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Gálatas 5.1-6 - Prejuízos do Legalismo

 

O capítulo 5 de Gálatas inicia-se com a afirmação de que Cristo nos libertou para sermos, de fato, livres (1), ou seja, ao redimir-nos Cristo almejou que realmente desfrutássemos da liberdade e não a tivéssemos apenas como um conceito abstrato, sem qualquer reflexo no modo como vivemos. Antes, sua obra libertadora deveria ser desfrutada pelos crentes.

Assim, Paulo prossegue ainda no v. 1 advertindo os galateus a permanecerem firmes. Firmeza aqui implica fixar-se na verdade pregada por Paulo e usufruir, sem vacilar, da liberdade que Cristo conquistou. De fato, ao demonstrar simpatia pelos ensinos legalistas, os crentes da Galácia revelavam uma fé vacilante e um modo de viver que, como uma estaca solta, pendia para o lado da escravidão sob a força do vento de um evangelho falso (1.6-7). O Apóstolo ordena, portanto que aqueles crentes se apeguem com maior tenacidade ao evangelho verdadeiro e, conseqüentemente, ao desfrute da liberdade obtida por Cristo.

Paulo prossegue deixando claro que deixar-se levar pela mensagem dos judaizantes, como os galateus já estavam fazendo (4.10-11), representava um retrocesso, ou seja, significava submeter-se “de novo, a jugo de escravidão” (ARA). O Apóstolo usa a expressão “de novo” (πάλιν), porque ainda que seus leitores, sendo gentios, não tivessem vivido sob o jugo da Lei Mosaica, tinham sido escravos de sistemas religiosos pagãos marcados por inúmeras e severas exigências (4.8-11).

Desse modo, para Paulo, a resposta positiva ao apelo dos falsos mestres implicava, basicamente, um retorno ao modo de vida que os galateus tinham experimentado no paganismo. A partir daí é fácil concluir que “judaizar” a igreja é, na verdade, uma forma de paganizá-la. Em vista disso, os crentes modernos devem estar atentos contra os ataques de alguns pregadores atuais que ensinam a necessidade de retorno aos deveres da religião mosaica até mesmo em seus aspectos cerimoniais. Na prática, quem hoje promove a observância das normas do judaísmo, conduz os homens ao estilo de vida próprio do paganismo.

No v. 2, Paulo deixa transparecer o aspecto da Lei que os mestres judaizantes tinham em mais alta conta e, certamente, aquele que mais insistiam que os galateus observassem: a circuncisão. Para eles, se os gentios não recebessem essa marca em sua carne, não poderiam ser salvos (At 15.1,5).[1] Assim, os falsos mestres da Galácia apontavam um caminho para a justificação no qual a fé em Cristo não era suficiente, fazendo-se necessárias as obras da Lei. A circuncisão seria talvez a principal dessas obras. Por isso, Paulo vê nessa prática uma declaração de falta de confiança na suficiência da Cruz; uma afirmação de que ela não tem nenhum valor à parte do rito legal judaico.

Ademais, a circuncisão era o sinal externo de adesão à Lei. Ora, Cristo se manifestou especialmente para livrar o homem do jugo insustentável da Lei Mosaica (Ef 2.14-15; Cl 2.14). Logo, aderir à Lei por meio daquele sinal no corpo seria o mesmo que tornar sem proveito a obra libertadora que Cristo completou no Calvário (2.21). De fato, pela circuncisão os crentes da Galácia estariam assumindo o compromisso de se colocarem sob a escravidão das normas esculpidas na pedra, tornando sem valor a liberdade obtida pelo Deus-Homem fixado no madeiro.

Que Paulo entendia a circuncisão como um sinal de adesão completa à Lei depreende-se facilmente do v. 3. O Apóstolo mostra aqui que, sendo aquele rito judaico uma evidência de submissão plena às normas mosaicas, não seria coerente circuncidar-se e, então, dedicar-se ao cumprimento de apenas algumas determinações da Antiga Aliança, escolhidas ao bel prazer. A circuncisão implicava um comprometimento integral do homem com as normas do Sinai. Não poderia alguém submeter-se a meia aliança, assim como não pode um homem colocar-se debaixo das responsabilidade de meio casamento.

Eis o perigo a que se expunham os legalistas! Ao adotarem um “cristianismo judaizado”, punham sobre os próprios ombros e dos seus discípulos não só alguns pesos selecionados pela vontade livre, mas um fardo completo que homem nenhum na história humana jamais pôde suportar (Jo 7.19; At 15.10). Acrescente-se a isso a verdade de que quem quer viver debaixo da Lei deve antes entendê-la como um bloco monolítico que não pode ser partido num ponto sem que tudo o mais se perca (Tg 2.10). A conclusão a que se chega é que o ensino dos falsos mestres da Galácia implicava não só a adoção completa da Lei, mas também o dever de uma obediência perfeita, daquele tipo que só o Filho de Deus foi capaz de praticar (Jo 8.46; Hb 4.15; 1Jo 3.5).

O comprometimento com a Lei a que os crentes da Galácia eram impelidos por força da influência dos falsos mestres era, como se sabe, nada mais que um arranjo doutrinário no qual predominava a busca de justificação pelo esforço próprio. Eles queriam somar as obras à fé e obter a justificação como produto dessa operação. Paulo mostra, porém, que na busca da salvação é impossível andar de mãos dadas ao mesmo tempo com a Lei e com Cristo. É assim que, dirigindo-se especificamente aos falsos mestres e aos seus mais leais seguidores, ele afirma que, ao buscarem a justificação pela Lei, não poderiam manter-se unidos a Cristo (4). De fato, ao agirem daquela forma, de Cristo eles haviam se “desligado”. O verbo usado por Paulo é καταργέω e significa ser liberto de, romper com alguém.

O ensino de Paulo nessa passagem deixa claro que mesmo o comprometimento com uma parte ínfima da Lei implica necessariamente a nulidade do compromisso com o Senhor.  Para o Apóstolo, ou o homem fica absolutamente livre da Lei pela fé em Cristo ou fica absolutamente livre de Cristo pela adesão à Lei. Não há como manter liames com ambos. A mais tênue ligação com um só, para fazer qualquer sentido, requer o abandono total do outro.

Os legalistas já tinham feito a sua opção! Aderindo à Lei na busca da justificação, tinham se separado de Cristo e, assim, caído da graça, ou seja, tinham abandonado a possibilidade de desfrutar do favor gratuito de Deus oferecido em seu Filho.

É comum no meio evangélico o entendimento de que as expressões “desligar-se de Cristo” e “cair da graça” apontam para a possibilidade da perda da salvação. Esse entendimento, porém, está equivocado, mesmo porque o ensino de que a salvação não se perde é amplamente fundamentado nas páginas do Novo Testamento (Jo 10.27-29; Rm 8.30-39; 1Ts 5.23-24; 1Pe 1.3-5, etc.). Assim, considerando o ensino bíblico em geral e os fatores distintivos que permeiam o texto em análise, conclui-se que desligar-se de Cristo é buscar inutilmente a salvação nele e em algo além dele, desprezando a sua suficiência. É manter uma união parcial com Cristo, dividindo a confiança da salvação entre ele e algo mais. Para Paulo, esse tipo de comprometimento com o Salvador é nulo e implica, na verdade, total separação dele.

Da mesma forma, cair da graça (Lit. “cair para fora”) significa colocar-se fora da esfera dos benefícios da graça.[2] É afastar-se do domínio em que o perdão de Deus é dado independentemente de méritos. É deixar para trás a possibilidade de ser salvo gratuitamente. A busca da justificação pelo esforço próprio faz com que o indivíduo deposite a confiança na força do seu braço e, dessa forma, vire as costas para a salvação gratuita que Deus oferece em seu Filho. Assim, tal pessoa não perde a graça que obteve, mas perde a possibilidade de desfrutar a graça que é oferecida, uma vez que viaja rumo ao território da lei e das obras, onde a referida graça não habita. Como se vê, Paulo dirige as palavras do v. 4 a um grupo de pessoas específico que havia nas igrejas da Galácia. Tratavam-se de legalistas que nunca tinham realmente se convertido.  É notável que, em 2.4, Paulo chama pessoas assim de “falsos irmãos”.

Os vv. 1-4 apresentam um deslocamento no público alvo a quem Paulo dirige suas palavras. Observe-se que nos vv. 1-2, o Apóstolo fala aos crentes que, mesmo vacilantes, ainda não tinham se submetido aos rigores do legalismo que os falsos mestres estavam propondo. Já nos vv. 3-4, Paulo se dirige “a todo homem que se deixa circuncidar”, ou seja, àqueles que “procuram ser justificados pela Lei”. Estes, conforme visto acima, não eram crentes. Eram pessoas separadas de Cristo, vivendo em meio à fantasia de um relacionamento com ele que, na verdade, era nulo, já que não o consideravam um salvador suficiente. Ademais, tinham sido banidos do “território da graça”, descambado para além das suas fronteiras, uma vez que buscavam a salvação no reino do esforço próprio.

Após dirigir suas palavras a alvos alternados, Paulo passa agora a falar de um terceiro grupo no qual ele se inclui. Esse grupo é o que, firmemente e pela atuação do Espírito, aguarda a justiça pela fé (5).[3] O Apóstolo inicia o v. 5 com uma conjunção (γὰρ que significa pois) que expressa aqui o intento de explicar o que foi dito no v. 4. Assim, o v. 5 é útil para esclarecer que os que buscavam a justificação mediante a Lei fracassaram porque seu intento não tinha qualquer relação com a obra do Espírito Santo. A segura esperança de ser justificado pela fé advém ao homem pela atuação do Espírito. A ausência dessa esperança em alguém e a conseqüente tentativa de ser justificado pelas obras revela que esse alguém não foi objeto do salutar ministério do Consolador. Isso porque, onde o Espírito atua, não resta espaço para a confiança na carne. Esta só persiste no coração ainda não tocado pela graça.

O contraste básico que transparece no v. 5 é que a confiança na Lei é mera intuição da mente carnal, enquanto a esperança de justificação pela fé é obra sobrenatural de Deus no coração do homem. Acrescente-se a isso o ensino de Paulo em 2Coríntios 3.6-9. Ali, realçando ainda mais fortemente o contraste entre o ministério da Lei e o ministério do Espírito, o Apóstolo ensina que aquele mata e traz condenação, enquanto este vivifica e traz justificação. Ora, os legalistas estavam sob o ministério da letra. Sua conexão com o Espírito, portanto, não existia. Logo, não havia como serem justificados. É por isso que as palavras terríveis do v. 4 se ajustavam tão perfeitamente a eles.

Resumindo: os homens que confiam no mérito pessoal para serem salvos estão, na realidade, perdidos. Isso porque essa confiança é mera inclinação da mente degenerada e não obra do Espírito Santo, já que este, na verdade, leva o homem a desistir de si mesmo e o conduz à justificação convencendo-o a confiar unicamente em Cristo. Os legalistas da Galácia demonstravam, portanto, que não tinham sido objeto dessa obra do Espírito que opera a justificação pela fé somente. Faltava-lhes a ministração do Consolador e, sem ela, viviam na ilusão de que, com sua suposta obediência à Lei, poderiam forçar as portas do céu.

Nunca é demais ressaltar nos dias atuais tão marcados pela visão otimista acerca do homem que, à luz do v. 5, é exclusivamente mediante a atuação do Espírito Santo que alguém pode nutrir a esperança de ser justificado somente pela fé. Não se pode esperar que o homem, de si mesmo e por si mesmo, desenvolva essa esperança. Ela é obra de Deus, realizada naqueles que, sem mérito algum, são contemplados por sua graça (Rm 2.29; 1Co 12.3; 2Ts 2.13).

Concluindo o parágrafo, Paulo faz alusão ao fato de que o homem que creu e foi justificado está em Cristo, ou seja, dentro de sua esfera de influência e benefícios. Considerando que tal homem desfruta das bênçãos dessa posição, sendo a justificação a principal delas, não há para esse indivíduo utilidade alguma na circuncisão (6). Para o crente, ser circuncidado ou não é algo absolutamente sem importância.  Submeter-se a esse rito não o fará ganhar nada e deixar de submeter-se não o fará perder nada (1Co 7.18-19). O que faz o homem ganhar ou perder no âmbito espiritual é a fé. Eis o fator que faz toda a diferença! Note-se, porém, que a fé de que Paulo fala aqui, ou seja, a genuína fé salvadora que é dádiva de Deus (Ef 2.8) e que tem Cristo como autor (Hb 12.2), é uma fé que se evidencia no mundo dos fatos.

Paulo ensina que a forma como a fé salvadora se movimenta tornando-se perceptível é através de atos de amor (1Jo 3.10, 14; 4.7-8). A fé tem no amor o seu rosto. A face da fé é o amor. Não há, portanto, espaço no cristianismo para uma fé meramente conceitual e abstrata. A fé salvadora é viva e atuante, sendo nos atos de amor que ela se corporifica e mostra que é real. Carente dessa dimensão palpável a fé é morta (Tg 2.14-17), está longe de ser a que vem de Deus e, por isso, não pode salvar ninguém.[4]

Pr. Marcos Granconato 



[1] A forma condicional como Paulo constrói a frase dá a entender que os galateus ainda não estavam praticando o antigo rito.

[2] O verbo traduzido aqui como “cair” (ἐκπίπτω) é usado nos escritos clássicos para referir-se, inclusive, a pessoas que por razões políticas ou por outros motivos, foram enviadas para o exílio, longe dos privilégios de seu país.

[3] A esperança de que fala o v. 5 (ἐλπίς) não é mero desejo, mas sim uma forte certeza. Note-se também que o versículo evoca uma expectativa futura, ou seja, o dia em que, diante de Deus, o crente será recebido como justo.

[4] Veja-se exemplos da fé falsa em Mateus 13.20-21; João 2.23-25; 12.42-43.

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