior número de pecados (oito, ao todo), certamente porque era exatamente na esfera da convivência que os galateus tinham mais problemas (vv. 14-15, 26). São eles ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja (20-21).
O ódio (Lit. “ódios”. Gr. ἔχθραι) não é aqui um mero sentimento. Trata-se da manutenção de inimizades. O homem carnal considera-se inimigo de certas pessoas e age como tal, alimentando suas hostilidades. Na igreja, é o crente que sempre está “de mal” com alguém; constantemente construindo barreiras entre si e os outros. Trata-se do homem que tem uma forte inclinação para arrumar encrencas e geralmente é bem sucedido nesse propósito.
O vocábulo “discórdia” (ἔρις) denota a rivalidade que aflora em contendas. Discussões verbais (1Co 1.11; Tt 3.9) e provocações (Fp 1.15) são manifestações desse tipo de pecado. Quanto ao ciúme (ζῆλος. Daí a palavra “zelo”, em português), seu significado aqui é o sentimento de inveja, o incômodo que nasce no coração de alguém quando vê o sucesso, o destaque ou o simples bem estar de outrem (At 5.17). O invejoso não se conforma com as conquistas de outra pessoa e, cedo ou tarde, esse seu inconformismo se expressa em maledicência e oposição. É por isso que Tiago coloca a inveja na raiz de todas as confusões e coisas ruins que surgem na igreja e em qualquer outro grupo de pessoas (Tg 3.14-16).
A palavra que vem a seguir é “ira” (Lit. “iras”. Gr. θυμοί). Significa, basicamente, raiva e furor (Lc 4.28-29). Paulo tem em mente aqui as explosões de cólera, sempre acompanhadas de gritos, ameaças e ofensas. O homem carnal reage de modo agressivo bem depressa e por muito pouco. Ele também se orgulha por ser assim e até se gaba dos ataques que, cheio de ira, empreendeu contra seus semelhantes nesta ou naquela ocasião.
O próximo item na lista de Paulo é “egoísmo”, que no texto também aparece no plural (ἐριθεῖα). O vocábulo denota a ambição egoísta, também mencionada em Tiago 3.14-16 como a causa de tudo o que é ruim nas relações entre os homens. O indivíduo que pratica esse pecado é aquele que faz as coisas visando a glória pessoal, em detrimento dos interesses e bem estar dos outros, chegando mesmo a desrespeitá-los (v. 26). Para ele o cuidado e a promoção de si mesmo está acima de tudo e de todos (Fp 2.3-4).
Quanto às dissensões (διχοστασίαι), estas são as divisões e partidos que muitas vezes se insinuam até mesmo dentro das igrejas (Rm 16.17). Já as facções (αἱρέσεις), referem-se a conflitos de opinião (1Co 11.19). Da palavra grega que aparece aqui surgiu o termo “heresia”, usado para descrever conceitos doutrinários que causam cisma dentro da igreja.
A última palavra pertencente à terceira classe de pecados alistados por Paulo é traduzida como “inveja” (φθόνοι). Seu significado é, basicamente, o mesmo atribuído a ζῆλος (Veja acima).
O quarto e último grupo de obras da carne abrange os pecados de desregramento que Paulo especifica mencionando a embriaguez e as orgias (21).
A embriaguez (μέθαι) é o uso abusivo da bebida alcoólica. O cristianismo não ensina a abstinência total do álcool (Jo 2.3-10; 1Tm 5.23)[4], mas reprova a bebedice (Pv 20.1; Is 5.11-12,22; 1Tm 3.2-3,8; Tt 2.3). Diferentemente da concepção moderna, a Bíblia se refere à embriaguez como um pecado que impõe a quem o pratica a necessidade de arrependimento (Rm 13.13-14) e não como uma doença pela qual o homem não pode ser responsabilizado. Assim, Paulo alista a bebedice entre as obras da carne, mais especificamente entre os pecados de desregramento, vendo-a como um reflexo da busca egoísta e irresponsável pelo prazer que, inegavelmente, a bebida traz tanto ao paladar quanto aos sentimentos (Sl 104.14-15; Pv 31.6-7). O beberrão é reprovado por Deus porque atende aos impulsos de sua natureza pecaminosa que, na bebida, busca a todo custo o prazer do corpo e o alívio da mente. Ademais, invariavelmente, o resultado dessa busca descontrolada é a escravidão ao vício, a miséria (Pv 21.17) e a degradação do indivíduo (Is 28.7; Ef 5.18).
A mesma busca desenfreada pelo prazer dos sentidos que move o escravo da bebida também está presente naqueles que se entregam às orgias. A palavra usada por Paulo aqui (κῶμοι) denota um banquete festivo em que as pessoas se entregam à glutonaria e a todos os tipos de prazer corporal. A orgia sexual compõe o quadro que a palavra sugere. No ambiente pagão do século I, essas festas devassas eram comuns (1Pe 4.3), fazendo parte, inclusive, dos cultos devidos aos deuses.[5]
Com a expressão “coisas semelhantes”, Paulo indica que a lista de obras da carne aqui apresentada não é exaustiva. Ele também lembra que já havia falado sobre essas coisas com os galateus numa outra ocasião, provavelmente ao tempo de sua visita àquela região (At 14.1-23). Naquela oportunidade, assim como agora, o Apóstolo advertira a todos que “aqueles que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus”. Isso significa que as pessoas que vivem sob o domínio das obras da carne revelam sua verdadeira condição espiritual de incrédulos perdidos. Ainda que muitos se apresentem como cristãos, num discurso que revela conhecimento das principais doutrinas bíblicas e até certo envolvimento com a igreja de Deus, o fato é que uma vida onde o pecado reina jamais experimentou realmente a redenção que Cristo dá. A verdade é que quem vive no pecado, mostra que nunca foi liberto do pecado e, ao final, receberá o galardão do pecado (Ap 22.14-15).
Em contraste com as obras da carne, Paulo apresenta o “fruto do Espírito” (22). Há quem diga que a palavra fruto (καρπὸς) aparece no singular porque Paulo queria ensinar que as virtudes que vêm alistadas a seguir surgem todas juntas, como uma coisa só, na vida do homem espiritual. Isso, porém dificilmente estava na mente do Apóstolo, mesmo porque seria muito improvável que uma lição tão importante e surpreendente fosse transmitida por ele de forma meramente implícita. Ademais, a própria experiência cristã mostra que as virtudes espirituais nem sempre se desenvolvem simultaneamente na vida do indivíduo.
Assim, Paulo não tinha nenhuma lição oculta no uso do singular. Ele queria simplesmente afirmar que a obra do Espírito no crente resulta num produto e que esse produto se manifesta em virtudes variadas. A lição principal que Paulo dirige aos galateus com a menção do fruto do Espírito é que o caráter cristão nasce como resultado da obra sobrenatural de Deus e não em decorrência de uma rígida disciplina moral e legalista (Rm 8.4).
A virtude que encabeça a lista de Paulo é o amor (ἀγάπη) termo usado para descrever uma disposição favorável em relação ao outro, que chega ao ponto do sacrifício, se preciso for, para beneficiá-lo (2.20; 5.13).[6] O amor é a forma como a fé verdadeira se expressa (5.6); e os galateus precisavam crescer nessa virtude, já que o convívio entre eles era marcado por terríveis discórdias (5.14-15, 26).
Paulo prossegue mencionando a alegria (χαρὰ) que é, basicamente, a doce satisfação que existe em quem tem os anseios realizados. Desse conceito se depreende que o invejoso é carente de alegria, posto que se sente frustrado por não ter o que é do outro. Esse era o caso dos galateus (5.26).
Na Epístola aos Filipenses, Paulo menciona a alegria mais do que em qualquer outro lugar. Curiosamente, ele escreveu essa carta quando estava em prisão domiciliar em Roma, o que demonstra que a alegria que advém da obra do Espírito é uma satisfação decorrente da consciência de que Deus está atuando e que, qualquer que seja o rumo das coisas, sua bondade boa e santa sempre estará por trás de tudo (Fp 2.17). A alegria cristã também consiste em ter na pessoa e obra de Deus a principal fonte de vibração e entusiasmo (Fp 4.4).
A terceira virtude alistada como fruto do Espírito é a paz (εἰρήνη), conceito que contrasta com oito obras da carne mencionadas por Paulo nos vv. 20-21. Paz, considerada em seu aspecto interior, é serenidade mental (Fp 4.7). Exteriormente se expressa em harmonia entre as pessoas (Rm 12.18) e ausência de desordem (1Co 14.33). Deus é um Deus de paz (Fp 4.9) que nos chamou para vivermos em paz (1Co 7.15b).
Longanimidade (μακροθυμία) vem a seguir. Longânimo é aquele que permanece firme, perseverando mesmo em face dos mais severos ataques da vida e sendo paciente diante das provocações dos homens (2Tm 4.2).
O quinto traço do homem que vive no Espírito é a benignidade (χρηστότης), termo usado a princípio para descrever a pessoa que faz o bem, sendo generosa em seus atos de benevolência. O termo que vem a seguir, bondade (ἀγαθωσύνη) é quase um sinônimo de benignidade. Contudo, é bem provável que o apóstolo concebesse alguma distinção entre as duas palavras. No afã de manter mais nítida essa distinção, a NVI traduziu χρηστότης como “amabilidade”, ou seja, a postura de quem trata os outros com docilidade, livre de qualquer aspereza. De fato, há o consenso de que a primeira palavra se refere mais à atitude de alguém, enquanto a segunda denota uma carga maior de ação. Essas distinções são relevantes, pois pode-se encontrar alguém amável que não faz o bem; ou ainda alguém que faz o bem, mas não é amável. Assim, as duas virtudes juntas descreveriam o homem dócil que também é pródigo em seus atos de bondade.
A lista de Paulo prossegue e fé (πίστις) é a palavra que vem a seguir. Considerando, porém, que a fé é um elemento básico nas relações do homem com Deus, constituindo-se no fator que possibilita o início da vida cristã (Rm 5.1-2; Gl 3.2), dificilmente Paulo, no presente contexto, incluiria a fé em Deus na lista em pauta. Fé em Deus é raiz, não fruto. Por isso, parece correto entender o termo usado por Paulo como “fidelidade”, aliás, uma tradução perfeitamente possível. De fato, a palavra πίστις é usada para descrever a pessoa comprometida e leal (Rm 3.3; Tt 2.9-10). Assim, certamente Paulo quer ensinar que o homem espiritual é alguém confiável, incapaz de trair a verdade (especialmente a doutrinária) e fiel nas suas relações com as pessoas. Os crentes da Galácia não tinham essa virtude (1.6; 4.14-16).
O vocábulo mansidão (πραΰτης) inicia o v. 23. Manso é o homem brando, aquele que não é dominado pela ira. Não se trata de alguém que nunca se irrita, mas da pessoa que não tem o rancor e a agressividade como marcas distintivas. Cristo, o modelo maior, se apresenta como manso (Mt 11.29), ainda que sejam notórias as suas eventuais manifestações severas de reprovação (Mt 21.12-13; 23.33). Andando em mansidão, o crente desestimula a discórdia, enfraquecendo o império das obras da carne dentro da igreja.
Pondo fim à sua bela lista, o Apóstolo menciona o domínio próprio (ἐγκράτεια) que é o controle das inclinações naturais. Literalmente a palavra aponta para o ato de agarrar ou segurar o eu, o que requer do crente um certo grau de empenho (2Pe 1.5-6). O domínio próprio se constitui no avesso do modo de vida dos incrédulos. Ensinar essa virtude produz grandes incômodos nos homens que vivem dando plena expressão aos seus instintos naturais (At 24.25).
Evocando o zelo das igrejas da Galácia pela Lei, Paulo, numa branda ironia, recorda que ninguém transgride os mandamentos ao praticar as virtudes que ele alistou (23 in fine). Assim, se quisessem viver sem quebrar a Lei, os galateus tinham que se colocar sob o domínio e influência do Espírito Santo, crescendo no fruto que esse mesmo Espírito produz. De fato, em outro lugar, Paulo ensina que o crente que vive segundo o Espírito tem um procedimento no qual se percebe o cumprimento substancial das justas exigências da Lei (Rm 8.4).
O Apóstolo insiste que não é a prática legalista que santifica o homem. Ele realça que para se livrar do domínio das inclinações do pecado é preciso, antes de tudo, pertencer a Cristo (24).[7] Isso não significa que no crente o pecado está morto, mas sim que, quando passa a pertencer a Cristo, o homem experimenta a neutralização do poder da carne que, como um homem crucificado, se vê despojada de sua força.[8] É claro que aquele que pertence a Cristo ainda comete pecados (1Jo 1.8-10). Contudo, ao crente são dadas condições de viver de tal modo que a iniqüidade não ocupe mais o trono de sua vida (Rm 6.12-14). Essas condições advêm da habitação do Espírito Santo nele.
Resta ao crente agora ser zeloso e submeter-se ao controle do Espírito que nele está (v. 16). Já vivemos no Espírito, ou seja, quando passamos a pertencer a Cristo fomos inseridos na esfera de atuação do Espírito de Deus.[9] Isso é fato consumado. Agora, porém, é preciso andar no Espírito (24), o que não nos advém como num passe de mágica, mas sim implica o dever de acolher suas orientações com perseverança e responsabilidade.
Assim, o crente já está no Espírito, devendo agora andar como ele determina. Numa palavra, o cristão tem o dever de ajustar sua vida à nova realidade em que agora se encontra. Tal como o homem que entrou para o casamento deve conformar sua vida à realidade de alguém casado, assim também o homem que, pela conversão, entrou para a vida no Espírito deve andar como alguém controlado por esse mesmo Espírito.
Na Galácia, essa harmonização entre viver no Espírito e andar no Espírito ocorreria quando os crentes deixassem de lado o orgulho, as provocações mútuas e as invejas, o que reforça o ensino de que para andar no Espírito é necessária consciente e perseverante sujeição.
Pr. Marcos Granconato
[1] Observe o mesmo ensino em Efésios 5.18, onde Paulo exorta os crentes a que não se deixem dominar pelo vinho, mas sim pelo Espírito. Com essa rica figura, o Apóstolo realça que, assim como o homem embriagado é totalmente dominado pela bebida em sua forma de falar, andar e reagir, da mesma forma o crente cheio do Espírito, como ébrio de Deus, anda, fala e age da forma como o Senhor determina.
[2] Veja-se essas três influências mencionadas explicitamente em Romanos 7.4-6.
[3] Veja-se o relato de Atos 14.11-13 para uma noção do grau de idolatria reinante na Galácia.
[4] Por outro lado, num país como o nosso, em que muitos irmãos na fé se escandalizam quando vêem um crente bebendo qualquer bebida alcoólica, é melhor que haja abstinência total, conforme ensina Paulo em Romanos 14.15-21.
[5] Bebedices e orgias eram associadas ao culto de Dionísio, também conhecido como Baco. Considerado o deus do vinho e da vida animal e vegetal, seus adoradores se entregavam à bebida e comiam carne com sangue para participar da vida do deus. Nesses banquetes os participantes, em meio a danças sagradas, eram levados ao êxtase e à orgia sexual.
[6] Paulo descreve detalhadamente o amor genuíno em 1Coríntios 13.1-7.
[7] Note-se aqui a conversão descrita como “pertencer a Cristo”. O convertido é realmente como um escravo adquirido por Cristo. Tendo agora um novo senhor, não precisa mais viver sob o jugo da Lei.
[8] Paulo tinha experiência própria desse fato (2.20). Note-se ainda que em sua vida não somente o próprio eu carnal havia sido crucificado, mas também o mundo com seus atrativos e apelos (6.14).
[9] Veja-se em 3.2,5,14; 4.6; e 5.5 os fenômenos próprios dessa realidade.