A Teologia do Espaço
Quando uso a expressão “teologia do espaço” refiro-me à relação entre Deus e o campo tridimensional (altura, largura e profundidade) em que vivemos. Assim, o título deste artigo designa um grupo de verdades ligadas ao modo como Deus lida com a extensão que nos rodeia e na qual toda a criação está inserida. É, pois, uma “teologia do lugar”, sobre a qual li pela primeira vez num livro de N. T. Wright e que despertou meu interesse, embora o modo como Wright a apresenta não tenha me convencido totalmente.
A meu ver, a construção de uma teologia sob esse título deve partir da afirmação de que Deus é o criador do espaço e, por isso, é também senhor dele. Temos, pois, de lembrar que não somente a matéria veio à existência por um ato criador divino (Hb 11.3), mas também, e necessariamente, o espaço que essa matéria ocupa em suas variadas formas.
Ora, uma teologia do espaço que parte da noção de Deus como seu criador tem notáveis implicações práticas e é sob essa perspectiva que quero prosseguir neste texto. De fato, se o espaço foi criado por Deus e a ele pertence, algumas questões práticas podem ser levantadas. Por exemplo: sendo Deus o senhor do espaço, como o crente deve preenchê-lo? Outra questão: se o Criador é dono não somente das coisas, mas do espaço que as coisas ocupam, que grau de apego o cristão deve ter ao lugar que possui e em que vive? E mais: se o espaço é parte da criação e um dia a criação será redimida, como o crente pode hoje mesmo resgatar o espaço, fazendo o Reino vindouro ser percebido desde já também nesse aspecto?
Deixem-me sugerir algumas respostas. No tocante à primeira pergunta, creio que o crente deve santificar todo espaço a que tem acesso e sobre o qual tem algum grau de autoridade ou influência. Por favor, entendam bem! Isso não significa dizer “tá amarrado” toda vez que a gente chega num lugar. Tampouco significa fazer orações ou cultos para consagrar casas, salas ou igrejas. Tudo isso não passa de superstição evangélica! Quando falo sobre santificar o espaço, refiro-me a usá-lo de modo agradável a Deus, deixando-o livre de tudo que o desonre e fazendo de cada lugar que ocupamos ou possuímos um ambiente em que Cristo seja glorificado.
Está fora de dúvida que, sendo Deus o senhor do espaço, o crente não pode permitir que o ambiente que ocupa — e sobre o qual tem alguma parcela de poder — seja usado como abrigo de malfeitores ou mesmo como sede de apoio para a prática da impureza, da mentira, da fraude, da desonestidade e da intriga. Antes, o lugar confiado pelo Senhor ao crente deve ser um espaço no qual ele é obedecido, inclusive por ser seu verdadeiro dono.
Quanto à segunda pergunta, creio que, entre outras coisas, a resposta adequada a ela livra o crente do patriotismo manipulador e escravizante que os poderes deste mundo, na busca de seus interesses malignos, fazem o povo engolir goela abaixo. Sim, pois a noção de que todo o espaço pertence ao Senhor faz o cristão perceber que, por onde quer que vá, está sob o domínio de um só e mesmo Rei, nada tendo a temer nem se deixando desfazer em angustiosa saudade.
Basílio, o Grande, um dos maiores teólogos da igreja antiga, compreendeu isso. Sendo defensor da cristologia ortodoxa, ele recebeu ordens vindas do imperador Valente para adotar a visão herética dos teólogos arianos. Basílio, é claro, não obedeceu. Então, o prefeito pretoriano de Cesareia o ameaçou com várias punições, entre elas o exílio. Diante disso, o grande bispo respondeu: “Você não pode me exilar, pois, para onde quer que me envie, ali serei hóspede de Deus”. A correta teologia do espaço livrou Basílio do chauvinismo ingênuo, do medo da expatriação e até o encheu de ousadia diante de um magistrado poderoso que, afinal, teve de ceder.
A resposta à terceira pergunta é a que mais me empolga. De fato, a Bíblia ensina que a criação um dia será redimida da corrupção do pecado (Rm 8.18-22). Sem dúvida, isso abrange o espaço. Basta olhar ao redor para perceber como o pecado afetou não somente o que (as coisas), mas também o onde. Por toda parte veem-se a feiúra, a desorganização, a sujeira, a desolação e o mau gosto. E isso não se percebe somente em favelas e becos. A própria arquitetura e a arte contemporânea parecem ter perdido a noção de beleza, de ordem e de estética, na medida em que o homem foi se afastando da visão de que Deus é o criador e o senhor de tudo.
Um dia, porém, conforme ensina a Escritura, quando o Reino milenar de Cristo finalmente se estabelecer neste mundo, todo espaço será redimido dos efeitos do pecado e haverá completa beleza permeando tudo. Toda a realidade criada: matéria, tempo e espaço estarão livres do cativeiro da corrupção e o conhecimento de Deus encherá toda a Terra, “como as águas cobrem o mar” (Is 11.6-9).
Ora, o Novo Testamento convida os cristãos a, na medida do possível, trabalhar para que as bênçãos futuras do Reino de Cristo se realizem em alguma medida desde já (Rm 13.11-14; Hb 12.28). Por isso, o crente, que espera a redenção do espaço, atua de modo a tornar parcialmente real, aqui e agora, aquilo que será plenamente real quando Cristo voltar. Assim, esse crente vai se preocupar em tornar bonito e bem cuidado todo espaço que o cerca, seja dentro de sua casa, seja em seu quintal, seja na empresa em que trabalha, seja na igreja em que congrega.
O crente, pois, que aguarda o Reino e sabe que é seu dever antecipar seus efeitos até onde a realidade presente permite, eliminará dos espaços que tem sob seus cuidados toda feiúra, toda desolação, toda sujeira e toda desordem. Assim, as pessoas verão, nos lugares em que os cristãos vivem e convivem, verdadeiras partículas do Reino vindouro e poderão enxergar uma “pontinha” de como será todo o espaço redimido quando, afinal, tudo estiver sob o cetro adorável do Senhor.
Gostaria de escrever mais sobre esse tema, especialmente analisando suas implicações para a liturgia cristã. Contudo, as bases bíblicas para o assunto são muito escassas, tornando ousada a construção de proposições objetivas. Além disso, acho que já escrevi bastante... Acabou o espaço!
Pr. Marcos Granconato
Soli Deo gloria