Quinta, 28 de Março de 2024
   
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Salmo 66 - A Gratidão que não se Pode Conter

 

A Biblioteca do Congresso americano recebeu, certa vez, o pedido de um registro de direitos autorais de um livro chamado A million thanks. A publicação trazia escrita a palavra “obrigado” por nada menos que 1 milhão de vezes. A biblioteca negou o pedido, dizendo: “Não, obrigado”. Também explicou que a negativa se devia ao fato de que não se podia registrar uma palavra apenas. A gratidão do “escritor” podia ser verdadeira. Contudo, mesmo sendo um sentimento aprovado e louvável, o autor do livro parece ter lançado mão de uma forma irregular de demonstrar sua gratidão. 

O mesmo não aconteceu com o escritor do Salmo 66. O salmista passou por uma grande crise, a qual ele chama de “minha aflição” (v.14), que o levou a fazer votos (v.13) e clamar a Deus em oração (vv.19,20). Pelo modo como se expressa no salmo, é provável que tenha sido uma crise nacional, afligindo todo o povo. Entretanto, essa crise havia cessado por uma ação poderosa do Senhor. Diante disso, ele procura lançar mão de quase todos os recursos que dispõe, tanto para glorificar e anunciar a intervenção sobrenatural de Deus como para demonstrar sua efusiva gratidão (v.3), dizendo: “Quão temíveis são os teus feitos!” (mah-nôra’ ma‘aseyka). Ainda enaltece o poder de Deus que se vê (v.5) em “ações temíveis sobre os filhos do homem” (nôra’ ‘alîlâ ‘al-benê ’adam).

Há quem defenda que a composição do salmo se deu após a libertação poderosa dos israelitas diante do poderoso exército de Senaqueribe, quando 185 mil soldados assírios amanheceram mortos, forçando o inimigo a se retirar (2Rs 19.35; Is 37.36). Entretanto, qualquer poderosa libertação nacional – preferencialmente pré-exílica (devido à forma do título) – perfaz, a princípio, um pano de fundo adequado para o salmo, como a destruição, nos dias de Josafá, de três exércitos reunidos contra Judá (amonitas, moabitas e edomitas) sem que os israelitas lutassem (2Cr 20.22-24). O certo é que a libertação divina estava, de certo modo, ligada à oração do salmista. Segundo este (v.18), se seu coração abrigasse pecado, Deus não teria libertado o país – o que sugere que o salmista seja o próprio rei ou alguém de preeminência nacional. O fato é que, independente da indefinição sobre autoria e data, o contexto geral e a mensagem do salmo estão patentes.

A ocasião vislumbra uma ação divina que, a princípio, sobrecarregou os israelitas (v.10): “Tu nos provaste, ó Deus” (behantanû ’elohîm). A intenção de Deus parece ficar clara quando, em seguida, sua ação é comparada à purificação de metais preciosos pelo fogo, apontando para uma purificação de pecados em Israel: “Tu nos refinaste como o refinar da prata” (tseaftanû kitsraf-kasef). Outra tradução seria: “Tu nos purificaste assim como se purifica a prata”. O resultado final é pureza, mas não sem antes se aplicar o calor intenso. Assim foi com os israelitas. Isso foi feito por meio de um exército inimigo (v.12): “Tu fizeste homens cavalgarem sobre nossas cabeças” (hirkavta ’enosh lero’shenû).

Porém, Deus não queria vê-los destruídos, mas purificados. Assim, lhes deu a provação na medida correta, pelo modo como o salmista (v.9) o chama de, literalmente, “aquele que coloca nossa alma na vida” (hassam nafshenû bahayyiym). Como “preservador da vida” – sentido da expressão anterior –, o salmista revela a ação de Deus na afirmação da sua superioridade em relação aos inimigos (v.3): “Pela grandeza da tua força os teus inimigos falham diante de ti” (berov ‘uzzeka yekahashû leka ’oyeveyka). Na verdade, Deus é o controlador da história e das nações (v.7): “Teus olhos vigiam as nações” (‘ênayw baggôyim titspeynâ).

Diante da grande libertação, toda a nação está tremendamente feliz e o salmista se vê, não apenas devedor, mas desejoso de oferecer a Deus todo louvor com toda sua força (v.1): “Deem gritos de alegria a Deus”, diz ele, ou “levantem as vozes para louvar a Deus” (harî‘û le’lohîm). Esse convite ou essa convocação é feita, de maneira hiperbólica, a “toda Terra” (kol-ha’arets). Diante de todo o louvor que Deus merece e de toda a decisão de louvá-lo, o salmista oferece, nos vv.13-20, três atitudes presentes nas pessoas cuja gratidão a Deus não se pode conter.

A primeira atitude é a devoção cultual. Isso significa que o salmista não cultuaria o Senhor mecanicamente. Ao contrário, ele o faria com inteireza de coração em todos os enfoques do louvor devido ao Senhor. Para começar, diz ele (v.13): “Entrarei em tua casa com holocaustos. Cumprirei meus votos para contigo” (’avô’ bêteka be‘ôlôt ’ashallem leka nedaray). Com isso, o salmista afirma sua fidelidade no relacionamento com Deus, fato evidenciado no culto público e no cumprimento dos compromissos que ele assumiu com o Senhor. Ele também diz (v.15): “Oferecerei a ti holocaustos de animais gordos junto com aroma de carneiros [queimados]. Sacrificarei um novilho junto com cabritos” (‘olôt mehîm ’a‘aleh-lak ‘im-qetoret ’êlîm ’e‘eseh baqar ‘im-‘attûdîm).

A princípio, essa lista de sacrifícios parece não dizer muito. Mas, ao identificar os elementos presentes no texto, é possível notar, na primeira parte, a menção de “holocaustos” (‘olôt) – ofertas totalmente queimadas. Na segunda, a menção de um novilho oferecido com cabritos remete às “ofertas pacíficas” – ofertas que, depois de oferecidas a Deus, eram comidas pelos sacerdotes e pela família do ofertante – das tribos israelitas na consagração do tabernáculo (Nm 7.17, 23, 29, 35, 41, 47, 53, 59, 65, 71, 77, 83, 88) pela ocorrência das palavras hebraicas para “novilho” e “cabritos” associadas no mesmo texto. A união desses dois tipos de culto sacrificial em Israel nos leva ao desejo de Deus de ter celebrada a “memória do seu nome” (Ex 20.24) em meio à fidelidade cultual (Nm 29.39). Em outras ocasiões de alegria e devoção a Deus em Israel, vê-se que tais ofertas lhe foram apresentadas (Ex.: 2Sm 6.13,17-19; 1Cr 16.1-3). Assim, pela lista de sacrifícios propostos, o salmista garante que adorará o Senhor no culto público com “coração grato, alegre e dedicado”.

A segunda atitude é o testemunho público. O salmista faz um convite aberto e amplo (v.16), dizendo: “Venham e ouçam, ó todos os que temem a Deus, e eu anunciarei o que ele fez por mim” (lekû-shim‘û wa’asafferâ kol-yir’ê ’elohîm ’asher ‘asâ lenafshî). O escritor quer anunciar as grandezas de Deus vistas na suas ações. Por isso, já no começo do salmo, lembrou de feitos grandiosos de Deus a fim de comparar a atuação do passado com a que ele presenciou com seus olhos. Assim, ele diz (v.6) que Deus “converteu o mar em terra seca; eles passaram no rio a pé” (hafak yam leyavvashâ bannahar ya‘avrû beragel). Essa é uma clara menção do poder de Deus demonstrado nos feitos miraculosos de abrir o mar Vermelho para salvar os israelitas do exército egípcio (Ex 14.15-31) e de parar o curso de água do rio Jordão para Israel iniciar a conquista de Canaã (Js 3.12-17). Tendo recordado os milagres do passado, o salmista anuncia a resposta positiva do Senhor aos seus clamores (v.19): “Deus ouviu minha oração; ele escutou a voz da minha súplica” (’aken shama‘ ’elohîm hiqshîv beqôl tefillatî). Esse é um fato que não pode ser escondido diante da gratidão que o escritor do salmo sente.

Finalmente, a terceira atitude é a oração dependente. O salmista volta a falar da resposta divina aos seus clamores e louva seu nome por isso (v.20): “Deus seja bendito, pois não rejeitou minha oração” (barûk ’elohîm ’asher lo’-tefillatî). Apesar de a oração ser assunto dos versículos anteriores, o encerramento do salmo faz transparecer a razão pela qual Deus atende a súplica de homens pequenos e falhos: “Pois não rejeitou a minha oração, nem afastou de mim o seu amor” (’asher lo’-tefillatî wehasdô me’ittî). Esse “amor” (hesed) pode ser traduzido como “graça”, “bondade”, ou “misericórdia”. Mas sua ênfase é sobre a ideia de um “amor fiel” que não abandona os seus. É o amor que, movido por graça plena, busca o benefício alheio mesmo se – ou principalmente se – esse benefício não pode ser retribuído à altura. Essa é a razão da resposta positiva de Deus libertando a nação do salmista e o motivo pelo qual este depende de Deus para ouvi-lo e para abençoá-lo. Esse é um dos maiores motivos de gratidão que podem existir diante do Deus santo.

Que bom poder mostrar a Deus toda a nossa gratidão e louvor diante de todos pelo bem que ele nos tem feito! Melhor ainda é fazê-lo de todo o coração em todo o tempo e não apenas quando Deus tem de corrigir os erros, refinando-nos assim como o fogo refina a prata. Que possamos, ó povo de Deus, viver constantemente em estado de adoração e gratidão que não se pode conter.

Pr. Thomas Tronco

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