Sexta, 19 de Abril de 2024
   
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Carta a um Leitor Cético

Pastoral

Recentemente, recebi a seguinte carta de um dos visitantes do nosso site. Mudei o nome dele, por razões óbvias:

Em primeiro lugar, gostaria de cumprimentá-lo pelas obras em geral que tanto o senhor como a sua igreja estão engajados. Peço desculpas por importunar e garanto-lhe que esta mensagem não tem nenhuma outra intenção além de trocar pontos de vista, uma vez que, em relação à religião, essa prática parece-me extremamente escassa. 

Entrei por acaso no site de sua igreja e achei um artigo denominado O Pai de Sherlock Holmes e o Mistério das Fadinhas. Acredito que era uma palavra pastoral. Chamou-me a atenção o trecho que você diz que “crer em fábulas e em outras mentiras não é questão de falta de inteligência. Trata-se da propensão do homem sem Deus, sendo, portanto, um problema espiritual”.

Entretanto, devo questionar se o modelo de fábulas, como o senhor mesmo diz, não pode ser aplicado também ao cristianismo, uma vez que o tipo de crença dessa religião é tão fantasioso quanto qualquer fada ou duende. O filósofo Nietzsche, em seu livro Assim falou Zaratustra, mostra que o cristianismo é uma religião baseada em preceitos que estão presentes em diversas crenças anteriores à figura de Cristo. Gostaria de saber sua opinião em relação a isso. 

Att.

Tomé

Como sei que os questionamentos do leitor são os mesmos que pairam no coração de muita gente sincera, decidi publicar a resposta que enviei para ele. Veja a seguir:

Oi, Tomé! Obrigado por escrever e também pelas palavras de incentivo e apreciação.

Quanto à questão que você levantou, realmente muitos críticos do cristianismo (até bem antes de Nietzsche) disseram que várias coisas afirmadas pelos escritores do Novo Testamento eram uma versão pouco criativa dos mitos ensinados nas diversas religiões de mistério que se multiplicavam entre os pagãos da antiguidade. Um ser divino que se encarna, que nasce de uma virgem, que morre e depois ressuscita é, de fato, tema comum nessas religiões e, já no século 2, os teólogos cristãos tiveram de lidar com os ataques que, com base nisso, fizeram contra sua fé. Estou dizendo isso para destacar que nós cristãos não estamos cegos para essas críticas e sabemos muito bem das dificuldades com que temos de lidar na defesa daquilo que acreditamos e das coisas pelas quais estamos dispostos a dar nossa própria vida.

Para dar sequência à minha resposta, devo afirmar de início que há uma grande diferença entre acreditar em fábulas oriundas da imaginação humana e adotar uma concepção sobrenaturalista do universo em que a gente vive. O homem que crê em fábulas recepciona crenças bobas e ingênuas que nascem ou da ignorância ou da criatividade das pessoas e as aceita sem que haja qualquer base histórica ou objetiva para elas. Você mencionou Nietzsche. Por coincidência estou lendo o livro dele a que você aludiu (Zaratustra) e já estou na metade. Não cheguei ainda na parte em que ele fala sobre os supostos mitos plagiados do cristianismo (se já passei essa parte não me lembro), mas já li a passagem sobre o pórtico, em que ele expõe sua crença no “eterno retorno”, ou seja, a visão de que, num universo fechado, o conjunto fixo de energia e possibilidades um dia vai se ajustar novamente nos mesmos moldes e combinações já passados, de forma que a história vai se repetir até em pequenos detalhes. Isso significa que, salvo melhor juízo, para Nietzsche esse evento que estou vivendo agora, teclando em meu computador, vai ocorrer novamente com os exatos detalhes que o caracterizam agora e se repetirá num ciclo contínuo, eterno e sem fim.

De minha parte, não vejo qualquer razoabilidade nisso. Não vejo provas objetivas para essa crença, nem sentido nessa ideia. Para mim, isso é mito. Tudo bem que é um mito bem sofisticado, mas adotá-lo, sem qualquer evidência que o apoie é, basicamente, o mesmo que aceitar gratuitamente a existência do bicho-papão.

Vejo assim que, pelo menos nesse aspecto, Nietzsche cria, numa espécie de fábula, algo procedente apenas da criatividade e da imaginação, carente de provas e sem sentido. O curioso é que essa também era a forma de pensar de grande parte dos proponentes da antiga filosofia helenista que adotava uma visão cíclica da história. Logo, Nietsche crê num mito antigo, exatamente o erro que ele aponta nos cristãos!

Mas voltando à sua questão, qual é a diferença entre a crença em fábulas e a crença num universo em que há espaço para o sobrenatural? Bem, o cristão que acolhe a possibilidade do evento sobrenatural não acredita necessariamente em qualquer coisa como um bobo ingênuo, fácil de enganar (como fez o “pai de Sherlock Holmes”). Ele acredita, isso sim, que existe um Deus no céu, que esse Deus criou leis naturais, mas que ele está acima das leis que criou, podendo interferir nelas quando quiser. Portanto, em vez de aceitar a ideia de um universo fechado, ele crê num universo aberto a intervenções divinas e sabe que coisas fora do comum podem acontecer se Deus assim desejar.

A crença desse homem, porém, está condicionada a certos critérios. Como cristãos, não aceitamos tudo, seguindo gente que vende lencinhos mágicos ou faz orações poderosas (como as desses charlatães que a gente vê na TV). Cremos no sobrenatural sim, mas quando ouvimos um relato que desafia a nossa razão, avaliamos tudo objetivamente, sabendo que aquilo é possível num universo aberto, mas que pode haver algum erro de avaliação (ou mesmo uma fraude!) e que o que dizem ser sobrenatural pode ser simplesmente um evento natural interpretado de forma equivocada.

Como, então, sendo tão criteriosos, aceitamos os fatos narrados na Bíblia? Que provas temos de que eventos como a ressurreição aconteceram e que não passam de mitos? Bem, nós cremos nesses eventos porque aceitamos o relato de testemunhas oculares que se propuseram a escrever fatos e não fábulas.

Veja, por exemplo, o que diz Lucas, um dos evangelistas que narrou diversos episódios sobrenaturais relativos a Jesus. Observe o que ele diz logo no início de seu evangelho (que foi dedicado a um amigo chamado Teófilo) e veja como o que ele se propõe a escrever é um relato sério, fruto de profunda investigação, construído especialmente a partir de entrevistas com pessoas que vivenciaram os eventos a serem narrados. Observe seu estilo e suas palavras (os grifos são meus): “Visto que muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram, conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas oculares e ministros da palavra, igualmente a mim me pareceu bem, depois de acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, Excelentíssimo Teófilo, uma exposição em ordem para que tenhas plena certeza das verdades em que foste instruído” (Lucas 1.1-4).

Depois de dizer isso, Lucas narra episódios como o nascimento virginal, os milagres de Jesus, sua morte e ressurreição, enfim, coisas que as pessoas dizem ser mitos. Lucas, porém, como se vê, não está interessado em escrever fábulas. Ele está disposto a buscar provas, coletá-las, classificá-las e, enfim, narrar os fatos como ocorreram, realizando um trabalho sério de historiador.

Recentemente, li acerca de um arqueólogo famoso do final do século 19 que tentou desmascarar a historicidade de Lucas estudando o Livro de Atos (também de autoria dele e também incluído na Bíblia). Ele se chamava William Ramsay e se destacava como um arqueólogo historiador e agnóstico convicto. Quando Ramsay começou a fazer isso, descobriu em Lucas um dos maiores historiadores da antiguidade, dono de uma precisão histórica e de um método de coleta de dados incríveis. Ramsay foi convencido pelos relatos de Lucas e se tornou cristão! Desculpe a ironia, mas acaso você conhece algum erudito que começou a estudar Homero e se convenceu da existência das sereias e do Ciclope?

Meu caro Tomé, note que, assim como Lucas, outros escritores do Novo Testamento expõem narrativas com coloração histórica que em nada se relacionam com a linguagem mítica das fábulas antigas. Há uma passagem escrita por João que é uma das minhas favoritas e que narra o que aconteceu quando Pedro e João chegaram ao sepulcro de Cristo no domingo pela manhã e o acharam vazio. Veja: “Ambos corriam juntos, mas o outro discípulo correu mais depressa do que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro; e, abaixando-se, viu os lençóis de linho; todavia, não entrou. Então, Simão Pedro, seguindo-o, chegou e entrou no sepulcro. Ele também viu os lençóis, e o lenço que estivera sobre a cabeça de Jesus e que não estava com os lençóis, mas deixado num lugar à parte. Então, entrou também o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro, e viu, e creu” (João 20.4-8).

Tomé, você consegue ver a riqueza de detalhes aqui? Seja sincero: a linguagem dessa narrativa parece um conto de fadas e de duendes? Não fica evidente que se trata de um relato preciso de fatos? Pense bem: se alguém quisesse inventar aqui um deus mítico que vence a morte e sai triunfante do túmulo, à moda dos deuses do Olimpo, será que o tal escritor descreveria as coisas desse modo? Considere o detalhe sobre o lenço que estava dobrado num canto. Será que o criador de um herói mitológico colocaria esse herói separando lencinhos logo depois de vencer a morte? Ora, por favor! É claro que não! O que temos aqui é um relato vivo, rico em detalhes surpreendentes que jamais poderiam advir da cabeça de alguém que pretende contar histórias do tipo do Sítio do Pica-Pau Amarelo.

Eu tenho mais um texto para lhe mostrar. Seja paciente comigo e use a sua razão. Não peço que acredite em fadas. Peço somente que avalie as palavras de homens sérios do passado (os escritores do Novo Testamento), que não tinham a intenção de enganar ninguém. Antes foram os responsáveis pela criação do maior sistema ético que a humanidade já viu. É no que dizem esses homens que os cristãos acreditam e não nas fábulas de Esopo.

Assim, veja agora o que Pedro diz. Ele não escreveu nenhum evangelho. Talvez tenha supervisionado a produção do Evangelho de Marcos, mas não o escreveu diretamente. Pedro é o autor de duas cartas que estão na Bíblia. Numa delas ele fala da transfiguração de Jesus, um episódio sobrenatural narrado nos evangelhos (Mateus 17.1-8) e de que ele foi testemunha ocular. Veja o que ele diz a respeito do que viu (grifei algumas partes): “Porque não vos demos a conhecer o poder e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo seguindo fábulas engenhosamente inventadas, mas nós mesmos fomos testemunhas oculares da sua majestade, pois ele recebeu, da parte de Deus Pai, honra e glória, quando pela glória excelsa lhe foi enviada a seguinte voz: ‘Este é o meu Filho amado em quem me comprazo’. Ora, esta voz, vinda do céu, nós a ouvimos quando estávamos com ele no monte santo” (2Pedro 1.16-18).

É em testemunhos assim que os cristãos acreditam, Tomé, pois vemos seriedade, firmeza e coerência em afirmações como essa que citei acima.  

Você, então, dirá: “Mas como podemos ter certeza de que eles não inventaram tudo? Como podemos saber se eles não criaram toda essa história para obter fama, poder, dinheiro ou mesmo para conquistar mulheres?”.

Essa pergunta realmente faz sentido e a resposta é simples: os apóstolos nunca tiveram nenhuma vantagem ao afirmar o que afirmaram. Muito pelo contrário! Eles só se deram mal ao divulgar as histórias que proclamaram. Com efeito, eles perderam amizades, perderam suas famílias, perderam o sossego e perderam seus bens saindo pelo mundo, dizendo o que viram. No fim, eles perderam a própria vida. Paulo, um desses homens, escreveu o seguinte sobre isso: “Porque me parece que Deus nos colocou a nós, os apóstolos, em último lugar, como condenados à morte. Viemos a ser um espetáculo para o mundo, tanto diante de anjos como de homens... Até agora estamos passando fome, sede e necessidade de roupas; estamos sendo tratados brutalmente, não temos residência certa e trabalhamos arduamente com nossas próprias mãos. Quando somos amaldiçoados, abençoamos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, respondemos amavelmente. Até agora nos tornamos a escória da terra, o lixo do mundo” (1Coríntios 4.9,11-13).

Menos de um ano depois, ele escreveu à mesma igreja de Corinto, na Grécia, falando especificamente de sua experiência pessoal: “... trabalhei muito mais, fui encarcerado mais vezes, fui açoitado mais severamente e exposto à morte repetidas vezes. Cinco vezes recebi dos judeus trinta e nove açoites. Três vezes fui golpeado com varas, uma vez apedrejado, três vezes sofri naufrágio, passei uma noite e um dia exposto à fúria do mar. Estive continuamente viajando de uma parte a outra, enfrentei perigos nos rios, perigos de assaltantes, perigos dos meus compatriotas, perigos dos gentios, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, e perigos dos falsos irmãos. Trabalhei arduamente; muitas vezes fiquei sem dormir, passei fome e sede, e muitas vezes fiquei em jejum; suportei frio e nudez...” (2Coríntios 11.23-27). 

Seja honesto, Tomé. Será que alguém pagaria esse preço por uma fábula que sabia ter inventado? Será que Monteiro Lobato se disporia a enfrentar toda a oposição do mundo para defender a existência da Emília? Será que ele se deixaria degolar, ser crucificado ou queimado vivo por sua história sobre o Visconde de Sabugosa?

Se tudo fosse mito, os apóstolos confessariam isso depressa, tão logo levassem as primeiras chicotadas ou tão logo passassem uma noite numa “confortável” prisão subterrânea romana. Eles, no entanto, não se deixaram intimidar por nada. Reis e juízes poderosos tentaram fazê-los calar, açoitaram-nos, prenderam-nos, ameaçaram-nos, passaram-nos ao fio da espada. Nada, porém, os fazia voltar atrás.

Eles saíram pelo mundo por anos a fio enfrentando tempestades, dormindo ao relento, empreendendo longas e perigosas jornadas, levando pedradas e chicotadas, tudo com o objetivo de anunciar o que viram e ouviram — coisas que você, Tomé, chamou de fábulas. No final, morreram em meio a terríveis misérias e opressões, condenados pelo crime de afirmar que o que viram e ouviram era real. Somente um entre eles — João — não foi martirizado. A pena dele foi o exílio numa pequena ilha chamada Patmos.

Assim, Tomé, o que nós cristãos acolhemos não são um conjunto de historinhas do Olimpo, de Nárnia, de Camelot ou da Disney. Tampouco nos dobramos diante de filósofos zombeteiros e vazios como Nietzsche que, confortáveis em suas casas, diante do fogo da lareira, zombaram daqueles que tentaram mostrar com amor a verdade aos homens e que, por isso, também conheceram o fogo, mas o da pira e não o da lareira. Nós cremos, isto sim, em testemunhas oculares que se deixaram degolar antes de negar o que disseram.

Espero que você, com seriedade e sem preconceitos, considere essas coisas e enxergue, assim, a razoabilidade da fé cristã.

Escreva quando quiser... Que Deus o abençoe.

Abraços,

 

Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria

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