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Gálatas 4.12-20 - Apelos, Lembranças e Anseios

 

Depois de expressar seu inconformismo com as práticas legalistas a que os galateus estavam novamente se submetendo, o Apóstolo passa agora a dirigir-lhes um apelo emocionado, lembrando-lhes alguns momentos de amizade e labor que haviam partilhado juntos e que revelavam o profundo afeto que um dia os unira. Sua intenção é claramente despertar novamente aqueles afetos, uma vez que, à luz do texto, o trabalho dos falsos mestres infiltrados nas igrejas estava logrando êxito em afastar de Paulo o coração dos seus queridos filhos na fé (Ver vv. 15-17).

O apelo de Paulo se consubstancia inicialmente nas palavras “sede qual eu sou; pois também eu sou como vós” (ARA). Essas palavras significam o seguinte: os crentes da Galácia nunca haviam ofendido Paulo (v. 12b) e ele se refere a isso quando diz “também eu sou como vós”. Portanto, ele se assemelhava aos galateus em seu modo de tratá-los, jamais os agredindo ou sendo grosseiro, apesar da dificuldade do momento. Por outro lado, o Apóstolo sentia que os seus filhos na fé (v. 19) estavam se distanciando dele mais e mais (vv.16-17), enquanto ele próprio procurava desesperadamente uma reaproximação. É nesse aspecto que Paulo suplica humildemente que os crentes da Galácia sejam como ele. Assim como o Apóstolo os imitava não os ofendendo, os galateus por sua vez também deviam imitá-lo, empenhando-se em reconstruir os laços de comunhão afrouxados pela influência dos inimigos hipócritas (v.17).

Paulo lembra, a partir do v. 13, que essa comunhão ora abalada tinha nascido num momento tão sublime e atingido tamanha intensidade que era inaceitável que fosse agora destruída pelo trabalho de pessoas mal intencionadas e por expoentes de erros doutrinários tão grosseiros. Segundo ele, a primeira vez que pregou o evangelho na Galácia foi por causa de uma doença de que foi acometido. A narrativa de Atos sobre a visita missionária de Paulo à Galácia (At 13.14-14.21) não faz menção dessa enfermidade[1] e não há como saber qual foi exatamente o mal físico de que sofreu o Apóstolo.[2]

Seja como for, não pairam dúvidas sobre os propósitos de Paulo ao relembrar o tempo que, fragilizado em sua saúde, esteve entre os irmãos a quem escreve. O Apóstolo quer trazer-lhes à memória os tempos de união e, assim, despertar o desejo de revivê-los. De fato, um grande estímulo à unidade dos crentes no presente é procedente das recordações das batalhas que juntos travaram no passado. Portanto, sempre que as armadilhas do mundo e do diabo fizerem os crentes se distanciar dos seus irmãos, um bom impulso ao retorno é a memória dos momentos mais sublimes que marcaram a sua jornada em comum (Hb 10.32-34). Só os corações terrivelmente endurecidos pelo pecado são capazes de se manter insensíveis ao se lembrarem dos momentos mais tocantes de sua própria história.

A enfermidade de Paulo, segundo seu parecer, se constituiu numa prova para os galateus (14). Isso significa que receber o missionário doente gerou-lhes um grau considerável de incômodo, o que seria motivo para que o Apóstolo fosse tratado com manifestações de impaciência e desprezo. Contudo, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Nem desprezo e nem aversão os galateus revelaram naquelas circunstâncias.[3] Antes, Paulo foi recebido como “um anjo de Deus” e até mesmo “como o próprio Cristo Jesus”.

Ao descrever nesses termos (e com aprovação) a atitude que os crentes da Galácia tiveram outrora para com ele, Paulo ensina indiretamente que é como anjos e como o próprio Cristo que os ministros do evangelho devem ser recebidos e tratados pelos cristãos em geral. De fato, a escritura chama os mestres da verdade de anjos, uma vez que são mensageiros de Deus (Ml 2.7; Ap 2.1, 8,12, 18; 3.1, 7, 14). Além disso, os proclamadores do evangelho são embaixadores de Cristo, atuando em seu lugar como porta-vozes, de forma que desprezá-los corresponde a rejeitar aquele que eles representam (Mt 10.40; Lc 10.16; 2Co 5.20). Por outro lado, há aqui também uma forte indicação da responsabilidade que paira sobre os pastores. Estes têm o dever de zelar pela mensagem de Deus como se fossem anjos celestes ou mesmo pequenos cristos a pregar (Tt 1.7-9). A consciência disso faria com que os púlpitos de nossas igrejas deixassem de ser palco de fanfarronadas e passassem a se constituir na maior força transformadora do tempo presente.

Após lembrar com saudades do amor demonstrado pelos galateus, Paulo pergunta com tristeza: “Que aconteceu com a alegria de vocês?” (15. NVI). Mesmo estando Paulo enfermo, os galateus haviam manifestado intensa alegria em recebê-lo. Aliás, o prazer deles com a presença de Paulo era tanto que o Apóstolo tinha plena consciência de que outrora aqueles irmãos, se possível fora, teriam “arrancado os próprios olhos” para auxiliá-lo. Essa linguagem, evidentemente é figurada. É bom também frisar que não há aqui nenhum sinal de que a doença de Paulo fosse nos olhos, conforme sugerem alguns intérpretes (vide nota 2). A frase indica tão somente que, em outros tempos, os galateus não mediriam esforços para beneficiar aquele que tinha sido um hóspede tão querido.

A pergunta constante do v. 15 mostra claramente que aquela alegria que os crentes da Galácia haviam demonstrado por ter Paulo junto de si havia acabado. Agora eles não sentiam satisfação alguma, nem mesmo com a possibilidade de ter o Apóstolo por perto. Que grande mudança em seus afetos! Era como se a pessoa mais amada daquelas igrejas, num breve período de tempo e sem nenhuma justificativa, passasse a ser considerada seu mais detestável inimigo!

Ainda que perplexo (v. 20), Paulo sabia a causa de mudança tão radical. Aqueles cristãos estavam aceitando a mentira dos falsos mestres e, por isso, a verdade dita pelo Apóstolo lhes causava aversão. Esse fato é apontado através da pergunta retórica do v. 16. Nesse versículo, vê-se que ao anunciar o evangelho genuíno e denunciar o desvio dos mestres enganadores, Paulo havia despertado real antipatia nas jovens igrejas corrompidas doutrinariamente. Esse fato que tomou lugar na experiência de igrejas neotestamentárias deve despertar a atenção das igrejas atuais. Que seja lembrado que abrir os braços para doutrinas novas e estranhas faz com que igrejas inteiras desenvolvam rancores e até construam barreiras contra os verdadeiros expoentes da Palavra de Deus. Ministros fiéis também devem ter isso em mente. Muitas vezes a inimizade é o preço pago pela proclamação da verdade, mesmo quando isso é feito de modo brando e amoroso.

Com a pergunta do v. 16, Paulo revela seu desejo de trazer os galateus de volta para junto de si. Ele quer incomodar suas consciências fazendo-os ver de quão grande impiedade eram culpados ao abandonar a mais terna comunhão não porque tivessem sido ofendidos, mas porque tinham sido instruídos na palavra da verdade. De fato, é difícil imaginar maior estupidez do que se tornar inimigo de um irmão precisamente porque ele nos beneficiou.

A estratégia usada pelos falsos mestres para difundir sua doutrina perversa dentro das igrejas da Galácia transparece no v. 17. Tal estratégia consistia em demonstrar cuidado, preocupação e interesse pelos crentes. Os legalistas se apresentavam como pastores “zelosos”. Paulo, no entanto alerta seus leitores dizendo que aquele cuidado não era bom, ou seja, tratava-se de um zelo indigno de aprovação, sem sinceridade, pois tinha como objetivo isolar os crentes.[4] Segundo Paulo, os falsos mestres, com sua demonstração hipócrita de estima, queriam distanciar dele os seus leitores e reuni-los em torno de si para, então, obter daquelas igrejas o mesmo cuidado e afeto que antes haviam dispensado ao Apóstolo (vv. 14-15).  Nota-se aqui que os ardis de outrora são usados ainda hoje pelos falsos pastores. Estes sempre trabalham em três direções: conquista da simpatia da igreja; afastamento dos irmãos dos pregadores verdadeiros; e obtenção do serviço e cuidado dos crentes em seu favor (2Pe 2.3; Jd 16).

No v. 18 Paulo se volta novamente para o cuidado que os galateus haviam demonstrado por ele no passado. Aqui o Apóstolo ensina que era lamentável que aquele interesse tão tocante só existisse quando ele estava por perto. Para Paulo era preocupante que aquelas igrejas se mantivessem fiéis a ele e, conseqüentemente, aos seus ensinos tão-somente em sua presença. Infelizmente, como se sabe, é comum também as igrejas de hoje se desviarem da verdade quando os ministros de Deus, movidos por diversas necessidades, são obrigados a se ausentar delas. O quadro moderno, porém, é pior, uma vez que na Galácia esse erro era cometido por igrejas recém formadas, enquanto hoje o desvio se dá na vida de crentes que conhecem o evangelho há dezenas de anos. Paulo expressa no v. 18, o singelo ideal da igreja de Deus ser continuamente zelosa pelo bem, mesmo nos momentos que se vê, por uma razão ou outra, longe da benéfica influência dos proponentes da sã doutrina.

O coração de Paulo se enternece ao ver os crentes naquela situação. Dirigindo-se aos seus leitores de forma carinhosa, com a alma repleta de afeição, ele os chama de “filhos” (19)[5] e diz que, por causa deles, novamente sentia as dores de parto até que Cristo fosse formado em suas vidas. A metáfora pode ser simplificada da seguinte maneira: Paulo se apresenta como uma mãe que sofre dores de parto para dar à luz filhos que tivessem a aparência de Cristo. O significado óbvio é que em seu ministério o Apóstolo trabalhava por gerar pequenos cristos (Rm 8.29), isto é, pessoas que tivessem em si os traços do caráter de Jesus, um caráter marcado pelo zelo por aquilo que é bom, tanto na esfera doutrinária quanto moral. Na busca desse ideal, Paulo sofria com freqüência e intensidade. Ele é um pai espiritual e aqui aprendemos que na esfera espiritual tanto pais como mães sofrem dores para dar à luz. Aqui aprendemos também que o verdadeiro pai espiritual é aquele que trabalha e sofre na busca incessante de criar em alguém o caráter de Cristo. Que marcante diferença havia entre esse alvo de Paulo e as intenções dos mestres legalistas (v.17)! E quão útil ferramenta o crente tem nesse texto que mostra indiretamente como identificar o verdadeiro pastor! Este será simplesmente o homem que não mede esforços no sentido de fazer com que as pessoas que o Senhor lhe confiou se tornem mais parecidas com Jesus (Ef 4.11-13).

Sabendo que sua ausência era, em parte, a causa do desvio dos galateus, Paulo, no v. 20 manifesta o desejo que tinha de estar com eles naquelas horas. O versículo dá a entender que essa possibilidade não existia naquele momento. Mesmo assim, o Apóstolo diz que gostaria de estar entre eles para poder falar com “outro tom de voz”. De fato, a Epístola aos Gálatas tem trechos severos (1.6-9; 3.1-5; 4.9-11, 15-16; 5.4, 7-9, 12, etc.). Paulo acreditava que, estando presente, não precisaria usar daquela severidade, pois confiava que diante dele os galateus se submeteriam. A razão que o impulsionava a desejar um contato mais direto não era apenas o impacto mais forte que uma visita pessoal teria. Ele também queria vê-los porque cria que isso lhe traria algum alívio, uma vez que estava “perplexo” quanto aos crentes da Galácia. O termo usado por Paulo (ἀπορέω) denota desespero e dúvida. A idéia de estar desnorteado se encaixa bem aqui. Paulo indica que aquela situação o deixara um tanto sem rumo, refletindo sobre que medidas tomar para remediar o problema. Ele acreditava que uma visita seria útil para clarear suas idéias e mostrar como proceder de maneira eficaz.

Pr. Marcos Granconato 



[1] É possível traduzir a palavra πρότερον (próteron: “a primeira vez”) como “anteriormente”. Se aceitarmos essa tradução, pode-se entender que Paulo está falando aqui do fim da primeira viagem missionária, quando voltou para Listra, Icônio e Antioquia fortalecendo as igrejas (At 14.21). Se for este o caso, talvez Paulo tenha empreendido o retorno de sua Primeira Viagem movido pelas imposições de uma doença da qual se tem muito pouca informação. 

[2] Alguns entendem, à luz de 4.15, que se tratava de uma doença nos olhos. Esse entendimento também tenta explicar as “grandes letras” a que Paulo alude em 6.11. Segundo esse ponto de vista, o suposto problema de visão do apóstolo teve início em sua experiência de conversão, quando seus olhos foram cobertos por algo semelhante a escamas (At 9.18). Essa opinião, porém, não é conclusiva. Calvino, por exemplo, entende que a palavra “enfermidade” significa aqui simplesmente “vilipêndio”, ou seja, ausência de pompa ou grandeza. Essa interpretação, por sua vez, mui dificilmente se ajusta com a restante da passagem que indica claramente que Paulo está a falar de uma debilidade em sua saúde.

[3] Nesse ponto Paulo usa verbos enfáticos para descrever a atitude dos seus destinatários. Literalmente, ele diz que os galateus não o trataram com desdém, nem o “cuspiram fora”. Essa linguagem denota nojo, o que pode sugerir que a doença de Paulo provocava certa repugnância.   

[4] Veja o contraste entre esse zelo interesseiro e o zelo do Apóstolo mencionado em 2Coríntios 11.2.

[5] Essa expressão tão comum nos escritos do carinhoso Apóstolo João (1Jo 2.1, 12, 14, 18, 28, etc.) é usada somente aqui por Paulo.

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