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Eclesiastes 6.1-12 – A Vida e seus Enigmas sem Respostas

 

O capítulo 6 de Eclesiastes é relativamente desconcertante para os estudiosos do livro. O motivo disso é uma estranha montagem de argumentos que são, em certo sentido, desconexos e não lineares. Isso faz com que os estudantes e comentaristas fiquem perplexos e não saibam exatamente como dividir o texto ou a que parte da argumentação ele pertence. É possível notar a falta de unanimidade dos estudiosos em uma simples consulta a várias versões da Bíblia. Normalmente, os editores dividem o texto bíblico e intitulam tais divisões a fim de ajudar o leitor a perceber melhor as unidades e divisões dos escritos e, com a ajuda dos títulos, entender com mais facilidade o assunto que é desenvolvido naquele trecho. A maior parte das versões bíblicas é dividida e nomeada de modo muito semelhante, o que não ocorre em Eclesiastes 6.

Algumas versões ligam o capítulo 6 ao anterior e não fazem nenhuma divisão, nem lhe dão qualquer título. Outras dividem o capítulo em duas partes, algumas optando por blocos de v.1-6 e v.7-12, enquanto outras preferem uma divisão em blocos de v.1-9 e v.10-12. Há mais modelos de divisão e compreensão do capítulo, mas isso é suficiente para que se percebam as dificuldades que esse texto carrega consigo. Além disso, os títulos dados a cada divisão divergem tanto de versão para versão que torna notável a dificuldade de compreender a intenção do autor ao compor o capítulo. Contudo, é possível observar que o escritor toca em temas que ele já tratou em capítulos anteriores. Apesar de isso causar dúvidas sobre a razão de abordá-los novamente, ao que tudo indica, o Pregador não retoma tais assuntos por esquecimento do que escreveu ou por falta de um raciocínio lógico e linear na sua argumentação. Ao contrário, ele faz “recapitulações” nas quais expande seu pensamento em busca de respostas sobre o sentido da existência e sobre como sentir-se completo na vida debaixo do Sol. Entretanto, mesmo lançando mais longe seu anzol, com hipérboles marcantes, ele não é capaz de fisgar as respostas que busca para tais enigmas.

O escritor faz essa tentativa em três áreas e o que encontra, em vez de soluções para suas dúvidas, são três males que afligem o homem: a “insatisfação” (v.1-6), a “insaciedade” (v.7-9) e a “incerteza” (v.10-12). As palavras insatisfação e insaciedade parecem ser sinônimas — e são mesmo nos dicionários de língua portuguesa —, mas elas apresentam distinções no texto bíblico a ser aqui analisado. Apesar de o autor notar esses males que divergem entre si, o texto parece ter unidade de propósito, devendo ser tratado por inteiro, como um bloco único. Nesse bloco, as recapitulações de temas agem como última tentativa de desvendar os enigmas que sujeitam a vida humana debaixo do Sol e que não permitem que o homem se sinta completo em sua existência terrena.

O primeiro dos males que afligem os homens é a “insatisfação” (v.1-6). Por insatisfação queremos dizer que o homem não consegue se satisfazer ou aproveitar as coisas que ele possui.

Seguindo a forma, já conhecida, de introduzir a descrição de suas análises e reflexões sobre a vida, o Pregador inicia o capítulo (v.1): “Observei que há um mal debaixo do Sol, o qual é um grande peso sobre o homem”. Diferente, porém, de outras introduções, ele acrescenta que o assunto que exporá reflete algo que é “um grande peso sobre o homem”, o que quer dizer que é motivo de grande aflição e infelicidade. Por mais irônico que possa parecer, essa grande aflição humana começa com a prosperidade (v.2a): “Deus dá a um homem riqueza, bens e honra e nada lhe falta de tudo que seu coração deseja”. “Riqueza” e “bens” podem parecer sinônimos, mas a primeira aponta para objetos valiosos como ouro, prata e pedras valiosas, que exerciam a função atual do dinheiro, enquanto a segunda aponta para as posses da pessoa como terras, casas, rebanhos, plantações e servos. Quanto à “honra”, ela tem aqui o significado de “distinção”, “respeito” e “prestígio”, qualidades de uma pessoa que é conhecida e benquista na sociedade. Além dessas posses e qualidades, o autor afirma que “nada lhe falta” daquilo que ela “deseja”. A expressão “seu coração”, no texto hebraico, é uma referência à “sua alma”, mas o entendimento dos israelitas antigos nem sempre é como o nosso, de modo que, para nós, “coração” é a palavra mais adequada a transmitir o que o autor tem em mente. Resumindo, não há nada que possa ser dado a essa pessoa que lhe deixe mais feliz, pois ela possui tudo que gostaria de ter.

Até aqui, essa é a condição que todos os homens sonham em ter e desfrutar. Mas, abruptamente, o texto dá uma virada e diz algo surpreendente (v.2b): “Entretanto, Deus não lhe concede que desfrute deles”. O trecho “que desfrute deles” quer dizer “que coma deles”, levando em conta que parte das posses dos homens abastados do passado contabilizava seus bens agrários e pecuários, além do conceito de que viver bem era poder se alimentar com abundância e muito prazer. Esse tema foi abordado no capítulo anterior, mas, nele, o rico não usufruía de seus bens por causa dos muitos trabalhos e preocupações que o envolviam, pela companhia numerosa e interesseira que tinha ao redor e por algum infortúnio da vida a partir de um negócio ruim. Mas, aqui, o responsável pelo homem não aproveitar seus bens não é sua falta de sabedoria e seu apego excessivo ao dinheiro, mas uma ação direta de Deus que “não lhe concede” ou “não lhe dá o poder” de se satisfazer com as coisas que ajuntou para si. Nesse ponto, ainda no começo do capítulo, o leitor fica intrigado, perguntando-se quem, então, é o responsável por esse mal. Será o homem, será Deus ou serão ambos?[1] Mas esse é um enigma para o qual o escritor não dá resposta.

Em lugar de esclarecer essa dúvida, o texto reafirma que as riquezas que alguém obtém (cf. 2.1-11) são, depois, desfrutadas por outra pessoa que não trabalhou por elas (cf. 2.18-23), o que age como um “grande peso sobre o homem” (v.2c): “Em vez disso, outro homem desfrutará deles. Isso é futilidade e uma grande agonia”. A expressão “outro homem” significa, em hebraico, “um homem estranho”, mas isso não aponta necessariamente para alguém desconhecido ou de fora da família. Seguindo o raciocínio do escritor, até o filho desse homem pode ser considerado um homem estranho, pois a intenção não é determinar quem será o beneficiário das posses, mas afirmar que o próprio dono dos bens não desfrutará deles.[2] Quanto à expressão “grande agonia” — excelente modo de descrever tal desventura e desgosto —, trata-se de uma construção semelhante à que foi traduzida como “mal doentio” (5.13,16), valendo-se de uma palavra sinônima que significa “doença”, associada ao termo “mal”, evocando lições já abordadas no livro.

Se até aqui há uma recapitulação de temas já tratados, o Pregador os explica agora de um modo enfático que chega ao exagero (v.3): “Ainda que um homem tenha cem filhos e que viva muitos anos — muitos e muitos anos —, mas não se satisfaça com sua prosperidade nem seja apropriadamente sepultado, digo que é melhor ser uma criança abortada do que ser tal homem”. Ter “cem filhos” nos parece uma extrapolação, mas no mundo antigo essa ideia não seria tão exagerada, mas evocaria um cenário de grande felicidade por possuir uma família e uma posteridade tão numerosa. Basta lembrar-se da infelicidade e desgosto de Abraão (Gn 11.29-30; 15.2-6; 21.1-7), Isaque (Gn 25.19-21,26), Raquel (Gn 30.1-8,22-23) e Ana (1Sm 1.1-18), antes de terem seus filhos, para entender que alegria teria um homem com uma prole tão numerosa. Outro motivo de alegria para alguém seria o fato de viver “muitos e muitos anos”, morrendo apenas em ditosa velhice, o que é dito no Antigo Testamento em tom de realização e de bênção divina (Gn 15.15; 25.8; 1Cr 29.28).

Contudo, mesmo com tantas razões para se alegrar, o texto fala de dois infortúnios que tornariam inúteis todos os motivos de regozijo. O primeiro é que o rico tenha tudo que quer, mas “não se satisfaça com sua prosperidade”, ou seja, não chegue a aproveitar as coisas que tem. O texto não explica porque isso ocorreria, mas descreve um homem que muito se esforça para obter o que quer, mas que não chega a desfrutar disso. O segundo infortúnio é que esse indivíduo não seja “apropriadamente sepultado”. Era uma grande vergonha e desprezo, no passado, deixar um morto sem sepultura (Sl 79.1-4; Jr 16.4; Ap 11.9). Mas ser sepultado “apropriadamente” não significava apenas ser enterrado. Os serviços fúnebres, aos quais os homens davam extrema importância, envolviam fazer honrarias ao morto e prantear por ele. Se sua morte não fizesse com que as pessoas ao seu redor se entristecessem e chorassem sua partida, isso era considerado uma desgraça (Jr 16.4). Com medo que isso ocorresse, Herodes, o Grande, prendeu os judeus mais ilustres da nação em um hipódromo, em Jericó, e ordenou que fossem todos mortos assim que ele falecesse, de modo que sua morte se daria diante de um pranto inigualável por toda a região, o que só não ocorreu porque sua irmã e seu cunhado, deixados ao encargo da matança, libertaram todos os cativos com vida.[3]

Diante desses infortúnios de um homem que teria todos os motivos para se alegrar, mas cuja existência foi marcada pela infelicidade e pela futilidade, o escritor propõe uma comparação muito chocante, ao dizer que “é melhor ser uma criança abortada do que ser tal homem”. Em termos de inutilidade e futilidade, o Pregador procurou a pior situação que ele conseguiu imaginar: a de um aborto. E para ter certeza de que ninguém o compreendesse mal ou menosprezasse o peso da comparação, ele explica com mais detalhes a desgraça que envolve um aborto (v.4): “Pois a criança abortada vem ao mundo futilmente e vai para a escuridão e, na escuridão, ocultará seu nome”. O texto mostra que não há qualquer bem para uma criança abortada, pois sua vinda é inútil e fútil, pois não chegou a viver e caiu no esquecimento, descrito aqui como “escuridão”. Nem nome ela chegou a ter. Se a morte é descrita como um fim que torna inútil a vida tanto do sábio como do tolo (cf. 2.12-17), e que iguala, em certo sentido, o homem aos animais (cf. 3.16-22), a condição de nem chegar a nascer é um mal inominável. Essa é a comparação que o escritor faz ao homem que tem bens dos quais não usufrui, nem na vida, nem em seu sepultamento.

Como se não bastasse o choque de tal comparação, o escritor a desenvolve um pouco mais ao descrever a condição de uma criança abortada (v.5a): “Também não viu a luz do dia, nem chegou a conhecer qualquer coisa”. A expressão “luz do dia” é, no texto hebraico, a palavra “Sol”, mas a ideia não é que a criança abortada deixou de ver o astro celeste, mas que não veio à luz. Apesar dessa realidade triste, parece que o autor quer enfatizar o fato de que ela não “chegou a conhecer qualquer coisa”, algo que será importante em sua argumentação a seguir. Não obstante todas as desgraças de um aborto, o autor diz haver mais vantagem para ele que para o homem rico que não aproveita e nem se satisfaz com aquilo que tem (v.5b-6a): “Há mais descanso para ela que para aquele homem, mesmo que ele vivesse duas vezes por mil anos, mas não se satisfizesse com sua prosperidade”. Muita gente usa mal esse versículo a fim de justificar o direito das mulheres de abortar, dizendo que a criança abortada está em uma boa condição de descanso. Mas o termo hebraico traduzido aqui como “descanso” se refere à liberdade do trabalho, da ansiedade e da miséria, parte do infortúnio que o infeliz homem rico deve suportar.[4] Quer dizer apenas que ela não conheceu nem sofreu as aflições da vida. Jó, diante do sofrimento, lançou mão do mesmo raciocínio do Pregador e perguntou: “Por que, pois, me tiraste da madre? Ah! Se eu morresse antes que olhos nenhuns me vissem! Teria eu sido como se nunca existira e já do ventre teria sido levado à sepultura” (Jó 10.18-19).

Em contraposição à inexistência de vida no feto morto, Salomão, mais uma vez usando um exagero ilustrativo,[5] diz que essa realidade continuaria a mesma, ainda que o homem “vivesse duas vezes por mil anos”. O texto podia ter dito “por dois mil anos”, mas preferiu produzir a ideia de viver de mil anos por duas vezes, tendo duas chances enormes de aproveitar tudo que ajuntou e pelo que tanto trabalhou. Mas a conclusão é que isso não ocorreria nem se ele tivesse outras oportunidades. O trecho traduzido como “não se satisfizesse com sua prosperidade” quer dizer, literalmente, “não visse o bem”, frase que serve de paralelo à ideia do versículo 3. Entretanto, tais palavras, quando simplesmente vertidas para o português, perdem a força e o significado pretendidos pelo autor em sua forma original, podendo até ser malcompreendidas, razão pela qual optamos por repetir aqui a forma do versículo 3.

A explicação final que o Pregador apresenta para sua comparação é a condição final tanto do aborto como do homem que não conseguiu se satisfazer com seus muitos bens (v.6b): “Pois ambos vão para o mesmo lugar”. A conclusão é que tanto a criança abortada como o homem rico que não aproveitou sua riqueza têm uma história completamente trágica e infeliz. Esse versículo costuma seu mal-entendido e utilizado na defesa de uma salvação universal ou, pelo menos, de uma salvação infantil, quando associado ao texto de 2Samuel 12.23, no qual Davi diz que não tinha como trazer de volta a criança morta, mas que se juntaria a ela quando morresse. Em ambos os textos, ir para o “mesmo lugar” não tem nada a ver com vida após a morte — céu e inferno —, mas simplesmente com o lugar dos mortos, ou seja, a sepultura. Trata-se do mesmo drama exposto em 2.12-17, no qual tanto os sábios como os tolos morrem do mesmo modo, não havendo uma vantagem para o sábio no sentido de livrá-lo da sepultura e do esquecimento nas gerações futuras. Assim, a sepultura é o fim de todos neste mundo debaixo do Sol, o que traz futilidade para a condição do homem rico que não aproveitou suas posses enquanto esteve vivo.

O segundo mal que aflige a humanidade é a “insaciedade” (v.7-9). Por insaciedade queremos dizer que o homem nunca se contenta com o que possui e insaciavelmente quer mais.

Em vez de anunciar o problema no início e ilustrá-lo depois com uma comparação, como fez antes, o Pregador começa pela ilustração a fim de explicar o mal que ele observou na vida humana (v.7a): “Todo trabalho do homem visa a encher sua barriga”. O trecho traduzido como “visa a encher sua barriga” quer originalmente dizer “é para sua boca”. Isso significa que o trabalho não existe sem uma necessidade que o motive e essa necessidade é a sobrevivência, pois é preciso se alimentar para manter a vitalidade do corpo. A maior dificuldade dessa condição é que ela é contínua (v.7b): “Mas ele nunca sacia o seu apetite”. Independente de quanto o homem trabalhe para saciar sua fome e as necessidades do seu corpo, elas nunca são plenamente satisfeitas, mas apenas momentaneamente. Várias vezes ao dia o corpo exige a ingestão de comida e da água, ou ele enfraquece até que seus sistemas metabólicos e fisiológicos deixem de funcionar, levando a pessoa à morte. Apesar de o tema do trabalho ter sido abordado com frequência nos capítulos anteriores, o ponto que o escritor quer enfatizar e utilizar no seu argumento aqui é insaciedade do corpo, ou seja, o fato de ser preciso alimentá-lo sempre, sem que tal necessidade deixe de existir até que a morte chegue.

O constante anseio por comida e água sujeita toda a humanidade, independente de suas condições pessoais (v.8a): “Pois que vantagem tem o sábio sobre o tolo?”. Essa mesma pergunta foi feita no capítulo 2. A diferença é que lá, o mal que igualava a realidade dos sábios e dos tolos é a morte, que vem a todos. Mas aqui, o que iguala os sábios aos insensatos é a necessidade constante de comida e o fato de que qualquer alimentação que recebam nunca basta para a manutenção da sua vida. Na verdade, nem a quantidade de trabalho, a fim de se obter sustento, torna os homens diferentes uns dos outros nesse quesito (v.8b): “E que vantagem tem o pobre que sabe andar entre os vivos?”. Saber “andar entre os vivos” aqui quer dizer conseguir sobreviver. Enquanto muitos pobres morrem de fome ao redor do mundo, há outros que fazem o que for preciso para continuar vivos, trabalhando e se esforçando o tanto que for necessário. Certamente, os pobres têm de trabalhar e se desgastar muito mais que os ricos a fim de suprir suas necessidades, o que deveria lhes dar alguma vantagem ou preeminência sobre os outros. Mas o autor iguala o pobre que consegue viver a todos os outros, pois precisa do mesmo que os demais e “nunca sacia o seu apetite” (v.7).

Tendo falado e exemplificado a necessidade constante de alimentos que o corpo humano tem, o autor aborda o problema que tem em mente, o qual também é um tipo de apetite que nunca é saciado (v.9a): “Melhor é o que os olhos veem que aquilo que o coração fica a desejar”. A ansiedade do homem, nesse caso, não tem a ver com o que seu corpo precisa, mas com as coisas que seu “coração fica a desejar”. A frase traduzida como “aquilo que o coração fica a desejar” aparece na forma hebraica como “o vagar da alma”, expressão que aponta para os desejos que o homem tem e com os quais vive a pensar e sonhar. Assim, o mal abordado pelo Pregador, nesse ponto, é a cobiça insaciável. É claro que alguém assim nunca tem tudo que quer, do mesmo modo como o corpo nunca recebe o que lhe basta. Enquanto o primeiro homem tinha tudo que queria, mas não aproveitava, esse também não aproveita o que tem porque ama apenas as coisas que ele não possui. Por isso, o autor diz que “melhor é o que os olhos veem”, ou seja, aquilo que a pessoa tem diante de si, em sua posse. E nesse mal é possível igualar os homens mais e menos instruídos, com mais e com menos posses, com mais ou com menos habilidades, dos quais fala o versículo 8. Para todos eles, que precisam de alimentos do mesmo jeito, é preciso também que se satisfaçam com o que têm diante de si, aquilo “que os olhos veem”.[6]

Esse versículo contém uma mensagem parecida com o dito popular que afirma ser “melhor ter um pássaro na mão do que dois voando”. A lição desse dito e também do versículo é que as pessoas devem viver contentes com o que possuem. É claro que esse contentamento só é possível se a vida e tudo que se possui forem considerados “presentes de Deus” (cf. 3.13; 5.19). Mas a pessoa que não vê a vida desse modo é sempre infeliz por ser insaciável. Normalmente, tais pessoas desejam tanto algo que não possuem que a vida perde a graça para elas. Imaginam que só haverá sentido e felicidade se obtiverem o que seu coração deseja e fazem tudo que for preciso para conseguir. Mas ao obter seu bem amado, elas desfrutam dele pouco tempo, pois passam a amar e desejar outra coisa que não têm. Para representar essa ideia há outro dito popular que afirma que “a grama do vizinho é sempre mais verde”. Esse é um apetite que nunca é saciado e tal pessoa vê a vida passando inutilmente enquanto deseja mais, mas nada lhe basta. Contudo, essa não é uma lição muito difícil de compreender. Por que, então, o homem não consegue se contentar com o que tem? Qual é a fórmula de se atingir o contentamento? A essas perguntas o Pregador não dá respostas e elas permanecem sendo um enigma para a humanidade. O escritor, por sua vez, não poderia qualificar esse grande de mal de outra forma (v.9b): “Isso também é futilidade e correr atrás do vento”.

O terceiro e último dos males expostos como motivo de aflição é a “incerteza” (v.10-12). Por incerteza queremos dizer que o homem não consegue saber ao certo quais são as melhores decisões a se tomar e o que ocorrerá com ele no futuro.

A fim de abordar esse tema, o escritor parece querer voltar aos fundamentos da existência do mundo e da humanidade, a fim de buscar neles as ferramentas que o ajudarão a expressar o mal que tem em mente (v.10a): “Tudo que existe já recebeu seu nome e já se tem conhecimento sobre o que é o homem”. Ao ler que todas as coisas já receberam “seu nome”, nossa memória nos leva a dois lugares. O primeiro lugar é diante de Deus, na criação do universo, que, depois de dizer “haja luz” (Gn 1.3), também “chamou Deus à luz Dia e às trevas, Noite” (Gn 1.5).[7] O segundo lugar a que nossa memória nos leva é ao jardim do Éden, onde o Senhor, depois de criar tudo que existe, deixou a cargo do homem dar nomes aos animais (Gn 2.19-20). É claro que nem tudo que existe hoje já existia no Éden. Mas não parece que o escritor quer levar seus leitores a uma longa jornada na história do desenvolvimento tecnológico, científico e filosófico, pois logo a seguir ele menciona o “conhecimento sobre o que é o homem”.

Assim, nossos olhos deixam de lado o desenrolar da história humana e voltam novamente ao Éden, onde o homem foi criado, segundo a descrição da sua formação a partir do pó da terra e do sopro de vida que o Senhor lhe introduziu (Gn 2.7). Lá, também, está o conhecimento de que não era bom que o homem vivesse sozinho, razão pela qual lhe foi dada uma companheira compatível (Gn 2.18,21-22). Com isso, temos conhecimento de que o ser humano foi criado por Deus, que lhe foi dado o poder de dominar os animais e comer dos frutos da terra, que o homem precisa da sua contraparte feminina e que ele tinha uma relação especial com Deus, diferente do restante da criação.

Mas, ainda no Éden, outros acontecimentos guardaram para a humanidade conhecimentos e experiências indeléveis, da qual a principal é a consequência de se rebelar contra o santo criador (v.10b): “E que não tem poder para contender com aquele que é mais poderoso que ele”. Nesse texto, “aquele que é mais poderoso que ele” é uma referência a Deus. Diante disso, é inevitável que nossos olhos não pulem para a página seguinte, onde, em Gênesis 3, o ser humano desafia as determinações do soberano e sofre as duras consequências da desobediência. Apesar de o Senhor ter deixado claro que havia uma árvore específica da qual o homem e a mulher não podiam comer, sob pena de morte (Gn 2.16,17), a tentação de ser como Deus e de assumir as rédeas dos rumos de sua vida (Gn 3.1-6) fez com que o pecado tomasse a raça humana (Gn 3.7-8). Isso também faz parte do “conhecimento sobre o que o homem é”: Ele é pecador e sujeito às maldições de Deus por causa do pecado (Gn 3.16-19). A partir de então, o homem passou a conviver com a mesma morte sobre a qual Salomão dá atenção em Eclesiastes e à qual ele rende a falta de sentido na vida debaixo do Sol, além de todas as outras dificuldades a que foi sujeitado.

A vida humana tem sido marcada por experiências e tentativas de fugir justamente da sujeição da morte e das demais dificuldades. Em relação a algumas limitações e sofrimentos, o homem tem sido relativamente bem-sucedido, construindo máquinas que lhe diminuam o esforço e lhe aliviem o suor do rosto, ao passo que também tornou mais suaves as dores e sofrimentos da gestação da mulher. Mas contra seu mal maior — a morte — o homem não obtém sucesso (v.11): “Pois quanto mais palavras são ditas, maior é a futilidade. Que vantagem há nisso para o homem?”. Esse texto mostra que não é possível discutir com Deus a condição que ele impôs sobre a humanidade por causa do pecado. Palavras, argumentos, tentativas, projetos, experimentos, desenvolvimentos e avanços são inúteis para deter o poder da morte. O máximo que o homem conseguiu, depois de tanto esforço, foi aumentar em alguns anos a expectativa de vida das pessoas por meio da medicina, da farmacologia e de diversas outras ciências. Todas as tentativas são fúteis contra a morte e contra aquele que é mais poderoso.

Sendo assim, as pessoas têm de ser sábias nos seus dias de vida. Mas como fazer isso com tantas falhas como insatisfação e insaciedade? Por isso, o próprio escritor pergunta (v.12a): “Quem sabe o que é melhor para o homem nos poucos dias da sua vida de futilidades?”. A inevitabilidade da morte faz com que o homem que olha apenas para as coisas debaixo do Sol se sinta obrigado a viver agora tudo que puder e da melhor maneira que conseguir. Afinal, seus dias se passam e não voltam atrás (v.12b): “Pois eles se passam como a sombra”. Do mesmo modo que a sombra segue em apenas uma direção, sem que o homem possa fazê-la voltar atrás, não se pode evitar o passar dos dias e dos anos, os quais aproximam o homem cada vez mais da sua morte. Assim, ele precisa viver tudo que pode agora, a cada dia, a cada minuto, a cada segundo. Mas tão logo se decida a fazer isso, as perguntas que lhe vêm à mente são: “Como fazer para viver bem durante a vida? Como aproveitá-la?”.

O Pregador não torna essa questão mais fácil (v.12c): “Quem pode dizer ao homem o que ocorrerá no seu futuro, debaixo do Sol?”. Se já não era possível saber “o que é melhor para o homem”, ou seja, quais são as decisões corretas para cada pessoa a fim de aproveitar bem a vida, afirma-se, também, que não é possível saber o que cada decisão produzirá no futuro, nem as circunstâncias que serão impostas à vida de cada um. Essas duas dúvidas — “o que é melhor?” e “o que acontecerá?” — tornam fúteis todos os planos que qualquer um possa fazer para sua vida. Até o plano de vida mais bem-elaborado pode dar em nada, de uma hora para outra, por causa de um acontecimento imprevisto ou pela descoberta de que o plano que parecia ótimo conduzia, na verdade, a consequências amargas. Isso quer dizer que, mesmo o homem sabendo de sua morte e da necessidade de viver bem enquanto pode, ele não tem como garantir que conseguirá fazer isso. Ele tem de conviver com essas perguntas sem respostas esperando descobrir aonde vai chegar e como sua história se desenrolará.

Olhar para esses três males traz desespero para qualquer um. Afinal, o homem pode ter muito e não aproveitar nada. Pode, também, ignorar os bens que tem diante dos seus olhos e sempre desejar o que não tem, nunca se sentido contente. Por fim, ele pode fazer o melhor plano para garantir o usufruto dos seus dias de vida e perceber que seus propósitos foram maltraçados ou que eles eram frágeis diante de ocorrências que ele nunca sequer imaginou ou esperou. Que sentido um homem desses pode encontrar na vida debaixo do Sol? Nenhum! Foi até aqui que o Pregador trouxe seus leitores: até à conclusão de que “nenhum sentido há na vida debaixo do Sol”. Afinal, o homem percebe que não pode encontrar sentido e realização nos bens que tem, nos que gostaria de ter ou no conhecimento que ele acha que possui. Todas essas coisas são fúteis para dar significado à vida.

Contudo, o escritor não é um tipo de estraga-prazeres que quer tirar do homem qualquer alegria ou esperança que tenha. Ele quer que todos os caminhos que o homem supõe serem bons sejam definitivamente bloqueados a fim de ver somente uma saída: olhar para as coisas acima do céu.[8] Ao reconhecer Deus em sua vida, como doador de tudo que tem e como governador de todas as circunstâncias ao seu redor, o indivíduo poderá aprender a viver de modo dependente daquele que é mais poderoso que ele. Ao reconhecer isso, estará livre para, humildemente, aproveitar o que o Senhor lhe dá e descobrir que “bom e conveniente é comer, beber e ver o fruto de todo o seu trabalho no qual se esforçou debaixo do Sol nos dias da sua breve vida que Deus lhe deu, pois essa é a sua recompensa” (5.18) e que tais bens são “presentes de Deus” (cf. 3.13; 5.19). Isso só pode ser feito por meio da fé e da esperança em Jesus Cristo e não na busca de soluções para enigmas da vida que insistem em não ter respostas.[9] Assim, na primeira metade do livro de Eclesiastes, o leitor moderno percebe que a única resposta correta é que somente em Cristo o homem encontra o sentido dessa vida e vê abrirem-se as portas para a próxima vida, na qual não haverá necessidade do brilho do Sol.

Pr. Thomas Tronco

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[1] Winter, J. Opening Up Ecclesiastes. Opening Up Commentary. Leominster: Day One Publications, 2005, p. 86.

[2] Walvoord, J. F.; Zuck, R. B. The Bible Knowledge Commentary: Old Testament. Colorado Springs: David C. Cook, 1983, p. 990.

[3] Josefo, Flávio. História dos Hebreus. 8ª ed. Rio de Janeiro: CPAD, 2004, p. 801-802, 804.

[4] The NET Bible. First Edition. Biblical Studies Press: www.bible.org, 2006, [Ec 6.5 – nota 25].

[5] Ogden, G. S.; Zogbo, L. A Handbook on Ecclesiastes. UBS Handbook Series. New York: United Bible Societies, 1998, p. 191.

[6] Garrett, D. A. Proverbs, Ecclesiastes, Song of Songs. The New American Commentary. Vol. 14. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1993, p. 316.

[7] Wiersbe, W. W. Be Satisfied. “Be” Commentary Series. Wheaton: Victor Books, 1996, p. 80.

[8] Eaton, Michael A; Carr, G. Lloyd. Eclesiastes e Cantares: Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova, 2006, p. 115.

[9] Pinto, Carlos Osvaldo Cardoso. Foco e desenvolvimento no Antigo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2006, p. 571.

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