Quinta, 28 de Março de 2024
   
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Colossenses 3.18-4.1 - A Casa dos Homens Novos

  

A heresia que se propagava em Colossos, com sua tônica numa suposta elite espiritual, estimulava o orgulho, a postura arrogante diante de qualquer um que não pertencesse ao grupo de homens “espirituais” e que não tivesse acesso ao pleno conhecimento do que os hereges entendiam ser os mistérios divinos. Os proponentes dessas doutrinas tentavam passar uma imagem de humildade diante de todos, mas Paulo os desmascarou na Carta aos Colossenses, dizendo que sua modéstia era apenas aparente – um conjunto de práticas ascéticas que não servia para nada (2.18, 23).

O fato é que, propagando desvios daquela natureza, os mestres do gnosticismo nascente certamente estimulavam em seus seguidores um insuportável sentimento de superioridade. Ora, é notório que pessoas que nutrem esses sentimentos são orgulhosas, não se sujeitam a ninguém, antes desprezam e humilham os outros. Especialmente aqueles com quem convivem têm que enfrentar manifestações diárias de rebeldia e aspereza, além de assistir constantes brigas e práticas injustas. Vê-se, assim, que da heresia nasce o orgulho e do orgulho vêm as discórdias (1Tm 6.3-5).

Evidentemente, os sinais malignos da soberba são sentidos primeiramente em casa. Por isso, depois de ensinar como os crentes devem agir na igreja, no convívio com os irmãos (3.12-17), Paulo se volta para o lar cristão, admoestando esposas, maridos, filhos e pais a nutrir entre si uma postura condizente com a verdade que abraçaram. Naqueles dias, a casa de um homem abrangia também seus escravos. Assim, o Apóstolo ensina ainda como deveria ser a relação entre servos e senhores, estimulando a obediência, a justiça e o respeito mútuo.

Voltando-se, então, para a casa do crente, Paulo dirige-se inicialmente às esposas. As mulheres eram alvos especiais dos falsos mestres que se aproximavam delas, inclusive, na expectativa de obter favores sexuais (2Tm 3.6).[1] Paulo sabia que se as esposas dessem ouvidos às fabulas propostas pelos hereges, elas não somente ficariam expostas aos assédios de homens lascivos, mas também olhariam para seus maridos crentes como pessoas inferiores, que não pertenciam à classe superior dos detentores da gnose. Isso as levaria a desprezá-los, chegando talvez a se opor à sua liderança.

Uma atitude de sujeição é então requerida das esposas cristãs. Para admoestá-las nesse sentido, Paulo usa um verbo (ὑποτάσσω) cujo sentido é obedecer[2], colocar-se sob o controle de outrem, acolhendo seus conselhos e direção. Isso tudo implica uma disposição voluntária em ceder e cooperar, rendendo-se ao comando de um líder. Essa ordem dirigida às mulheres casadas é repetida nos mesmos termos por Paulo em Efésios 5.22 e Tito 2.4-5. Também Pedro a enuncia (1Pe 3.1,5-6), sendo certo que suas raízes remontam aos tempos do Éden (Gn 3.16), jamais devendo ser entendida como uma evidência da inferioridade da mulher[3], mas como uma expressão da forma que Deus escolheu ordenar a vida em família.

O Apóstolo explica que a sujeição ao marido deve existir por parte da esposa porque isso “convém no Senhor” (ARA). A expressão constante do texto grego é ἀνῆκεν ἐν κυρίῳ. O verbo que aqui aparece (ἀνήκω) ocorre somente mais duas vezes no Novo Testamento (Ef 5.4; Fm 8) e significa ser conveniente, ser próprio de, combinar com ou ser devido a alguém. O que Paulo, portanto, está dizendo é que a submissão ao marido é algo próprio da mulher que pertence ao Senhor, uma atitude que combina com a posição espiritual ocupada por ela. Note-se que o verbo carrega também o sentido de dever. Isso mostra ainda que a sujeição aqui requerida não é opcional. Trata-se de um ideal que a mulher crente precisa alcançar, se quiser de fato agir como alguém que pertence a Cristo.

É possível que Paulo, ao mencionar nesse ponto o fato da esposa cristã estar “no Senhor”, tenha também como propósito trazer à lembrança de seus leitores a realidade de que Cristo é o Soberano supremo, estando toda a igreja dentro da esfera de sua influência e absoluta autoridade. Como é sabido, a heresia que grassava na região de Colossos reduzia Cristo a uma mera entidade angélica entre muitas outras (2.18) e, assim, desencorajava a devoção e obediência exclusivas a ele. Ao destacar que o crente está “no Senhor”, Paulo evoca a noção, oposta ao pensamento gnóstico, de que só Cristo tem o domínio sobre o seu povo, devendo cada crente devotar-se unicamente a ele e andar, fora ou dentro de casa, como alguém que vive sob seu senhorio.

A admoestação seguinte é dirigida aos maridos. Paulo diz que eles devem amar “cada um a sua mulher” (19). O verbo usado aqui (ἀγαπάω) está no Imperativo Ativo, denotando, assim, o dever de respeitar, estimar e considerar; tudo isso aquecido pela mais forte afeição. Agapaō também denota a atitude compassiva e terna que deseja o bem do outro (Mc 10.21) e que trabalha para que esse bem seja alcançado, mesmo quando não é correspondido à altura (2Co 12.15; Ef 5.25-30). A amplitude da dimensão vivencial de agapaō pode também ser percebida quando se observa o seu uso aplicado a escravos e discípulos. Nesses casos, o verbo é usado para descrever aquele que serve com fidelidade (Mt 6.24) e permanece ao lado mesmo durante a provação (Tg 1.12).

Note-se, desse modo, que o amor devido pelo marido crente à esposa não se perfaz nos limites da alma ou da mente. Não é um simples impulso interior ou um incerto sentimento romântico desbotado pela ação do tempo e encerrado em algum canto do coração. O amor de que Paulo fala ultrapassa essas fronteiras e se perfaz no trato do dia-a-dia, numa disposição constante, desprendida, humilde e paciente de aperfeiçoar, alegrar, proteger e honrar o outro.

Em Colossos, a heresia que ameaçava a igreja ia na contramão disso tudo, pois ao envenenar os homens com a mentira de que podiam pertencer à elite dos detentores da gnose, impingia neles as sementes do orgulho e do conseqüente desprezo pelos outros, inclusive por suas esposas. É que a falsa doutrina e a apostasia não têm limites em seu poder de destruição. Quem as acolhe bombardeia a igreja, devasta a própria casa e, muitas vezes, se lança sobre espadas, trazendo terríveis dores para si mesmo (1Tm 6.10, in fine).

O v. 19 termina com uma admoestação que destaca um dos modos como o amor devido à esposa se comporta. Paulo diz “não a tratem com amargura”. Tratar com amargura é tradução de um verbo apenas (πικραίνω), cujo significado básico é tornar amargo. Em Apocalipse, aquilo que é tornado amargo provoca mal estar e até mata quando ingerido (Ap 8.11; 10.9-10). Ao usar esse verbo, portanto, Paulo está dizendo figurativamente aos maridos crentes que eles não devem provocar mal estar nas esposas através da forma como as tratam (1Pe 3.7). Ironia, aspereza, grosseria, desprezo e irritação são alguns ingredientes do veneno amargo que muitos homens servem à sua esposa, às vezes até publicamente. O uso deles, porém, é aqui vedado ao marido cristão, uma vez que compõem a antítese do amor verdadeiro.

Ao concluir as considerações referentes ao que Paulo ensina sobre o relacionamento entre maridos e esposas, cabe aqui uma breve digressão: note-se que os versos 18 e 19 pressupõem uma relação marital monogâmica e heterossexual. Por mais óbvio que pareça, é preciso reafirmar às pessoas do mundo atual que o cristianismo só recepciona o casamento nesses moldes. Ao falar sobre o relacionamento entre os cônjuges, nenhum outro modelo transita pela mente do Apóstolo.

É interessante notar que os pares mencionados pelo Apóstolo no texto em análise são sempre apresentados numa sequência do menor para o maior (esposa-marido; filhos-pais; escravos-senhores). Certamente isso não ocorre por acaso. É possível que Paulo queira, com essa dinâmica, dar certa primazia ao tema da sujeição que era tão negligenciado pelos falsos mestres por causa do orgulho que nutriam, uma vez que se consideravam superiores a todos na esfera espiritual. Tomado por essa preocupação, o Apóstolo passa agora a admoestar brevemente os filhos, ensinando-lhes a obediência (20).

O dever dos filhos de obedecer aos pais é tema comum nas páginas da Bíblia. Encontra-se implícito na ordem de honrar presente em Êxodo 20.12.[4] A gravidade do desprezo a essa ordem é percebida na pena que podia ser aplicada aos infratores. Com efeito, em Deuteronômio 21.18-21 há previsão legal para punir com a morte o filho desobediente. Acrescente-se ainda que, em 1 Samuel 2.22-25, o descaso em face da repreensão do pai é contado entre os terríveis pecados dos filhos de Eli. Em contrapartida, o livro de Provérbios ensina que a sabedoria de um jovem é medida por sua disposição em ouvir a voz dos pais (Pv 1.8; 13.1), dando-lhes seu coração (Pv 23.26). De acordo com as palavras do sábio, o resultado dessa disposição será longevidade, paz e prosperidade (Pv 3.1-2; 4.10; 6.20-23).

No Novo Testamento, Lucas, anelando destacar a sabedoria e o caráter santo de Jesus desde os tempos de sua meninice, observa que ele era um filho obediente (Lc 2.51). Paulo, por sua vez, ao relacionar os pecados cometidos pelos pagãos mais depravados e pelos falsos mestres que sempre resistem à verdade, insere em suas listas a desobediência aos pais (Rm 1.29-31; 2Tm 3.2,8). Essa rebeldia, segundo o ensino do próprio Cristo, pode chegar a graus extremos de violência nos casos de oposição por causa do evangelho (Mt 10.21). O Mestre, porém, mostra que o filho obstinado pode também se aproveitar dos desvios de uma falsa doutrina para, sob a capa da piedade hipócrita, desprezar totalmente os seus genitores (Mc 7.9-13). Ora, sendo um pecado que desestrutura a família, Paulo ensina que os homens que têm filhos insubordinados não podem exercer o ministério pastoral (Tt 1.6) já que essa tarefa, assim como a função diaconal, só pode ser realizada por quem governa bem a sua própria casa, mantendo os filhos em sujeição (1Tm 3.4,12).

No texto em análise, Paulo ensina que os filhos devem render aos pais obediência completa. Ele diz: “Filhos, obedeçam a seus pais em tudo...”. Evidentemente, o apóstolo contempla aqui a obediência integral naquilo que Deus aprova. Nenhum filho está obrigado pela Escritura a obedecer as ordens iníquas de seus pais (Ez 20.18). Aliás, note-se na segunda parte do v. 20 que Paulo está falando de uma obediência que “agrada ao Senhor”.

Também é preciso notar que, no texto paralelo de Efésios 6.1, o Apóstolo apresenta o mesmo ensino tendo em vista possivelmente a obediência a pais crentes (cf. a expressão “pais no Senhor” presente na maioria dos manuscritos), de quem se espera a emissão de ordens justas.[5] Dada a grande semelhança entre as epístolas aos Colossenses e aos Efésios, é provável que esse seja também o caso aqui. Isso não significa, contudo, que os filhos crentes de pais incrédulos têm licença para desobedecê-los. Significa apenas que, no texto em análise, é possível que Paulo não tenha em mente esse tipo de relação. Seja como for, a regra geral é que todos os pais devem ser honrados e obedecidos, sendo aceitável a resistência somente nos casos em que suas ordens estejam em conflito aberto com a Palavra de Deus.[6]

A próxima admoestação de Paulo é dirigida aos pais. Sua autoridade sobre os filhos não lhes confere apenas prerrogativas e privilégios. Eles também têm sérias responsabilidades. Paulo as resume num único comando: “Pais, não irritem seus filhos” (21). O verbo traduzido como “irritar” (ἐρεθίζω) aparece somente duas vezes no NT, aqui e em 2 Coríntios 9.2. Seu significado básico é “provocar” ou “incitar o rancor”. Em 2 Coríntios 9.2, Paulo usa o termo num sentido positivo (estimular a ação). No texto em análise, porém, é óbvio o emprego do verbo em seu significado mais comum de estimular a ira de alguém.

Na prática, os pais que provocam os filhos são aqueles que os predispõem à rivalidade, criando contendas e inimizades com eles. São os pais que adotam severidade excessiva, tratam com aspereza, aplicam castigos pesados demais, tecem críticas constantes, humilham, zombam, faltam com a palavra, mentem e agem com parcialidade, levando os filhos a se sentirem injustiçados. São também aqueles que tratam os filhos com indiferença, que nunca os corrigem e que, assim, os fazem pensar que não são importantes (Pv 13.24).[7] Todas essas condutas e outras semelhantes provocam decepção, mágoa e rancor. Em Efésios 6.4, o oposto disso é criar os filhos “segundo a instrução e o conselho do Senhor”. Isso significa oferecer-lhes uma forma de educação marcada pelo amor, pela paz, pela amizade, pela decência, pela justiça e pela verdade. 

Paulo ensina que os pais não devem nutrir ressentimentos nos filhos a fim de que eles “não desanimem”. Desanimar (ἀθυμέω) é perder o entusiasmo, a coragem ou a paixão. O filho desanimado é aquele cujo coração deixou de pulsar fortemente, aquele cujo espírito está quebrado. É a pessoa que perdeu o ímpeto e a disposição para prosseguir em tudo o que faz. É o que segue adiante, mas sem motivação ou força de vontade. Por causa dos ressentimentos que tem dos pais, da solidão que experimenta em relação a eles, do desamparo de que se sente vítima e das decepções que provou caminha desapontado e sem ânimo algum. Nele não existe mais disposição para entender a mente dos pais. Trata-se de um filho infeliz, meio morto por dentro.[8]

O último par a quem Paulo se dirige são os servos e os senhores (3.22-4.1). Nos dias do Novo Testamento, a escravidão fazia parte da realidade social. A existência de cerca de quatrocentos mil escravos em Roma durante o reinado de Trajano (98-117) dá indícios de que, no século I, naquela cidade, um terço da população estava sob o jugo da servidão.[9]

 Na época de Paulo, alguém se tornava escravo, basicamente, por seis meios: sendo capturado pelo inimigo nas guerras do Império Romano, sendo vendido por mercadores de escravos que seqüestravam pessoas com esse fim, nascendo de pais escravos, em pagamento de dívidas, em punição pela prática de crimes (especialmente furto ou roubo), e por vontade própria (movido, geralmente, por situações de desespero).

A princípio, a maior parte dos escravos foi composta por pessoas rudes – bárbaros capturados em batalha pelos soldados romanos. Com o avanço das conquistas do Império, porém, muitos homens de boa formação e dotados de grandes habilidades intelectuais foram escravizados. A esse tipo de servo os senhores davam funções mais nobres do que meros serviços braçais. Por isso, nos tempos de Paulo, muitos escravos ocupavam altas posições nas casas em que serviam, atuando como administradores, professores, médicos e até como líderes em determinadas áreas. Esses escravos tinham seu valor reconhecido por seus senhores e geralmente eram muito bem tratados.

É aos escravos que o Apóstolo dirige a admoestação mais longa dessa seção da epístola. Isso pode ser um indício de que na igreja de Colossos havia um número considerável de escravos, mas também pode indicar a existência de problemas mais urgentes no meio desse grupo. Deve-se lembrar que Onésimo, o escravo fugitivo que se converteu com a pregação de Paulo em Roma, pertencia a Filemom, um membro da igreja de Colossos (Fm 8-17).[10] Essa fuga bem sucedida de Onésimo que, além de fugir, talvez tenha furtado dinheiro de Filemom (Fm 18), pode ter encorajado os escravos crentes a resistir à autoridade de seus senhores, praticando outras formas de rebeldia.

Além disso, deve-se destacar que os discursos dos falsos mestres tinham reduzido Cristo a apenas um anjo entre muitos, forçando Paulo a reafirmar o exclusivo senhorio de Jesus sobre os crentes. Essa ênfase na supremacia absoluta de Cristo podia ser mal interpretada por pessoas que se encontravam em posição de subordinação, como as esposas, os filhos e os escravos. Entre esses, os escravos eram os que mais sentiam o jugo da servidão, tornando-se, por isso, os alvos das admoestações mais extensas de Paulo.

Mais proveitoso, porém, do que detectar os motivos que fizeram o Apóstolo escrever em dobro aos servos, é examinar a admoestação em si, observando os princípios que apresenta. O texto diz: “Escravos, obedeçam em tudo a seus senhores terrenos” (22), ou, numa tradução mais literal, seus “senhores segundo a carne” (κατὰ σάρκα). Essa expressão denota uma autoridade exercida na esfera física ou exterior. Paulo ordena obediência completa a esse tipo de autoridade, mostrando que o senhorio de Cristo não a invalida. Na verdade, o Apóstolo vai além e diz no mesmo v. 22 que essa obediência deve ser rendida por temor ao Senhor. Fica, assim, implícito que a sujeição dos servos a seus senhores é ordenada pelo próprio Cristo que se dispõe a disciplinar os escravos crentes que se rebelam.

Nesse ponto deve ser ressaltado que o cristianismo bíblico nunca se afigura como um movimento revoltoso, tentando, pela força ou pela coação, mudar o injusto status quo social reinante. Antes, a postura que engendra é sempre serena, pacífica e paciente. Não se colhem uvas com pauladas! Por isso, as conquistas do povo de Deus sempre lhe advieram pela via da oportunidade honesta, pelo exemplo sábio de vida, pelo discurso verdadeiro e pelo convite à consciência (1Co 7.20-24; Ef 6.5-8; Tt 2.9-10; Fm 15-17; 1Pe 2.18-20). Ironicamente, o impacto que esse modelo tem exercido na transformação da sociedade suplanta em muito o que qualquer revolução sangrenta já foi capaz de fazer.

Ora, os séculos que precederam o presente já provaram que os movimentos que tentaram mudar o mundo pelo uso da força, alvoroçando as massas com suas promessas de liberdade e justiça, serviram apenas para elevar ao poder novos ditadores que se empenharam para se perpetuar no trono, nada fazendo em prol da construção de uma sociedade melhor.

O cristianismo, ao contrário, sem armas, golpes, gritarias ou ameaças, mostrou sua força pela fé paciente, pelo testemunho notável e pela doce e ardente pregação da verdade. Com esse “arsenal” a igreja invadiu o mundo e, enquanto os impérios foram caindo um a um, os fracos e humildes seguidores de Jesus imprimiram lenta e indelevelmente, em todas as culturas que alcançaram, os princípios de igualdade e de liberdade ensinados pelo Mestre, os quais serviram como fundamento teórico para as leis de todos os povos civilizados.[11] Por isso, é certo dizer que escravos cristãos anônimos, transmitindo os ensinos de Jesus com humildade e sujeição, fizeram, a longo prazo, muito mais pela causa da liberdade do que os famosos líderes revolucionários que figuram nos livros de história.

Paulo prossegue em sua admoestação aos servos crentes dizendo que eles não deviam obedecer seus senhores “somente para agradá-los quando estão observando, mas com sinceridade de coração”. A falsidade e a bajulação hipócrita eram traços dos mestres da mentira (Rm 16.17-18; Gl 4.17). Eram eles que, em Colossos, se preocupavam em construir falsas aparências (Cl 2.23), sempre com o objetivo de obter vantagens pessoais (Jd 16).[12]

Paulo estava convicto, portanto, que o comportamento teatral era uma das marcas de quem não conhecia a verdade, bem como de pessoas interesseiras e de mau caráter. Ademais, é possível também que se preocupasse por saber que o uso contínuo de encenações no serviço diário poderia facilmente se expandir e levar o indivíduo a bancar o ator em outras áreas da vida (Gl 4.18). Por isso, o Apóstolo ordena aos escravos que cultivem “sinceridade de coração” (Ef 6.5). Aqui, o termo adotado por Paulo (ἁπλότης) descreve a mente livre de segundas intenções, a alma pura que age com franqueza, que não esconde desejos egoístas ou sentimentos maliciosos, sendo, assim, digna de confiança.  

A ordem dirigida aos escravos para que a sinceridade fosse cultivada tinha um fundamento teológico: há um Senhor no céu que deve ser temido. Os segredos perversos do coração e as más motivações são conhecidos por ele e isso devia gerar temor e mudança de comportamento nos servos cristãos. Se, por um lado, seus senhores terrenos nem sempre os observavam, por outro, os olhos de Deus estavam continuamente sobre eles, avaliando minuciosamente os esforços de seus braços e o conteúdo de seus corações.

Na NVI, o v. 23 traz duas vezes o verbo “fazer” (assim também a ARA). Essas ocorrências, contudo, são traduções de dois diferentes verbos gregos: ποιέω e ἐργάζομαι – “Tudo o que fizerem (ποιέω), façam (ἐργάζομαι) de todo o coração...”. Enquanto o primeiro verbo se aplica a uma ação qualquer, o segundo é mais específico, denotando o ato de trabalhar, ou seja, de realizar os afazeres próprios do servo. Trata-se do verbo que descreve a ação de quem labuta, empenhando-se na realização de uma tarefa. Paulo usa esse termo aqui para desencorajar a indolência, isto é, a atitude do servo que faz “corpo mole” e adota, desse modo, um comportamento impróprio para alguém que participa da nova vida em Cristo (Ef 4.28; 2Ts 3.10).

O Apóstolo realça que os servos crentes devem se empenhar em seu labor “de todo o coração”. A expressão que aparece aqui é, literalmente, “de alma” (ἐκ ψυχῆς). O conceito de “alma” adotado aqui é mais abrangente do que “coração” e envolve todas as forças individuais de um homem, a sua energia vital[13] (talvez haja aqui em eco de Dt 6.5). Segundo Paulo, essa atitude de total dedicação deveria ser nutrida pelos servos porque seu trabalho tinha que ser feito “como para o Senhor, e não para os homens” (Ef 6.6-7). Assim, os escravos crentes são exortados a laborar com empenho e sinceridade não somente por temor ao Deus que tudo vê, mas também considerando que o serviço prestado por eles é, de fato, para esse mesmo Senhor Divino, isto é, em prol dos seus interesses santos e para o enriquecimento da sua casa espiritual.

A realidade de que os escravos cristãos trabalhavam, na verdade, para o Senhor Celeste é realçada também pelo fato de que é desse Senhor que eles receberiam, no fim de tudo, a recompensa (24). O substantivo traduzido como “recompensa” (ἀνταπόδοσις) ocorre somente aqui no NT e refere-se a uma retribuição pelo que a pessoa fez (Ef 6.8). Pode ser, portanto, uma retribuição boa ou ruim (um castigo). No texto em análise, contudo, não há dúvidas de que o Apóstolo tem em mente a retribuição no sentido positivo, o que se conclui a partir do modo como ele qualifica a recompensa. Ele a chama de “recompensa da herança”, ou seja, a recompensa que é a herança. Ora, nos escritos de Paulo, essa herança é o reino de Deus (1Co 6.9-10; Gl 5.21; Ef 5.5).

Tudo isso devia ser mais uma fonte de motivação para os servos. Certamente, muitos escravos crentes não recebiam de seus senhores nenhum tipo de reconhecimento por seus esforços. Além disso, de acordo com as leis do Império Romano, nenhum escravo podia herdar coisa alguma. Então, para encorajá-los, Paulo recorda que o verdadeiro Senhor para quem, de fato, trabalhavam ia recompensá-los no futuro, dando-lhes uma herança junto com os santos no reino da luz (1.12).

Tem-se aqui, portanto, uma mostra de como a escatologia cristã, ao olhar para o porvir, estimula a prática e a permanência no bem desde agora! É certo, porém, que algo mais pode ser detectado nas palavras de Paulo em análise. Trata-se da verdade de que Cristo é o soberano juiz mesmo dos atos corriqueiros da vida. Sim, pois no Dia que fatalmente há de vir, ele julgará tudo o que os homens fizeram “por meio do corpo” (2Co 5.10), inclusive o modo como realizaram as tarefas do seu trabalho diário, no campo, na casa ou na pequena e pobre oficina.

Na cláusula final do v. 24, Paulo repete o ensino consubstanciado no v. 23. Desta vez, porém, identifica o Senhor de modo mais preciso, dizendo ser ele o próprio Cristo. Evidentemente, há aqui um claro sinal de que Paulo, enquanto escrevia à igreja de Colossos, não perdia de vista por um momento sequer sua meta apologética, isto é, seu propósito de destacar o senhorio absoluto de Cristo contra os ensinos do proto-gnosticismo que identificavam a figura de Jesus como apenas mais uma emanação angélica.

As admoestações dirigidas aos escravos caminham para o fim com a afirmação de que “quem cometer injustiça receberá de volta injustiça” (25). O público alvo dessas palavras é nitidamente mais amplo aqui, preparando o caminho, junto com a cláusula seguinte, para as advertências aos senhores consubstanciadas em 4.1.

Cometer injustiça (ἀδικέω) é praticar o mal (Ap 22.11). É violar normas, quaisquer que sejam, prejudicando ou ofendendo alguém (1Co 6.8; Fm 18). O Apóstolo adverte que quem agir assim, receberá como troco algo que combine com sua conduta. Se existe algo de confortante na realidade de que o Senhor dará aos seus servos a recompensa da herança (24), há no texto em análise um contrapeso ameaçador: o mal será a paga de quem se põe a serviço do mal (2Pe 2.13). Paulo ensina, assim, que o universo, uma vez que está sob o governo divino, é um universo não somente físico, mas também moral, sendo certo que Deus fixou nele normas morais inflexíveis. Uma delas é que toda a injustiça receberá, cedo ou tarde, algum tipo de retribuição.

O v. 25 termina com a afirmação de que, nesse aspecto, “não haverá exceção para ninguém”, ou seja, nenhuma pessoa escapará das implicações dessa norma. Aqui é notável que a advertência passa a abarcar todos, tanto servos quanto senhores. A justiça retributiva de Deus não reconhece distinções dessa natureza. Ao destacar essa lição, Paulo usa uma palavra grega interessante, cujo significado básico é “receber a face” (προσωπολημψία). Deus, em seus atos de juiz, não faz diferença entre os homens, reconhecendo o rosto de alguns preferidos e tratando-os com favoritismo (Rm 2.11; Ef 6.9). Não! Nem servos nem senhores jamais desfrutarão de um privilégio assim.

Sendo os escravos os destinatários principais da presente admoestação, sem dúvida Paulo tem como alvo aqui estimulá-los em duas direções: primeiro, anela esvaziá-los de qualquer desejo de vingança contra senhores perversos, desencorajando até mesmo os pequenos e secretos atos de retaliação. Afinal, o próprio Deus daria a esses maus senhores a paga de suas ações. Em segundo lugar, o Apóstolo pretende engendrar temor no coração dos servos crentes, repisando a verdade já expressa nos versículos anteriores, de que há um Senhor temível, justo e retribuidor no céu. Seu Reino, de fato, é dado gratuitamente aos que crêem[14], mas isso não o impede de punir seus filhos, muitas vezes já nesta vida (1Pe 4.12,17), independentemente da posição que ocupam na presente era (1Pe 1.17).

A presente seção, em virtude de um erro na divisão dos capítulos, termina em 4.1, com uma admoestação dirigida aos senhores, ensinando o modo como deviam tratar seus escravos. Ora, no mundo romano os escravos eram vistos como gado e seus donos podiam, a princípio, tratá-los como bem entendessem. Esse tratamento variava de acordo com o caráter e disposição de cada senhor. Entre estes, os mais cruéis puniam, torturavam e até matavam seus servos.

Por causa desses excessos, o Império preocupou-se, desde o início, em inibir os maus tratos. O imperador Cláudio (41-54), por exemplo, na metade do século I, decretou que escravos doentes abandonados por seus senhores fossem libertos. A Lex Petronia (c. 61 AD), por sua vez, proibia que um homem entregasse seu escravo para lutar com as feras no anfiteatro sem a prévia autorização do magistrado competente (a autorização só era concedida do caso de má conduta comprovada).[15]  Havia também provisão legal para que, caso um escravo fosse vendido, sua família (esposa e filhos) o acompanhassem, mesmo que o senhor não reconhecesse o casamento ou a filiação. Nero (54-68), a despeito de sua fama de crueldade, criou um procedimento legal que dava aos servos a possibilidade de denunciar as injustiças que eventualmente sofressem da parte de seus senhores; e no fim do século I, Domiciano (81-96) proibiu, sob pesada multa, a castração de escravos.

Ora, se os senhores de um império pagão revelavam noções de humanidade em favor de pessoas que facilmente estariam sujeitas aos caprichos maldosos dos mais fortes, o que deveria ser esperado dos senhores cristãos? Se os poderosos deste mundo se empenhavam em promover a redução do sofrimento e da injustiça, qual devia ser a atitude dos senhores crentes diante dessas coisas?

Paulo ensina em 4.1 que os cristãos que tinham escravos deveriam dar a eles “o que é justo e direito”. Dar o que é justo (δίκαιος) é o oposto do comportamento descrito em 3.25. Logo, os senhores não deveriam praticar o mal contra os servos, prejudicando-os ou mesmo ofendendo-os. Tampouco deveriam negar-lhes o que é “direito”. O termo que o Apóstolo usa aqui (ἰσότης) significa, basicamente, igualdade (2Co 8.13-14). É bem provável, portanto, que Paulo esteja ensinando os senhores crentes a tratarem seus servos da mesma forma como deviam tratar os homens livres, não levando em conta as diferenças sociais.  Esse apelo seria ainda mais urgente no caso de ambos, senhor e escravo, serem cristãos (3.11). Com efeito, se os senhores fossem dóceis e benignos, as diferenças seriam menos sentidas e, fatalmente, haveria equidade, outro significado para o termo adotado aqui.

A verdade que serve para motivar os senhores a tratarem seus escravos com justiça e equidade é que eles também têm um Senhor nos céus. Não são, portanto, somente os servos que devem se lembrar da existência de um soberano celeste (3.23-24), mas também os senhores. Evidentemente, há um forte tom de ameaça aqui, desencorajando os que detêm alguma parcela de poder sobre os homens de oprimi-los com desprezo, humilhação, abusos, enganos ou perversidades. O fato é que, se é verdade que os senhores são merecedores de respeito e obediência sinceros da parte daqueles que lhes estão sujeitos, é também verdade que eles são devedores das mesmas coisas ao Senhor que têm nos céus, o qual impõe a todos os seus servos, grandes e pequenos, a prática zelosa da justiça, sempre mesclada de bondade, doçura e compaixão. Por isso, a força que têm nas mãos não pode embriagá-los ao ponto de esquecerem o Tribunal vindouro no qual, diante do Juiz divino e supremo, responderão por cada gesto praticado na presente vida.

Pr. Marcos Granconato    



[1] Irineu († c. 202), expondo os traços da heresia gnóstica reinante na Gália no século II, informa que alguns de seus mestres seduziam e corrompiam mulheres secretamente, outros mentiam dizendo que as amantes com quem viviam eram, na verdade, irmãs de sangue, outros ainda separavam algumas esposas de seus maridos, passando a conviver publicamente com elas (IRINEU DE LIÃO. Contra as heresias I, 6:3).

[2] A composição dessa palavra evoca um sentido militar, com a ideia básica de “colocar-se em ordem sob alguém”, como uma tropa que se organiza sob o comando de um general. Isso, é claro, não significa que o marido crente tem o direito de tratar a esposa como um comandante trata seus soldados. Porém, permanece clara na simples composição do termo a noção de hierarquia funcional tão importante para o bom desenvolvimento de qualquer núcleo social.

[3] Deve ser lembrado que o princípio da hierarquia funcional está presente no próprio Deus, cuja tri-pessoalidade se processa também numa dinâmica de sujeição (Jo 16.13-15; 1Co 11.3; 15.28).

[4] Na Bíblia, “honrar” encerra um conceito que ultrapassa o ato de obedecer. Na prática, o homem que honra alguém vê a pessoa honrada como merecedora de sua ajuda material (1Tm 5.3-4;17-18). Assim, o filho que honra os pais é aquele que, entre outras coisas, lhes oferece provisão para a vida (Mt 15.5-6).

[5] A ordem “Filhos, obedeçam a seus pais no Senhor”, constante de Efésios 6.1, também pode significar “obedeçam seus pais porque vocês pertencem ao Senhor”.

[6] A Bíblia também não fala da idade limite para a obediência dos filhos aos pais. Textos como Deuteronômio 21.18-21 e Tito 1.6 sugerem que a sujeição filial é exigência que, em algum grau, alcança também a fase adulta. Não há dúvida, porém, que a emancipação ocorre quando o filho se casa (Gn 2.24), ressalvado o dever perene de honrar seus genitores.

[7] Na Bíblia, a falta de correção por parte dos pais gera prejuízos ainda maiores. Geralmente, o filho sem disciplina se transforma num homem de mau caráter (1Sm 3.12-13; 1Rs 1.5-6; Pv 29.15).

[8] A experiência mostra que filhos assim tendem a se “vingar” dos pais inicialmente através de uma secreta conduta desonrosa. Mais tarde, via de regra, a rebelião eclode de forma assumida e aberta.

[9] Para uma análise mais completa da escravidão no Império Romano no Século I, veja-se MELICK, R. R. The New American Commentary (316): Philippians, Colossians, Philemon. Edição eletrônica. Logos Library System. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 2001. vol 32.

[10] A Epístola a Filemom, sendo uma das epístolas da prisão, foi escrita ao mesmo tempo que Efésios, Filipenses e Colossenses. Uma vez que Filemom morava em Colossos (compare Fm 2 e Cl 4.17), certamente a epístola a ele endereçada foi enviada junto com a Epístola aos Colossenses (Cl 4.9).   

[11] Quem melhor reconheceu essa influência do cristianismo sobre todo o mundo foi precisamente seu maior oponente, Friedrich Nietzsche (1844-1900). Ele entendeu acertadamente que para Jesus os homens tinham o mesmo valor e também direitos iguais. No entanto, ironizou esses ensinos dizendo que dessa “moral de rebanho”, advinda de uma classe submissa, veio a democracia. Para Nietzsche, a democracia é má, pois promove a elevação de todos, impedindo o desenvolvimento dos mais fortes (o super homem). Por isso, no entender do filósofo alemão, a democracia deve ser erradicada o quanto antes. Para isso, porém, é preciso destruir o cristianismo em suas concepções do homem, especialmente o conceito de igualdade. Nietzsche entendeu que os homens não são iguais. Segundo ele, o processo de evolução envolve a utilização da classe inferior pela superior, provando que a natureza abomina a igualdade. Se noções de igualdade forem mantidas, o caminho para uma nova raça não será aberto.

[12] Como os escravos de confiança geralmente galgavam posições privilegiadas na casa de seus senhores, transmitir uma falsa imagem de zelo e fidelidade podia se tornar tendência comum entre os servos. Assim, como ocorria com os falsos mestres, o interesse egoísta podia se tornar, para os escravos, um grande estímulo à hipocrisia.

[13] Veja-se essa sugestão em SPENCE-JONES, H. D. M., Org. The Pulpit Commentary: Colossians. (157). Logos Research Systems, Inc.: Bellingham, WA, 2004. Veja-se também DUNN, J. D. G.. The Epistles to the Colossians and to Philemon: A commentary on the Greek text (255). William B. Eerdmans Publishing; Paternoster Press: Grand Rapids: Carlisle, 1996, onde é dito expressamente: “A alma é o centro da vitalidade humana; enquanto o coração é a sede da experiência”.

[14] Nada do que Paulo diz no texto estudado contrasta com a sua doutrina da justificação somente pela fé (Rm 5.1; Ef 2.8-10). Tampouco suas admoestações contradizem o ensino que ele mesmo ministra a respeito da absoluta segurança dos salvos (Rm 8.31-39). A lição que Paulo transmite aqui é que o Senhor pune a injustiça de todos, inclusive a de seus filhos queridos. Seu castigo paternal pode ser aplicado tanto na presente vida (Hb 12.5-11), quanto no dia do encontro do crente com ele (2Co 5.10). Essas punições, porém, em nada comprometerão a eterna salvação dos que creram no Filho de Deus (1Co 3.15; 5.5). 

[15] Veja-se BERGER, Adolf. Encyclopedic Dictionary of Roman Law. Vol. 43. Philadelphia: The American Philosophical Society, 1991. p. 557.

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