Sexta, 19 de Abril de 2024
   
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Salmo 57 - A Quem Honra, Honra

 

O mundo conheceu grandes músicos e compositores. Um deles foi Franz Joseph Haydn. Próximo do final da sua vida, um grande concerto de nome A Criação foi apresentado em Viena. Com a saúde debilitada, Haydn foi levado ao concerto em uma cadeira de rodas. Quando a apresentação chegou à parte referente a Gênesis 1.3, que diz “e houve luz”, as vozes do coral cresceram em intensidade e encheram o teatro ao ponto de a plateia, absorta e maravilhada, ficar de pé e irromper em uma efusiva e crescente salva de palmas. O compositor Haydn, então, com muito esforço e sofrimento, levantou-se da sua cadeira agitando os braços e, em prantos, gritava para a multidão: “Não, não de mim, mas de lá – lá dos céus é que tudo vem!”. Então ele se sentou exausto e teve de ser retirado do grande salão.

Em Romanos 13.7, Paulo escreveu que, como servos de Deus, devemos cumprir todas as nossas responsabilidades, incluindo honrar quem deve ser honrado – o texto em questão é o título desse comentário. Costumeiramente, esse texto é utilizado para homenagear homens sem que pareça que se está omitindo a merecida honra devida a Deus. Entretanto, Davi faz uso de um raciocínio diferente desse ao escrever o Salmo 57. Justamente quando toma uma das atitudes humanas mais louváveis de toda a Bíblia, ele rende todo louvor e glória a Deus. Apesar de se encontrar em uma posição muito difícil e de ter produzido, na mesma situação, outros salmos em que se mostra perplexo e aflito, nesse episódio específico da sua vida ele compôs um salmo que destoa dos outros no sentido de demonstrar uma explosão de louvor a Deus.

O título do salmo nos dá o sitz im leben – essa expressão alemã significa “situação de vida” e é utilizada tecnicamente para se referir ao contexto por detrás de uma passagem das Escrituras. Davi escreveu o salmo “ao fugir ele da presença de Saul na caverna” (bebarhô miffenê-sha’ûl bamme‘arâ). Essa referência nos leva aos acontecimentos narrados em 1Samuel 24, que contam que Saul, recebendo a notícia de que Davi se escondia em En-Gedi, partiu em seu encalço. No caminho, Saul utilizou uma caverna como um tipo de banheiro sem saber que Davi e seus homens estavam escondidos justamente ali. Era a oportunidade perfeita de Davi matar Saul e de dar fim àquela perseguição injusta. Em lugar disso, Davi poupou o rei e deu provas da sua justiça e da sua fidelidade para com Deus e para com o rei, ainda que este buscasse tirar sua vida.

Esse é um episódio pelo qual Davi deve ter sido considerado um homem singularmente justo. Seus soldados devem ter se sentado com os filhos, nos dias futuros, e contado com que retidão Davi agiu para com o rei perverso. Na verdade, é uma situação tão especial que normalmente seria contada pelo seu próprio autor depois da conhecida introdução “modéstia à parte”. Entretanto, Davi não faz isso. Ao contrário, compõe um cântico no qual ele exulta de louvores a Deus rendendo a ele toda a responsabilidade pela libertação do servo que, sem ele, é incapaz de lidar com os perigos da vida.

O cântico tem duas estrofes (vv.1-4 e vv.6-10), cada uma delas seguida pelo refrão (vv.5 e 11) “seja elevado acima dos céus, ó Deus, e sobre toda a terra esteja a tua glória” (rûmâ ‘al-hashamayim ’elohîm ‘al kal-ha’arets kevôdeka). Essa é a mensagem do cântico. Este é o intento do salmo: render glórias a Deus. O que introduz e emoldura essa mensagem está em uma exposição crescente de louvor de Deus a partir da situação inicial de desespero do salmista até a gloriosa libertação vinda do Senhor. O modo como Deus transformou a sorte de Davi é a razão pela qual Deus é alvo dos mais profundos louvores do salmista.

Com tal intenção, Davi compõe a primeira estrofe de modo a, mesmo afirmando o auxílio divino, frisar o ataque feroz dos inimigos e o medo que isso lhe produziu. Ele demonstra isso ao iniciar com um clamor por misericórdia (v.1): “Tenha misericórdia de mim, ó Deus” (hannenî ’elohîm). A razão dessa busca é a confiança que Davi tem no Senhor: “Tenha misericórdia de mim, pois em ti eu busco refúgio” (hannenî kî beka hasayâ). É um interessante uso de palavras, já que Davi estava refugiado em uma caverna. Mesmo assim, ele mostra que sua confiança não se baseava na qualidade do esconderijo, mas na compaixão de Deus.

Diante da oração (v.2), Davi vislumbra o agir de Deus em seu favor protegendo-o (v.3): “Dos céus ele envia libertação a mim e afronta os meus opressores. Deus envia a sua misericórdia e a sua fidelidade” (yishlah mishamayim weyôshî‘enî heref sho’afî selâ yishlah ’elohîm hasdô wa’amittô). Apesar de tal confiança, a primeira estrofe termina com a ferocidade dos ataques dos perseguidores (v.4): “Estou cercado por leões, deitado ante aos que devoram os filhos dos homens, cujos dentes são lanças e flechas e cuja língua é uma espada afiada” (nafshî betôk leba’im ’eshkevâ lohatîm benê-’adam shinnêtem hanît wehatsîm herev haddâ). A figura é temível e é seguida pelo louvor a Deus no refrão do salmo. Essa primeira parte da música nos lembra que Deus deve ser louvado, ainda que os problemas cerquem os seus servos.

A segunda parte do salmo é diferente da primeira. O salmista, brevemente, volta a falar do ataque dos opressores e da sua frágil condição (v.6): “Eles prepararam redes para os meus pés. Minha alma sucumbiu” (reshet hekînû lif‘amay kafaf nafshî). Esse é um resumo da primeira estrofe. Entretanto, um novo elemento entre em cena. Há uma retribuição do mal. Os maus intentos dos inimigos voltam para eles mesmos. Eles são alvo da própria armadilha que armaram para Davi: “Eles abriram uma cova diante de mim, mas caíram dentro dela” (karû lefanay shîhâ naflû betôkah). Certamente, é uma referência ao modo como Saul, de caçador passou a presa ao alcance de Davi naquela caverna. Ele não foi ferido fisicamente, mas saber que estava nas mãos do jovem Davi foi como ser abatido por uma lança veloz. Diante do seu exército, sua maldade foi exposta em contraposição à bondade e retidão do salmista (1Sm 24.16,17). Foi uma derrota completa para Saul. Para Davi, foi grande libertação, tanto da perseguição militar como da degradação do seu nome pelos mentirosos que convenciam Saul de que seria traído por ele (1Sm 24.9). O resultado é que, ainda que continue fugindo, Davi se sente firmado e estabelecido (v.7): “Meu coração está firme, ó Deus, meu coração está firme” (nakôn livvî ’elohîm nakôn livvî).

A partir de então, há uma explosão de louvor por parte de Davi. Apesar de não ser novidade o fato de Davi dar tanta importância ao louvor, na situação em que ele se encontrava e levando em conta os salmos que escreveu nessa situação, esse louvor enfático se torna notável. O louvor começa de maneira muito poética (v.8): “Acorda, alma minha! Acordem, harpa e lira! Eu acordarei a alvorada!” (‘ûrâ kevôdî ‘ûrâ hannevel wekinnôr ’a‘îrâ shahar). A personificação dos instrumentos musicais é apenas um modo de dizer que ele irá tocá-los como modo de expressar seu louvor ao Senhor. A oração “acordarei a alvorada” significa que ele cantaria e tocaria os instrumentos durante toda a noite, até ao amanhecer.

A próxima expressão do louvor crescente de Davi é o compromisso de fazê-lo ante os outros povos em forma de testemunho da glória do Deus de Israel (v.9): “Proclamarei a ti entre os povos, ó Senhor. Cantarei louvores a ti entre as nações” (’ôdeka ba‘ammîm ’adonay ’azammerka bal’ummîm). As atuações de Deus são assunto não apenas para Davi e seus seguidores, mas para todas as pessoas do mundo. A glória de Deus deve ser anunciada por toda parte. Apesar de Deus ser glorioso e louvável simplesmente por quem ele é, Davi tem em mente anunciar também o que Deus faz e o modo como faz (v.10): “Pois chega até os céus a tua misericórdia e até as nuvens a tua fidelidade” (kî-gadol ‘ad-shamayim hasdeka we‘ad-shehaqîm ’amitteka). Essa estrofe também é coroada pelo refrão que louva o nome do Senhor (v.11).

O feito de Davi naquela caverna em Judá é motivo até hoje de tomarmos o salmista como exemplo e de ensinarmos os mesmos valores com base na sua experiência. Lemos o texto e elogiamos o caráter de Davi. Entretanto, Davi não rendeu a si mesmo nenhum mérito. Com um louvor difícil de comparar, ele rende toda a glória a Deus. Se ouvisse a interpretação moderna do texto de Paulo em Romanos 13.7 para justificar longas homenagens a homens, massageando seus egos, Davi discordaria dessa prática. O próprio Paulo discordaria, pois quis dizer, com a frase “a quem honra, honra”, que os crentes devem honrar as autoridades, demonstrando-lhes respeito e obediência. O máximo que Davi faria – pelo que deveria ser imitado por nós, cristãos – é, utilizando-se do modo errôneo de interpretar o texto de Paulo, corrigir-lhe o sentido ao aplicá-lo à pessoa certa. Ele diria: “A quem honra, honra. A Deus toda a honra!”.

Pr. Thomas Tronco

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