Sexta, 29 de Março de 2024
   
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Unicórnios em Porto Seguro

Pastoral

“Filipe encontrou a Natanael e disse-lhe: achamos aquele de quem Moisés escreveu na lei, e a quem se referiram os profetas… Perguntou-lhe Natanael: de Nazaré pode sair alguma coisa boa? Respondeu-lhe Filipe: vem e vê (Jo 1.45-46).

As proposições doutrinárias que ensinamos e defendemos nem sempre têm relação com a realidade presente e verificável, devendo, em regra, ser acolhidas unicamente pela fé. Por exemplo: se alguém diz que Cristo ressuscitou dentre os mortos, essa afirmação não está ligada à realidade presente (esse fato ocorreu há mais de 2 mil anos). Tampouco é diretamente verificável, ou seja, não temos como averiguar a harmonia entre tal afirmação e a história real, exceto por meio de algumas evidências circunstanciais e uns poucos testemunhos antigos. No fim das contas, aceitamos a veracidade da referida alegação pela fé.

Outro exemplo: se alguém diz que Cristo está sentado à direita do Pai, tal afirmação está ligada à realidade presente (ele está sentado ali neste exato momento), porém, não é um fato verificável (não há como irmos ao céu e checarmos se Jesus está mesmo lá). Por isso, mais uma vez, aceitamos a veracidade da proposição por meio da fé nas Escrituras que ensinam isso tudo e que, segundo cremos, nunca mente.

Há, contudo, afirmações teológicas que se relacionam à realidade presente e verificável. Essas, além de contarem com o apoio das Escrituras (segundo se espera), são confirmadas pela nossa observação simples, honesta e inteligente dos fatos (veja o diálogo entre Filipe e Natanael transcrito acima). Vamos exemplificar mais uma vez: se alguém diz que Deus faz milagres hoje, essa afirmação está ligada à realidade presente e verificável. Por isso, posso checar agora mesmo se ela corresponde aos fatos ou se é uma crença falsa que não se sustenta sob o peso da observação normal. Ao fazer essa análise, não estou demonstrando falta de fé. Na verdade, estou revelando zelo teológico ao usar todas as ferramentas que Deus me deu para distinguir o verdadeiro do falso.

Eu, particularmente, creio que Deus faz milagres hoje, não somente porque alguém disse isso na igreja, mas também porque, sendo tal afirmação relacionada ao presente e sendo verificável, pude constatar alguns casos em que a ação sobrenatural de Deus atuou realizando coisas inexplicáveis. Assim, a simples observação dos fatos serviu para comprovar uma tese teológica, posto que ela era de tal natureza que comportava um exame objetivo e permaneceu de pé depois desse exame.

Suponhamos, porém, que alguém diga que Deus criou unicórnios e os colocou nas praias baianas de Porto Seguro, onde vivem até hoje. Essa afirmação, como se vê mais uma vez, é relativa à realidade presente e verificável. Assim, posso conferir se é verdadeira indo até Porto Seguro e procurando os unicórnios. Se, contudo, chegando lá, perceber que não há unicórnio algum, ou que o que dizem ser unicórnios são apenas pessoas fantasiadas com chifres de papelão, meu dever será rejeitar tal afirmação. Isso não é falta de fé. É apenas dizer não à mentira e demonstrar um mínimo de inteligência diante de quem inventa fantasias.

Por que estou dizendo coisas tão óbvias? Porque há crentes que afirmam que existem unicórnios em Porto Seguro! Como? Bem, há crentes que afirmam que existem certas coisas fantásticas que compõem a realidade presente ― coisas essas, porém, que não podem ser comprovadas quando as submetemos à mais simples verificação. Mesmo assim, esses crentes insistem que devemos crer nelas e acusam de incredulidade todos que não caem nessa conversa.

De fato, no meio evangélico existe uma corrente denominada “continuísmo”. Essa vertente doutrinária entende que os dons extraordinários, de que fala a Bíblia, perduram ainda hoje da mesma forma como se apresentaram nos tempos dos apóstolos.

Considere-se, por exemplo, o dom de curas. Nos dias dos apóstolos, o exercício desse dom fazia parte da experiência regular da igreja, ou seja, era algo constante e diário. De fato, o livro de Atos fala de curas espetaculares ocorrendo aos montes, de segunda a domingo! Naqueles dias, todo tipo de enfermidade desaparecia imediatamente sob a ministração dos santos que tinham o dom de curar. E se alguma pessoa duvidasse da existência desse dom, era muito fácil fazê-la mudar de ideia. Bastava levar essa pessoa ao lugar certo e suas dúvidas desapareceriam no exato momento em que ela visse cegos de nascença começando a enxergar e paraplégicos conhecidos saírem pulando pela rua afora.

Como são, porém, as coisas hoje? Bem, muitos evangélicos continuístas dizem que os dons de curas e milagres ainda existem. Então, pedimos que nos mostrem esses dons em funcionamento. Resultado: eles apontam para curas de doenças que sequer podemos verificar se são reais (dores de coluna, tumores internos, enxaquecas, tendinite…). Nunca vemos curas espetaculares do tipo descrito nos evangelhos e em Atos. E quando aparece alguma, ela é tão rara que a classificamos como um milagre isolado e não como o dom de curas em operação ― um dom que, deve-se frisar, curava gente aos montes. A verdade é que, na maioria esmagadora das vezes, pedimos que nos mostrem os unicórnios e nos apontam pessoas fantasiadas com chifres de papelão.

Faça o teste você mesmo. Ao longo de toda a sua vida, quantos cegos de nascença você conheceu que foram curados milagrosamente? Quantos surdos? Quantos mudos? Quantos paraplégicos? Há idosos crentes entre nós que nunca conheceram um sequer. Ora, se o dom de curas existisse hoje como existiu nos tempos apostólicos, deveríamos ver gente assim aos milhares, morando em nossa vizinhança, trabalhando ao nosso lado e, principalmente, enchendo nossas igrejas. Onde, porém, estão essas pessoas? Ninguém sabe. São os unicórnios de Porto Seguro.

Notem bem: Eu acredito em milagres. Acredito mesmo. Todo crente acredita. Ainda que raros, eles acontecem e eu oro sempre para que ocorram. No entanto, crer na continuidade dos dons de curas e de operação de milagres, aí a história é outra. Pois afirmar que esses dons existem hoje é fazer uma alegação que não passa pelo crivo dos fatos, nem pela verificação normal da realidade. Acolher, portanto, um ensino assim não é ser crente. É ser crédulo. Não é defender uma crença. É sustentar crendices.

Pr. Marcos Granconato

Non nobis, Domine


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