Ageu 1.1-6 - Um Povo Inerte e Sofredor
O livro de Ageu, como é costume da maioria dos livros proféticos, inicia identificando o autor e a ocasião (v.1): “No segundo ano do rei Dario, no sexto mês, no primeiro dia do mês, veio a palavra do Senhor por meio do profeta Ageu a Zorobabel, filho de Sealtiel, governador de Judá, e ao sumo sacerdote Josué, filho de Jeozadaque, dizendo”. Há nesse texto um modo formal de se referir a cada um como sendo pessoas únicas em suas funções: “Dario, o rei”, “Ageu, o profeta”, “Zorobabel, governador de Judá” e “Josué, [...] o sumo sacerdote”. Nenhum desses personagens era novo ou desconhecido dos judeus. No caso do seu governador e do sumo sacerdote, além do rei do Império Medo Persa, não é de admirar que fossem bem conhecidos entre o povo. Mas quando Ageu é tratado do mesmo modo, sendo denominado “o profeta”, isso nos sugere que ele era bastante conhecido e respeitado em seus dias. Talvez até já tivesse uma carreira profética, apesar de só conhecermos os fatos ligados aos acontecimentos da reconstrução do Templo (Ed 5.1; 6.14) a partir do ano 520 a.C., o “segundo ano do rei Dario”.[1] A função profética de Ageu era amplamente reconhecida e a ele era reputado o título de “mensageiro do Senhor” (v.13). Como mensageiro, ele dirige suas palavras ao governador e ao sumo sacerdote, líderes do país renascido, tendo como alvo final toda a população. O início dessa mensagem traz à atenção de todos um sistema de “ação e reação”: o descaso dos judeus com o templo do Senhor e a consequente carestia que vinham sofrendo.
Em primeiro lugar, o profeta, em nome do Senhor, aponta o erro do povo com um tom muito claro de repreensão (v.2): “Assim diz o Senhor: Este povo tem dito: ‘Não chegou o tempo de a casa do Senhor ser edificada’”. A fórmula “assim diz o Senhor” marca os pronunciamentos dos mensageiros do Senhor desde Moisés (Êx 4.22; 5.1) e Josué (Js 7.13; 24.2), passando pelos profetas pré-monárquicos (Jz 6.8; 1Sm 2.27; 15.1,2), pré-clássicos (2Sm 7.3; 1Rs 11.30,31; 13.2; 20.17-19; 2Rs 3.15-17), até os profetas clássicos pré-exílicos e exílicos (Is 7.7; Jr 2.2; Ez 3.27; Am 1.3; Ob 1; Mq 2.3). Esse é, também, o modo como os profetas pós-exílicos apresentam as palavras de Deus aos homens (Ag 2.11; Zc 1.3). Com isso, Deus também quebrou um silêncio profético que marcava esses dias.[2] Tendo usado a fórmula que, além de tradicional, tinha em si um peso muito grande e conferia um caráter temível à mensagem, Ageu revela o problema: o templo não fora construído e o povo não estava se importando com isso. Apesar de a construção ter sido iniciada, ela ficou somente nos alicerces (Ed 3.10). Contudo, o altar estava pronto e em pleno uso (Ed 3.2), o que, com o tempo, passou a bastar para os moradores de Jerusalém. Diante do desânimo e da oposição que os judeus receberam ao se lançarem à obra do templo, eles desistiram de prosseguir e se convenceram de que não era em seus dias que a edificação seria concluída.
As razões para isso são complexas, mas podem ser rascunhadas. Uma dessas razões foi o desânimo que os atacou em duas frentes. A primeira é que, apesar da grande exultação que sentiram no início da obra (Ed 3.11), a alegria não era geral. Os judeus idosos que conheceram o primeiro templo, em vez de se alegrarem pela reconstrução, ficaram a lamentar (Ed 3.12) — nesse texto, a interpretação do significado do choro em alta voz deve recair sobre uma profunda tristeza e não como um simples choro de alegria, já que a parte final do texto contrasta a atitude dos idosos com a alegria do povo (ver também Ed 3.13). Mas por que esses idosos estariam tristes? É possível que, não obstante buscarem reconstruir sobre os antigos alicerces ainda sob o solo, fosse possível antever a diferença de riqueza que haveria entre as duas versões do edifício (Ag 2.3). Talvez, nem fosse possível fazer tal previsão e eles simplesmente estivessem sendo pessimistas. O fato é que isso pode ter se tornado um fardo para quem estava trabalhando a grandes custos, sabendo que nos dias de Salomão havia muito mais riquezas e trabalhadores que em seus dias.[3] A segunda frente do desânimo veio de inimigos samaritanos[4] que, preteridos no trabalho de reconstrução (Ed 4.1-3), se dispuseram a pagar quem trabalhasse ativamente para desanimar os construtores (Ed 4.4,5). Esses inimigos se empenharam ainda mais e os acusaram diante das autoridades, salpicando sua acusação com mentiras e sagacidade, até que a obra fosse embargada (Ed 4.6,12,13,23,24). Mesmo havendo recursos para a população lutar por seu direito, já que o imperador Ciro havia permitido e ordenado a obra (Ed 1.2), chegou uma hora em que o desânimo foi mais forte que o desejo e a responsabilidade de ver o templo de pé.
A segunda razão de a obra ter parado é que, além de desânimo, o povo passou a nutrir um sentimento egoísta e materialista (vv.3,4): “Mas veio a palavra do Senhor por meio do profeta Ageu, dizendo: ‘É tempo de vós morardes em vossas casas luxuosas enquanto esta casa está arruinada?’”. O paradoxo era evidente: a casa de Deus abandonada e as casas da população — ou pelo menos da aristocracia de Jerusalém — recobertas de belezas e cheias de luxo. É também notável a ironia e a reprovação nas palavras de Deus ao contrapor o dizer dos judeus (v.2) “não chegou o tempo de a casa do Senhor ser edificada” com a pergunta (v.4) “é tempo de vós morardes em vossas casas luxuosas?”. Essa pergunta, de natureza retórica, devia ser respondida com um sonoro “não”.[5] Mas, infelizmente, era exatamente o que vinha ocorrendo. O que aqui é traduzido como “casas luxuosas” quer literalmente dizer casas “cobertas”, “revestidas” ou “apaineladas”. Essa era uma característica do templo construído por Salomão (1Rs 6.9) e de casas dignas da nobreza (1Rs 7.7) e da aristocracia (Jr 22.13-15), os qual eram “cobertos” ou “revestidos” de cedro. Pois era assim que os judeus queriam viver e vinham investindo seus recursos e esforços. Não há nada errado em alguém desejar e trabalhar para melhorar sua casa e dar mais conforto à sua família. Entretanto, isso estava acontecendo em prejuízo do templo do Senhor, o qual estava “arruinado” — a palavra assim traduzida também quer dizer “não construído”. Assim, o egoísmo materialista dos judeus desses dias, desejando o bem para si ao passo que desprezavam a casa do Senhor e o culto, constitui-se em uma das razões para que a obra estivesse parada havia uma década e meia.
Mas quem pensa que os judeus estavam vivendo bem, se engana. Suas casas luxuosas destoavam dos seus campos e celeiros empobrecidos. Por isso, Deus os chama a avaliarem seus procedimentos e os efeitos do desprezo para com a edificação do santuário (v.5): “Agora, porém, assim diz o Senhor dos Exércitos: ‘Ponhais vossa consciência sobre os vossos caminhos’”. Esse é um modo de dizer: “Avaliem cuidadosamente o que vocês têm feito e quais têm sido os resultados das suas ações”. Por si só esse chamado era suficiente para eles compreenderem o que o Senhor queria dizer. Entretanto, para que ninguém se fizesse de desentendido, a lista das consequências é declarada como se fosse uma sentença (v.6): “Vós tendes semeado muito, mas colhido pouco. Comeis, mas não vos fartais. Bebeis, mas não ficais alegres. Vesti-vos, mas não vos aqueceis. E o assalariado põe o pagamento em uma bolsa furada”. Em resumo, seus investimentos agropecuários estavam fracassados e deixando-os na carestia. A comida não podia saciá-los, pois as colheitas decepcionavam os produtores devido à seca enviada por Deus (cf. vv.10,11). A bebida, provavelmente vinho, era tão pouca que seu efeito de alegrar (Pv 31.6,7) — literalmente “embriagar” — nem era sentido. A produção de roupas, cuja matéria-prima podia ser de origem animal ou vegetal (Pv 31.13), também foi afetada e eles careciam de vestes e coberturas contra o frio. Por fim, a pouca oferta de produtos básicos no comércio e, consequentemente, a grande procura, elevou os preços de mercado a ponto de o dinheiro dos assalariados acabar rapidamente, como se estivesse caindo de um saco furado. Tratava-se do oposto da opulência que eles tanto queriam.
Infelizmente, essa triste história não costuma andar tão longe da igreja atual como desejaríamos. Em primeiro lugar, é possível notar o desânimo tomando conta de crentes que antes eram dedicados, fervorosos e tremendamente interessados pela Palavra de Deus e pela causa do mestre. Contudo, com o passar do tempo, as dificuldades da vida cotidiana, desânimo transmitido por pessoas de dentro e de fora do corpo de Cristo, intrigas entre irmãos e perseguição do mundo acabam por abalar a firmeza da fé e da comunhão com Deus, esfriando o amor pelo Salvador e por sua igreja. Ao mesmo tempo que isso ocorre, o amor pelo mundo cresce e traz um grande perigo de afastamento e rebeldia, conforme testemunhou o apóstolo Paulo na vida de um servo que fora dedicado e ativo: “Porque Demas, tendo amado o presente século, me abandonou e se foi para Tessalônica” (2Tm 4.10a). Por outro lado, ainda que os termos do nosso relacionamento com Deus tenham algumas diferenças entre os da aliança mosaica feita com Israel, é possível notar as consequências que muitos crentes sofrem por conta do abandono e do descaso para com o Senhor (Hb 10.25) na forma da disciplina como de um pai para o filho (Hb 12.7,8). Apesar do lado positivo da correção paternal (Hb 12.6), o escritor bíblico é claro ao dizer que ela, assim como a repreensão de um pai, ainda que produza um resultado positivo (Hb 12.11b), também produz dor e tristeza: “Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza” (Hb 12.11a).
Enfim, o risco e as consequências do desânimo e do apego ao mundo devem nos fazer avaliar nossos caminhos e nos levar ao arrependimento de toda rebeldia e desvio dos caminhos de Deus. Além disso, devem nos levar ao temor de Deus — algo de que a igreja moderna parece ter se esquecido — e ao amor crescente por nosso salvador e pelo povo que, por sua graça, ele tem unido em um só corpo.
Pr. Thomas Tronco
[1] Para mais dados sobre a ocasião, veja-se a Introdução.
[2] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 1538.
[3] Baldwin, J. G. Ageu, Zacarias e Malaquias: Introdução e Comentário. Série Cultura Bíblica. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 30.
[4] Merrill, Eugene. História de Israel no Antigo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2007, p. 524.
[5] Clark, D. J.; Hatton, H. A Handbook on Haggai. UBS Handbook Series. Nova York: United Bible Societies, 2002, p. 19.