Quinta, 28 de Março de 2024
   
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Salmo 129 - Gratidão do Passado, Confiança do Presente

 

Quando penso no Salmo 129, lembro-me de uma história que li. Dizem que Frederico o Grande (1712-1786), rei da Prússia, era um escarnecedor, enquanto seu principal general, um senhor chamado Von Zealand, era cristão. Em certo encontro, o rei estava fazendo piadas grosseiras e ofensivas sobre Jesus Cristo, tirando ruidosas gargalhadas dos muitos homens que estavam ao seu redor. Diante disso, o general Von Zealand se levantou com certa dificuldade, dada sua idade avançada, e disse: “Meu senhor, você sabe que eu nunca temi a morte. Lutei e venci 38 batalhas por você. Sou um homem velho e em breve partirei para a presença daquele que é maior que você, o poderoso Deus que me salvou do meu pecado: o Senhor Jesus Cristo, contra quem você está blasfemando. Eu o saúdo, meu senhor, como um homem velho que ama o seu salvador, à beira da eternidade”. Com voz trêmula, Frederico lhe respondeu: “General Von Zealand: peço seu perdão! Peço seu perdão! Peço seu perdão!”. Depois disso, todos os presentes foram partindo em silêncio.

O interessante nessa história é que a grande coragem de enfrentar um rei veio de certas recordações gratas: a salvação que o general recebeu de Cristo, as bênçãos em termos de sucesso militar e a promessa bíblica de viver com Deus. Diante disso, prontamente a gratidão do passado se transformou na coragem do presente na forma de um testemunho que ficou gravado na história. Nesse sentido, há semelhanças entre esse relato e o Salmo 129. Esse “cântico de romagem” (shîr hamm‘alôt), entoado pelos que iam ao Templo adorar a Deus, foi, provavelmente, composto em dias nos quais Israel sofria com ataques de inimigos e em que o perigo estava literalmente ao redor. Na ocasião, ele serviu como oração por libertação e fonte de coragem e esperança para o povo. Para os peregrinos que entoavam o salmo, ele servia para lembrar que havia promessas a Israel a serem cumpridas, para as quais a história do seu povo fornecia razões de sobra para que confiassem nelas. Desse modo, apesar de narrar um pouco da sofrida história dos judeus e de pronunciar imprecações desconfortáveis para o leitor, trata-se de um salmo tremendamente prático com duas lições muito importantes.

A primeira lição, tanto para Israel como para a igreja de Cristo, é que o servo de Deus deve sempre lembrar as bênçãos que Deus lhe concedeu no passado (vv.1-4). Se Israel estava sob o ataque quando o salmo foi composto, o salmista lembra que isso não era novidade para seu povo. Na verdade, Israel tinha uma história de sofrimento e de perseguição por parte de quase todas as nações ao seu redor, pelo que o escritor em nada exagera os fatos ao dizer (v.1a): “Muito me atacaram desde a minha juventude” (ravvat tserarûnî minne‘ûray). Apesar de o escritor falar como se fossem dele, suas palavras são ditas por toda a nação. Isso fica claro quando, na sequência, assim como no Salmo 124, o escritor abre parêntese para chamar o povo a confirmar sua afirmação e tomarem para si as suas palavras (v.1b): “Que Israel o diga!” (yo’mar-na’ yisra’el). Dito isso, ele volta à afirmação inicial, mas a completa com uma virada surpreendente (v.2): “Muito me atacaram desde a minha juventude, porém, não puderam me vencer” (ravvat tserarûnî minne‘ûray gam lo’-yoklû lî). Agora é possível entender o porquê da recordação. Não se trata de nostalgia, mas de perceber, pelos eventos passados, que Deus vinha trabalhando positivamente em favor do povo em um passado que não foi nada fácil. Os ataques numerosos que enfrentaram foram também violentos, ao que ele se refere usando a figura de lavradores que ferem a terra com o arado. Porém, nesse caso, a terra era a nação de Israel (v.3a): “Os lavradores passaram o arado sobre as minhas costas” (‘al-gavvî horshû horshîm). Não satisfeito, ele estende a figura de modo a ficar claro que foram muitas vezes alvo de extrema violência (v.3b): “Fizeram longos sulcos sobre elas” (he’erîkû lema‘anôtam).

Apesar da figura eloquente sobre a opressão de Israel por parte dos exércitos inimigos, o próximo texto apresenta uma realidade tão oposta que a frase bem poderia começar com a palavra “mas”, não obstante ela não constar no texto hebraico (v.4): “[Mas] o Senhor é justo: ele cortou as correias dos ímpios” (yhwh tsaddîq qitsets ‘avôt resha‘îm). A figura de “cordas” ou “correias” parece estar diretamente ligada à figura do arado. Se os ataques sobre Israel eram como passar o arado sobre suas costas, esse texto está dizendo que o Senhor impediu que o inimigo obtivesse seu objetivo final cortando as correias do arado, aquelas cordas amarradas ao boi de um lado e ao arado de outro, permitindo que o movimento do boi arrastasse o arado à medida que este abria a terra. Algo interessante é notar o atributo divino destacado nessa ação. Enquanto esperaríamos ler que a “bondade” ou a “misericórdia” de Deus o levaram a deter a crueldade do inimigo, é sua “justiça” que leva o crédito da ação. Por isso, deve-se adicionar ao quadro da ação libertadora, a mão punitiva de Deus contra os atacantes. O Senhor, não apenas deteve os inimigos do passado, mas os puniu por sua maldade. Assim, a frase “porém, não puderam me vencer” (v.2b) assume um significado especial a respeito do cuidado de Deus.

A segunda lição é que o servo de Deus deve crer firmemente no seu cuidado presente e nas promessas futuras (vv.5-8). Essa seção traz ao exegeta uma dificuldade logo de início. A maioria das formas verbais aponta para o futuro. Interpretadas assim, o autor estaria demonstrando confiança de que os inimigos seriam abatidos adiante. Contudo, a mesma forma verbal costuma assumir um sentido volitivo. Nesse caso, em lugar de uma ação futura expressa nas palavras “eles serão envergonhados”, a tradução seria o desejo de “que eles sejam envergonhados”. O autor estaria se dividindo entre a oração a Deus por libertação e a imprecação contra os inimigos de Israel. Não é fácil definir gramaticalmente o que o salmista estava pensando, mas, levando em conta o uso dos salmos, o sentido volitivo é preferível.

Assim, a partir das gratas lembranças do passado, o salmista olha para o presente como ocasião de depender de Deus em oração e de crer que ele, que está no controle de tudo, tratará a maldade do inimigo como ela merece ser tratada. Além do mais, ser inimigo de Israel era ser inimigo de Sião não apenas como capital, mas como centro da esperança israelita de redenção. Por isso, o resultado, mais cedo ou mais tarde, seria a derrota dos opressores (v.5): “Que todos os inimigos de Sião sejam envergonhados e batam em retirada” (yevoshû weyissogû ’ahôr kol sone’ê tsîyôn).

Frequentemente, as metáforas produzem uma compreensão mais vívida das grandes vitórias ou das grandes derrotas. Nesse caso não é diferente. A grande derrota antevista nessa oração imprecatória é comparada a pequenas plantas que germinavam no telhado das casas sobre a poeira que ali se acumulava. Como a semente em solo rochoso da parábola do semeador (Mt 13.5,6), essas plantas não tinham raiz e secavam antes de se desenvolver. Era assim que aconteceria aos inimigos de Israel (v.6): “Que sejam como a erva do telhado que seca antes de florescer” (yihyû kahatsîr gaggôt sheqqadmat shalaf yavesh). Seu abatimento seria tal que, caso fossem aquelas ervas secas, sua quantidade seria ínfima, pelo que o salmista prossegue (v.7): “Com a qual o ceifeiro não enche sua mão, nem o colhedor [enche] seus braços” (shello’ mille’ kaffô qôtser wehitsnô me‘ammer). Além disso, as alianças entre os ímpios se desfariam e eles não seriam alvo nem da simpatia nem da misericórdia de ninguém (v.8): “E que aqueles que passam não digam: ‘A bênção do Senhor esteja convosco! Nós vos abençoamos em nome do Senhor!’” (welo’ ’omrû ha‘overîm birkat-yhwh ’alêkem beraknû ’etkem beshem yhwh). Vê-se que os israelitas tomaram a história da ação de Deus como um padrão para sua atuação no presente e no futuro. A gratidão pela proteção divina no passado se tornou, para eles, oração confiante no presente e esperança corajosa a respeito do futuro.

Como igreja de Deus redimida por Cristo, devemos aprender essas lições que, apesar de provirem da teologia, têm valor e aplicações tremendamente práticas. Principalmente porque o mundo dos nossos dias tem sido palco de uma oposição cada vez mais decidida e feroz do mundo em relação a Deus, à mensagem do evangelho e à igreja cristã verdadeira. Não é difícil notar o surgimento de situações que preocupem os cristãos: leis que defendem a liberdade das pessoas tolhendo a liberdade dos cristãos; perseguição e martírio de crentes pelo mundo; ameaças de fechar igrejas e proibir a pregação do evangelho; a tentativa de obrigar a igreja a assumir posturas mundanas e a receber em seu meio pecadores não arrependidos; a aprovação e admiração na sociedade dos pecados mais abomináveis previstos nas Escrituras. Os dias não são fáceis! Mais do que nunca, precisamos lembrar o que Deus fez por nós no passado: enviou seu Filho para morrer por nossos pecados, salvou-nos gratuitamente pela fé em Cristo, deu-nos uma família espiritual e uma pátria celestial, supriu-nos ao longo de muitas crises e dificuldades, tem nos protegido dos perigos crescentes do mundo, tem nos confortado nos piores momentos por meio do Espírito Santo, tem nos dado crescimento pela sua palavra. Sendo assim, porque ele iria mudar agora e nos abandonar? Isso nunca vai acontecer! Por isso, olhemos para o passado com gratidão e nos curvemos em oração a respeito do presente, em plena confiança de que, no futuro, cearemos à mesa do nosso amado Senhor, justo e santo anfitrião de um povo que redimiu para si.

Pr. Thomas Tronco

 

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