Sábado, 20 de Abril de 2024
   
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O Senhor dos Furacões

Pastoral

Quando Agostinho de Hipona era jovem, sentiu-se fortemente atraído pela filosofia após fazer a leitura de um livro de Cícero, intitulado Hortênsio. Tão logo esse amor nasceu, surgiu também uma pergunta em sua mente que passou a atormentá-lo: “Qual é a causa de praticarmos o mal”. Sedento por uma resposta que satisfizesse seu intelecto, Agostinho se viu atraído pelo maniqueísmo. Assim, ele se tornou “ouvinte” dentro dessa facção religiosa durante nove anos.

Os maniqueus formavam uma seita pequena e sinistra. Receberam seu nome de Mani, um profeta persa do século 3 que ensinava uma forma de dualismo. Para Mani, o bem e o mal se deviam à existência de duas entidades distintas, opostas entre si: um Deus bom e um demônio hostil, ambos eternos e com o mesmo poder.

Com o tempo, Agostinho percebeu as inconsistências dessa explicação e se decepcionou quando tentou saná-las consultando as maiores autoridades maniqueístas. Mais tarde, sendo já cristão e ainda tendo de lidar com o “problema do mal”, o então bispo de Hipona escreveu, em cerca de 405, uma obra chamada Da natureza do bem, em que, lançando mão da filosofia neoplatônica (sistematizada por Plotino, c. 270 AD), explicou que o mal não tem substância, sendo, antes, a perversão do bem ou sua ausência (privatio boni). Agostinho também explicou que o mal moral surgiu do uso impróprio do livre-arbítrio.

O que ficou, então, conhecido como “A teodiceia de Santo Agostinho” se tornou quase universalmente aceito pela ortodoxia cristã, satisfazendo, até certo ponto, as expectativas levantadas pelas intrigantes questões que surgem quando se observa a presença da dor e da injustiça num mundo criado por um Deus bom e onipotente.

Muito bem. Acredito sinceramente que temos de dar os parabéns a Agostinho (ou a Plotino) por nos auxiliar a compreender a natureza do mal. O problema, porém, que permanece, é que se essas reflexões filosóficas, de um lado, nos ajudam a entender o mal, de outro, elas não têm valor algum para nos ajudar a enfrentar o mal. De fato, afirmar acertadamente que o mal não tem substância talvez satisfaça nosso intelecto, mas não alivia a dor de alguém que é atingido por essa “coisa” sem substância. Isso talvez explique por que a Bíblia não esclarece o problema da existência do mal no mundo. Antes, ocupa-se predominantemente em munir os crentes de verdades que os ajudem a ver o sofrimento e a dor sob uma nova perspectiva, capacitando-os a enfrentar o mal com força, coragem, piedade e esperança, sem explicar necessariamente o porquê de as coisas serem como são.

Deixem-me dar um exemplo. O debate sobre o mal geralmente divide o problema entre as categorias “mal natural” e “mal moral”. O exemplo que vou dar é relacionado ao “mal natural”. Nos últimos dias vimos perplexos a terrível destruição causada pelo furacão Irma, considerado um dos mais devastadores de que se tem notícia. Milhões foram afetados por esse tufão gigantesco que matou pessoas e lançou gente inocente (no sentido comum do termo) no poço do desespero e da perda de tudo. Aí vem a velha pergunta: como explicar tanto sofrimento num mundo governado por um Deus bom e poderoso?

Os teólogos do processo dirão que, numa realidade concebida em termos processuais, as coisas acontecem sem que Deus (que também está sujeito aos processos que perfazem o funcionamento do universo) possa interferir. O máximo que ele pode fazer ― dirão ― é tentar influenciar o rumo das coisas, sem, porém, lograr cem por cento de êxito em suas tentativas. Alguns neoarminianos, em suas tentativas ingênuas de defender Deus da acusação de crueldade, dirão, por sua vez, que algumas coisas acontecem fora da vontade divina (só pra constar: no século 5, Agostinho escreveu ao mestre pelagiano Juliano de Eclano dizendo que algumas tentativas de livrar Deus da acusação de crueldade acabam por torná-lo “cruelmente fraco” [Contra Juliano, I:120]. Os arminianos de hoje mostram que Agostinho estava certo).

O que, porém, diz a Bíblia sobre a relação de Deus com os furacões? Aí é que está o problema. Ela não explica completamente o porquê desse tipo de coisa, mas fornece informações que ajudam os crentes a ir em frente, até mesmo (pasmem!) louvando o Criador. Veja-se, nesse sentido, o que diz o Salmo 148.7-8: “Louvai ao Senhor da terra, monstros marinhos e abismos todos; fogo e saraiva, neve e vapor e ventos procelosos que lhe executam a palavra”. A parte final desse trecho bíblico (que me faz lembrar da história de Jonas [1.4]) mostra que as forças da natureza apenas cumprem o que Deus ordena. O Salmo diz que Yahweh dirige o rumo e a força dos ventos de modo que as tempestades apenas cumprem os seus desígnios soberanos e, muitas vezes, secretos.

Isso, naturalmente, desafia-nos de novo com a importante pergunta: em que o conhecimento dessas coisas nos ajuda em face da tragédia? Bem, não posso falar por todos, mas a mim serve de consolo e alento saber que o universo não funciona como uma locomotiva desgovernada que segue em desabalada carreira destruindo tudo sem propósito algum. Saber que acima de toda a confusão causada por um furacão existe um Deus que continua em seu trono dirigindo os ventos gera em mim alento e fé, além de quebrar meu orgulho, ao provar que meu cérebro de um quilo e meio não consegue entender os propósitos infinitamente sábios do Rei do Universo.

Muita gente pode achar isso pouco e, até certo ponto, eu concordo com essa avaliação. Com efeito, Deus, ao revelar as verdades acerca do mal e alguns dos seus mistérios, não nos satisfaz plenamente com suas afirmações (Jó que o diga!). De uma coisa, porém, podemos ter certeza: é melhor se alimentar das migalhas da verdade do que se saciar com o lixo das mentiras que inventam por aí. Sem dúvida, é melhor ter o conhecimento incompleto, mas verdadeiro, de Jó, do que a “filosofia sabe-tudo”, mas falsa, dos seus amigos. Sim, pois se a dose pequena da boa doutrina não é um tão poderoso analgésico, as invenções vazias da falsa teologia são apenas alucinógenos baratos usados por quem quer fugir da intrigante teodiceia que a Bíblia apresenta. 

Pr. Marcos Granconato

Soli Deo gloria


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